por Luiz Felipe Pondé para Folha
Não sou uma pessoa muito sensível. Diria mesmo que sou insensível. Choro pouco. Claro, homens não podem chorar, ainda hoje, mesmo que o contínuo blablablá que tomou conta do mundo diga o contrário.
Você, leitor, experimente chorar umas duas vezes numa semana, e verá sua namorada desertar.
Se meus amigos não tivessem pena de mim, diriam que sou desumano. À noite, penso em como devo me comportar para que os traços e os gestos do desumano em mim não traiam a farsa.
Mas, por sorte, eu encontro abrigo em meus poucos mestres. Sim, tenho uns poucos. Nietzsche, Freud, Dostoiévski, Pascal, Cioran, Nelson Rodrigues. Aliás, como disse semanas atrás, tenho lido e relido este meu conterrâneo repetidas vezes nos últimos tempos.
No volume "Não Tenho Culpa que a Vida Seja Como Ela É" (ed. Agir), Nelson conta como sofreu com sua coluna "A vida como ela é..." devido à tristeza de suas histórias. Muitos leitores cobravam dele uma "vida mais feliz"." Mas como fazer da vida algo diferente do que ela é?", pergunta a si mesmo. A verdade é que, às vezes, podemos.
Na primeira história do volume (uma introdução a ele), Nelson Rodrigues conta como, certa feita, esperando para ser atendido num pronto-socorro, viu um bebê chorar pus. E ele sentiu vergonha de sua "felicidade problemática" e de sua "pouquíssima alegria".
Graças a Deus, momentos como esses acontecem.
Não sou alguém que tenha consciência social. Aliás, não acredito em ninguém que diga que tenha consciência social e não esteja morto ou miserável por tê-la. "Consciência social" hoje é a essência do marketing social dos bancos. "Consciência social" logo será uma marca de calça jeans, não significa nada, ou está numa prateleira de supermercado ao lado da mostarda.
Certa feita, há algum tempo, ofereceram um trabalho para mim que salvaria o mês. Por uns dois dias, dei aula para professores da "rede".
Sentia a rejeição clara neles com relação à minha missão: uma espécie de educação continuada. Olhavam-me como um enviado pelos inimigos para fingir que os estava ajudando com meu conhecimento "superior". Não os culpo, às vezes a raiva pode ser a última forma de humanidade em alguém.
Na hora do intervalo, um lanche foi servido. Minha colega e eu ganhamos sanduíches de queijo e presunto com Coca-Cola -ou algo semelhante. Fomos levados a uma sala separada.
Os professores, nossos "alunos", receberam, no meio do pátio, uma bacia com pães com manteiga e algum tipo de suco irreconhecível. Ou algo semelhante.
Não conseguimos comer nosso lanche e ver pela janela os professores comerem aquilo de pé. De minha parte, posso dizer que uma vergonha imensa tomou conta de mim, tirando minha fome. Fomos comer com eles.
Outro dia, parei numa esquina de um bairro de classe média alta, por conta do farol vermelho. Crianças cercaram o carro, como sempre. Não sou do tipo que se deixa contaminar por qualquer tipo de "misericórdia de dois reais" -ainda que reconheça que, para alguém que nada tem, dois reais podem significar um pão com manteiga.
Uma menina de uns 13 anos se aproximou. Ela me pediu um trocado. Seu sorriso era bonito. Decidi dar um trocado pra ela. Enquanto procurava por uma moeda, ela me perguntou: "Como é o nome desse carro mesmo?" (ela mesma disse o nome do carro, antes que eu respondesse). "Ele não é do Brasil, é?" Respondi que não. Então ela perguntou de qual país vinha. "Inglaterra", disse eu.
Depois, ela disse pra mim: "Eu vou pra escola e estudo porque um dia, quando crescer, vou pra universidade e vou trabalhar muito e vou ganhar muito dinheiro, porque quero ter um carro igualzinho a este".
Admiro sua vontade de ter um carro inglês, mesmo que pareça um miserável sonho de consumo para uma miserável menina pobre. Falta esse tipo de "gana" no Brasil, e muita gente espera muito do Estado.
Não contei esses dois fatos para que o leitor pense que finalmente tenho coração. Conto para que eu mesmo acredite que tenho coração, porque o simples fato de ouvi-lo bater pode não significar nada além do que a respiração de uma pedra.
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quinta-feira, 14 de julho de 2011
"PÃO COM MANTEIGA" DE LUIZ FELIPE PONDÉ
por Luiz Felipe Pondé para Folha
Não sou uma pessoa muito sensível. Diria mesmo que sou insensível. Choro pouco. Claro, homens não podem chorar, ainda hoje, mesmo que o contínuo blablablá que tomou conta do mundo diga o contrário.
Você, leitor, experimente chorar umas duas vezes numa semana, e verá sua namorada desertar.
Se meus amigos não tivessem pena de mim, diriam que sou desumano. À noite, penso em como devo me comportar para que os traços e os gestos do desumano em mim não traiam a farsa.
Mas, por sorte, eu encontro abrigo em meus poucos mestres. Sim, tenho uns poucos. Nietzsche, Freud, Dostoiévski, Pascal, Cioran, Nelson Rodrigues. Aliás, como disse semanas atrás, tenho lido e relido este meu conterrâneo repetidas vezes nos últimos tempos.
No volume "Não Tenho Culpa que a Vida Seja Como Ela É" (ed. Agir), Nelson conta como sofreu com sua coluna "A vida como ela é..." devido à tristeza de suas histórias. Muitos leitores cobravam dele uma "vida mais feliz"." Mas como fazer da vida algo diferente do que ela é?", pergunta a si mesmo. A verdade é que, às vezes, podemos.
Na primeira história do volume (uma introdução a ele), Nelson Rodrigues conta como, certa feita, esperando para ser atendido num pronto-socorro, viu um bebê chorar pus. E ele sentiu vergonha de sua "felicidade problemática" e de sua "pouquíssima alegria".
Graças a Deus, momentos como esses acontecem.
Não sou alguém que tenha consciência social. Aliás, não acredito em ninguém que diga que tenha consciência social e não esteja morto ou miserável por tê-la. "Consciência social" hoje é a essência do marketing social dos bancos. "Consciência social" logo será uma marca de calça jeans, não significa nada, ou está numa prateleira de supermercado ao lado da mostarda.
Certa feita, há algum tempo, ofereceram um trabalho para mim que salvaria o mês. Por uns dois dias, dei aula para professores da "rede".
Sentia a rejeição clara neles com relação à minha missão: uma espécie de educação continuada. Olhavam-me como um enviado pelos inimigos para fingir que os estava ajudando com meu conhecimento "superior". Não os culpo, às vezes a raiva pode ser a última forma de humanidade em alguém.
Na hora do intervalo, um lanche foi servido. Minha colega e eu ganhamos sanduíches de queijo e presunto com Coca-Cola -ou algo semelhante. Fomos levados a uma sala separada.
Os professores, nossos "alunos", receberam, no meio do pátio, uma bacia com pães com manteiga e algum tipo de suco irreconhecível. Ou algo semelhante.
Não conseguimos comer nosso lanche e ver pela janela os professores comerem aquilo de pé. De minha parte, posso dizer que uma vergonha imensa tomou conta de mim, tirando minha fome. Fomos comer com eles.
Outro dia, parei numa esquina de um bairro de classe média alta, por conta do farol vermelho. Crianças cercaram o carro, como sempre. Não sou do tipo que se deixa contaminar por qualquer tipo de "misericórdia de dois reais" -ainda que reconheça que, para alguém que nada tem, dois reais podem significar um pão com manteiga.
Uma menina de uns 13 anos se aproximou. Ela me pediu um trocado. Seu sorriso era bonito. Decidi dar um trocado pra ela. Enquanto procurava por uma moeda, ela me perguntou: "Como é o nome desse carro mesmo?" (ela mesma disse o nome do carro, antes que eu respondesse). "Ele não é do Brasil, é?" Respondi que não. Então ela perguntou de qual país vinha. "Inglaterra", disse eu.
Depois, ela disse pra mim: "Eu vou pra escola e estudo porque um dia, quando crescer, vou pra universidade e vou trabalhar muito e vou ganhar muito dinheiro, porque quero ter um carro igualzinho a este".
Admiro sua vontade de ter um carro inglês, mesmo que pareça um miserável sonho de consumo para uma miserável menina pobre. Falta esse tipo de "gana" no Brasil, e muita gente espera muito do Estado.
Não contei esses dois fatos para que o leitor pense que finalmente tenho coração. Conto para que eu mesmo acredite que tenho coração, porque o simples fato de ouvi-lo bater pode não significar nada além do que a respiração de uma pedra.
Não sou uma pessoa muito sensível. Diria mesmo que sou insensível. Choro pouco. Claro, homens não podem chorar, ainda hoje, mesmo que o contínuo blablablá que tomou conta do mundo diga o contrário.
Você, leitor, experimente chorar umas duas vezes numa semana, e verá sua namorada desertar.
Se meus amigos não tivessem pena de mim, diriam que sou desumano. À noite, penso em como devo me comportar para que os traços e os gestos do desumano em mim não traiam a farsa.
Mas, por sorte, eu encontro abrigo em meus poucos mestres. Sim, tenho uns poucos. Nietzsche, Freud, Dostoiévski, Pascal, Cioran, Nelson Rodrigues. Aliás, como disse semanas atrás, tenho lido e relido este meu conterrâneo repetidas vezes nos últimos tempos.
No volume "Não Tenho Culpa que a Vida Seja Como Ela É" (ed. Agir), Nelson conta como sofreu com sua coluna "A vida como ela é..." devido à tristeza de suas histórias. Muitos leitores cobravam dele uma "vida mais feliz"." Mas como fazer da vida algo diferente do que ela é?", pergunta a si mesmo. A verdade é que, às vezes, podemos.
Na primeira história do volume (uma introdução a ele), Nelson Rodrigues conta como, certa feita, esperando para ser atendido num pronto-socorro, viu um bebê chorar pus. E ele sentiu vergonha de sua "felicidade problemática" e de sua "pouquíssima alegria".
Graças a Deus, momentos como esses acontecem.
Não sou alguém que tenha consciência social. Aliás, não acredito em ninguém que diga que tenha consciência social e não esteja morto ou miserável por tê-la. "Consciência social" hoje é a essência do marketing social dos bancos. "Consciência social" logo será uma marca de calça jeans, não significa nada, ou está numa prateleira de supermercado ao lado da mostarda.
Certa feita, há algum tempo, ofereceram um trabalho para mim que salvaria o mês. Por uns dois dias, dei aula para professores da "rede".
Sentia a rejeição clara neles com relação à minha missão: uma espécie de educação continuada. Olhavam-me como um enviado pelos inimigos para fingir que os estava ajudando com meu conhecimento "superior". Não os culpo, às vezes a raiva pode ser a última forma de humanidade em alguém.
Na hora do intervalo, um lanche foi servido. Minha colega e eu ganhamos sanduíches de queijo e presunto com Coca-Cola -ou algo semelhante. Fomos levados a uma sala separada.
Os professores, nossos "alunos", receberam, no meio do pátio, uma bacia com pães com manteiga e algum tipo de suco irreconhecível. Ou algo semelhante.
Não conseguimos comer nosso lanche e ver pela janela os professores comerem aquilo de pé. De minha parte, posso dizer que uma vergonha imensa tomou conta de mim, tirando minha fome. Fomos comer com eles.
Outro dia, parei numa esquina de um bairro de classe média alta, por conta do farol vermelho. Crianças cercaram o carro, como sempre. Não sou do tipo que se deixa contaminar por qualquer tipo de "misericórdia de dois reais" -ainda que reconheça que, para alguém que nada tem, dois reais podem significar um pão com manteiga.
Uma menina de uns 13 anos se aproximou. Ela me pediu um trocado. Seu sorriso era bonito. Decidi dar um trocado pra ela. Enquanto procurava por uma moeda, ela me perguntou: "Como é o nome desse carro mesmo?" (ela mesma disse o nome do carro, antes que eu respondesse). "Ele não é do Brasil, é?" Respondi que não. Então ela perguntou de qual país vinha. "Inglaterra", disse eu.
Depois, ela disse pra mim: "Eu vou pra escola e estudo porque um dia, quando crescer, vou pra universidade e vou trabalhar muito e vou ganhar muito dinheiro, porque quero ter um carro igualzinho a este".
Admiro sua vontade de ter um carro inglês, mesmo que pareça um miserável sonho de consumo para uma miserável menina pobre. Falta esse tipo de "gana" no Brasil, e muita gente espera muito do Estado.
Não contei esses dois fatos para que o leitor pense que finalmente tenho coração. Conto para que eu mesmo acredite que tenho coração, porque o simples fato de ouvi-lo bater pode não significar nada além do que a respiração de uma pedra.
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