VEJA desta semana destaca
 a publicação de Mainardi, uma comovente narrativa sobre seu filho que 
nasceu com paralisia cerebral e uma portentosa representação intelectual
 das emoções
Mario Sabino
            
                
 TITO, DIOGO, NICO E CAMPO SANTI GIOVANNI E PAOLO, DE CANALETTO 
- O 
ex-colunista de VEJA escreveu uma obra em que a grande arte emoldura a 
sua história individual
            
            
              (Ruyn Teixeira / Divulgação)
            
          
 
Um dos desenhos mais célebres do mundo faz parte do acervo da Accademia de Veneza. Trata-se do 
Homem Vitruviano,
 de Leonardo da Vinci, em que a única figura humana é retratada em duas 
posições, como se houvesse fotogramas sobrepostos -- dentro de um 
círculo (com os braços esticados na altura da cabeça e as pernas 
afastadas) e dentro de um quadrado (com os braços abertos na altura dos 
ombros e as pernas juntas), círculo e quadrado porque tidos como as 
formas geométricas perfeitas. O “Homem Vitruviano” parece fazer um 
polichinelo, aquele exercício físico banido da ginástica escolar depois 
de arrebentar os joelhos das gerações com mais de 40 anos. Da Vinci 
concebeu o desenho em torno de 1490, a partir das considerações do 
arquiteto romano Vitrúvio. Um milênio e meio antes, em seu tratado 
De Architectura,
 Vitrúvio estabelecera quais seriam as proporções exatas do corpo 
humano, por meio de uma série de correspondências matemáticas entre as 
suas diversas partes. O desenho de Da Vinci é acompanhado, na parte 
superior e inferior, de explicações sobre tais correspondências, a 
demonstrar com mais ênfase a intenção do artista de apresentar o modelo 
de harmonia que deveria servir de base a pintores, escultores e 
arquitetos. O 
Homem Vitruviano é raramente exposto. A última 
vez foi em 2009. Já sua antítese está em exposição permanente pelas vias
 e pontes de Veneza: Tito Mainardi, hoje com quase 12 anos, primogênito 
de Diogo Mainardi. Portador de paralisia cerebral, é como uma espécie de
 “Menino Antivitruviano” que ele protagoniza
 A Queda  - As Memórias de um Pai em 424 Passos
 (Record; 152 páginas; 29,90 reais), de autoria do ex-colunista de VEJA.
 O livro, que chega às livrarias com uma tiragem inicial de 20.000 
exemplares, é comovente pelo tema, extraordinário na forma e esplêndido 
como reflexão sobre a arrogância humana.
 Tito é personagem conhecido dos leitores que acompanhavam semanalmente 
a coluna de Diogo, a mais lida da revista de 1999 a 2010,
 quando o escritor e jornalista resolveu encerrar espontaneamente a sua 
colaboração. Ele começou a pensar em escrever o livro sobre a paralisia 
cerebral de seu primogênito em 2008, ainda no Rio de Janeiro, para onde 
se mudara quatro anos antes, a conselho de médicos americanos. O 
veneziano Tito deveria viver num ambiente quente, onde pudesse exercitar
 mais as pernas. As areias de Ipanema foram seu primeiro -- e ideal para
 quedas -- campo de provas, complementadas pelas garagens térreas dos 
prédios da orla, nas quais o menino se esbaldava com seu andador, 
observado do carrinho por Nico, seu irmão carioca, hoje com 7 anos. 
Depois que Tito, em férias na cidade natal, alcançou 359 passos sozinho,
 Diogo decidiu concretizar seu projeto. Diz ele: “Só consegui, contudo, 
dedicar-me seriamente ao livro a partir de setembro de 2010, na volta 
definitiva a Veneza. Tive de renunciar à coluna em VEJA, por causa da 
minha cabeça limitada: sou incapaz de pensar num José Dirceu e, ao mesmo
 tempo, num Tintoretto. O José Dirceu emporcalha o Tintoretto”. Uma das 
glórias de Veneza, o pintor é um dos artistas abordados por Diogo em 
A Queda.
 A paralisia cerebral de Tito foi causada por uma obstetra que apressou o
 parto de maneira desastrada. O dia em que ele veio à luz -- 30 de 
setembro de 2000 -- caiu num sábado, e a médica encarregada do 
procedimento queria terminar seu turno de trabalho mais rápido. Para 
tanto, decidiu estourar a bolsa com líquido amniótico que protege o 
bebê. Só que, ao fazê-lo contrariando todos os manuais de obstetrícia, 
Tito teve o cordão umbilical esmagado e ficou sem oxigênio. A saída, 
nesse caso, era realizar uma cesárea de urgência. A obstetra outra vez 
errou ao demorar demais para abrir o ventre de Anna, mulher de Diogo, e 
Tito permaneceu asfixiado por 45 minutos. O resultado foi uma lesão no 
cérebro que o impede de falar, andar e pegar objetos com as mãos como se
 faz normalmente. A lesão é tão pequena que é invisível aos exames de 
imagem mais modernos. Assim, não comprometeu a capacidade intelectual de
 Tito, um menino vivaz, bem-humorado e, agora, um pré-adolescente típico
 -- com disposição infinita para irritar os pais e uma precoce admiração
 por mulheres altas e esguias.
 Outros autores já trataram das deficiências de seus filhos, em livros 
corajosos como requer a honesta literatura do tipo confessional. Mas 
Diogo o faz sem resvalar na autocomplacência e também evita 
circunvoluções biográficas que se afastam longamente do tema central. 
A Queda
 é também original na forma. Apresenta o exato número de capítulos de 
seu subtítulo: 424. Todos eles curtíssimos, alguns com menos de quatro 
linhas. O número de capítulos espelha o máximo de passos que Tito 
conseguiu dar sem cair, e sem andador, no momento em que Diogo 
finalmente deixou de contá-los -- façanha realizada no dia em que o 
menino foi visitar pela primeira vez o hospital de Veneza onde nascera, 
instalado no palácio bizantino-renascentista da Scuola Grande di San 
Marco. Outro aspecto inédito: muitos dos capítulos são entremeados com 
ilustrações de pinturas venezianas, imagens de família, cenas de filmes e
 até a de um videogame. Elas remetem ao relato imediatamente anterior e 
ajudam a montar o quebra-cabeça construído por Diogo para dar um sentido
 a tudo o que ocorreu após o nascimento de Tito. Em algumas pinturas, 
ele próprio assume o papel de personagem, assim como o faz com relação a
 Anna e Tito, por meio de setas que apontam detalhes que os retratariam.
 Em torno da paralisia cerebral de seu filho, orbitam duas narrativas 
que se imbricam uma na outra: a do drama familiar e a da história das 
ideias e de seu corolário, a arte que se quer expressão da Verdade -- 
com “v” maiúsculo --, seja filosófica, religiosa ou ideológica. Está-se 
falando da arte de Bizâncio, do Renascimento e do Barroco, de que Veneza
 é uma das joias mais ofuscantes, por obra de mestres da arquitetura, da
 pintura e da escultura que a moldaram alinhados com sua geografia 
peculiar. No século XVIII, escreveu o comediógrafo Carlo Goldoni, um dos
 venezianos mais ilustres: “Veneza é uma cidade tão extraordinária que 
não é possível ter dela uma ideia exata sem a ver; os mapas, as plantas,
 as maquetes, as descrições não bastam; é preciso vê-la. Todas as 
cidades do mundo mais ou menos se assemelham; essa não tem semelhança 
com nenhuma. Toda vez que eu a revi depois de longas ausências, surgiu 
em mim um novo espanto. À medida que eu crescia, que aumentavam meus 
conhecimentos, e tinha comparações a fazer, descobria nela novas 
singularidades, novas belezas”.
 Diogo só poderia escrever esse livro em Veneza, ainda que José Dirceu 
não emporcalhasse Tintoretto. Foi nessa cidade sem paralelo, que coroa a
 vaidade do pensamento e da arte, que Diogo se refugiou para escrever 
seus quatro romances. Foi nessa cidade diferente de todas as outras que 
ele conheceu a sua queda particular -- e, nela, reconheceu as nossas 
aspirações evanescentes que insistem em sobreviver em quaisquer 
latitudes. No livro, Veneza continua a ser extraordinária, como na época
 de Goldoni, mas não como um tributo ao engenho humano, e sim à sua 
prepotência, da qual Diogo se despiu existencialmente. Diz ele a VEJA: 
“O nascimento de Tito me fez deixar os romances de lado, porque mudou o 
narrador. Em meus romances, eu era o narrador onisciente, que comandava o
 destino de um bando de personagens idiotas. Depois de Tito, eu me 
tornei o personagem idiota, e meu destino passou a ser narrado por um 
menininho de pernas tortas que nem sabia falar. Morreu a minha soberba 
autoral e, sem ela, era impensável continuar a escrever romances. Dito 
de outra maneira: eu sempre imaginei que saberia manter um razoável 
controle sobre os fatos de minha vida. Tito me mostrou, porém, que eu 
nunca controlei porcaria nenhuma, e que a única possibilidade de 
livre-arbítrio ao meu alcance estava na leitura dos fatos, e não nos 
fatos em si”.
 Nesse exercício de livre-arbítrio, Diogo inicia o livro estabelecendo 
uma conexão entre a paralisia cerebral de seu primogênito e o que chama 
de “estetismo abestalhado”. Mesmerizado pela fachada magnífica do 
hospital de Veneza, arquitetada por Pietro Lombardo em 1489 para a então
 Scuola Grande di San Marco, ele deixou de lado os desastres médicos que
 fizeram a fama daquela instituição e disse a Anna, receosa do parto, 
diante do hospital: “Com esta fachada, aceito até um filho deforme”. A 
frase não deve ser interpretada literalmente, mas como achincalhe 
intelectual, de acordo com Diogo. O arquiteto Pietro Lombardo, louvado 
pelos seus pares e pelos maiores críticos de arte, encarna de tal forma o
 ideal de beleza artística que o poeta Ezra Pound o colocou em sua obra 
magna, 
Os Cantos, como tradução do Bem em contraposição ao Mal,
 simbolizado pela usura. “Pietro Lombardo não se fez com a usura”, 
escreveu Pound. Dessa forma, escreve Diogo, “eu só conseguia associar a 
arte perfeita de Pietro Lombardo a um parto igualmente perfeito. Porque o
 Bem, representado pela arquitetura de Pietro Lombardo, jamais poderia 
gerar o Mal, representado por um erro de parto”.
 Mais adiante, Diogo conta que nasceu em 22 de setembro de 1962, data em
 que o arquiteto modernista franco-suíço Le Corbusier foi convidado a 
projetar uma nova sede para o hospital de Veneza. Teria sido erguido um 
prédio medonho, com blocos de cimento armado, não houvesse Le Corbusier 
morrido seis meses depois de apresentar o projeto, afogado no 
Mediterrâneo. Ou seja, o Mal, personificado pela arquitetura do 
franco-suíço, teria gerado o Bem, visto que Diogo não escolheria o novo 
hospital de Veneza para ter seu filho e, certamente, Tito nasceria em 
perfeitas condições na vizinha Pádua, dotada de um dos melhores 
hospitais da Europa. O Mal do qual nasce o Bem é o exato oposto do que 
proclamam Ezra Pound e todos os teóricos, filósofos e artistas que 
construíram Veneza, o Orgulho da Ciência, o Orgulho do Estado, o Orgulho
 do Sistema. Enfim, o Orgulho da Razão.
 
  Divulgação
O MAL E O BEM - Le Corbusier (à esq., em frente à Scuola Grande di San
 Marco) e Ezra Pound, na Fondamenta delle Zattere: personagens da 
operação literária de Mainardi 
    
 
Por meio desse tipo de operação literária, em que coincidências 
pessoais e históricas se encaixam umas nas outras de maneira tão 
admirável quanto arbitrária, por sempre se tratar de uma interpretação 
dos fatos, lembre-se, Diogo monta seu quebra-cabeça cujas peças unem a 
Veneza de Pietro Lombardo à de Canaletto, os filmes de Abbott e Costello
 aos programas de extermínio de Hitler, a 
Divina Comédia, de Dante Alighieri, a 
Em Busca do Tempo Perdido,
 de Marcel Proust. Completado o quebra-cabeça, ele nos mostra a figura 
de um círculo que abriga não um ser humano de proporções perfeitas, mas o
 pequeno Tito, o inverso do Homem Vitruviano. Com sua paralisia cerebral
 que o obriga a pensar em cada gesto a ser feito, a antecipar cada 
palavra que consegue pronunciar, ele, sim, é o orgulho da razão. Mas da 
razão possível dentro de uma realidade cósmica que simplesmente nos 
ignora. Da nossa razão imperfeita que não raro tem diante de si um 
menino verde.
Dê-se a palavra a Diogo:
 
 
“Tito nasceu verde.
 “Vi-o pela primeira vez em um dos claustros do hospital de Veneza. Eu 
acabara de conversar com o pediatra que acompanhara seu nascimento. Ele 
dissera que Tito permanecera sem ar por tempo demais. Ele dissera também
 que Tito morreria.
 “Voltando à maternidade, depois de conversar com o pediatra, cruzei com
 um menino recém-nascido em uma incubadora. O menino recém-nascido na 
incubadora estava no corredor de um claustro, estacionado em um canto. 
Ninguém o atendia. Onde está o médico? Onde está o enfermeiro? Onde está
 o pai?
 “Olhei-o de relance. Olhei-o novamente. Ele estava imóvel, com o corpo 
mole e um tubo no nariz. Seu rosto era verde. Li seu nome escrito em um 
esparadrapo colado na tampa da incubadora: ‘Mingardi’.
 “Mingardi era igual a mim. Eu era igual a Mingardi. O menino 
recém-nascido na incubadora era meu filho. Mingardi era Mainardi. Até 
nisso o hospital de Veneza errou: em seu nome.
 “Olhei Tito pela última vez. Seu rosto era igual ao meu -- só que o dele era verde.”
No dia 30 de setembro de 2000, Diogo Mainardi caiu com Tito. E começou a
 aprender que saber cair tem muito mais valor do que saber caminhar, 
como ele próprio diz a certa altura.
 
A Queda é um livro magnífico em sua humanidade.
Fonte: 
http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/uma-queda-para-o-alto