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sábado, 6 de dezembro de 2014

Casa aberta





Mais do que em todos os dias e em grandes momentos do ano, as festividades natalinas e as ligadas ao Réveillon causam em nós uma sensação diferente. E o mais interessante é que não apenas representamos ou idealizamos estes eventos, mas os concretizamos, fazemos acontecer momentos de inteira generosidade, gratidão a Deus e às pessoas com as quais convivemos. Expressões de paz, amor, bondade, alegria e esperança nos conectam uns aos outros de uma forma tão objetiva que somos movidos para gestos de exuberância humana: Trocamos presentes; organizamos jantares beneficentes; sorteamos cestas natalinas; realizamos passeios ou viagens com quem amamos; abrimos a casa, etc. Sem contar as centenas de beijos e abraços muito comuns desta época do ano.
Essa sensação extremamente humana nos faz lembrar de como deve ser um lar. Não, às vezes, de como ele é, sujo, violento, insuportável, detestável, mas de como deveria ser, limpo, pacífico, agradável, seguro, acolhedor. A casa da gente precisa ser bem tratada, principalmente em tempos de festa, quando recebemos pessoas queridas que não víamos há anos. É preciso olhar mais para casa, onde as distâncias diminuem e tudo fica mais próximo. É exatamente o que acontece agora, no devido instante em que somos arrancados de nosso próprio mundo, de um mundo fechado, totalitário, racionalista, egoísta para nos relacionarmos com o que há para além de nós mesmos, alcançando assim uma abertura para a alteridade, uma abertura infinita.
Emmanuel Levinas, filósofo, leitor da Bíblia e de Dostoievski, entendia a casa como um ponto de referência, segundo a qual o eu vai em direção à exterioridade do mundo. “O papel privilegiado da casa não consiste em ser o fim da atividade humana, mas em ser a condição e, nesse sentido, o seu começo” (Totalidade e Infinito, p. 144). A casa que sou eu e a casa que é o mundo vivem agora uma conexão tão intensa a ponto de um querer humanizar o outro e vice-versa. “Simultaneamente fora e dentro, vai para fora a partir de uma intimidade. Por outro lado, a intimidade abre-se dentro de uma casa, que se situa nesse fora” (idem, p. 145).  
A ilustração da casa, sugerida por Levinas, para demonstrar a pertinência de nossas relações com os excluídos, com as minorias desfavorecidas, os pobres, a viúva, o órfão e o estrangeiro é cada vez mais significativa e atual. A recorrente imagem da “casa aberta”, neste período do ano, tal como deve ser em toda a vida, receptiva ao outro, é muito viva na música de Arnaldo Antunes, “a casa é sua”:
Não me falta cadeira/ Não me falta sofá /Só falta você/ sentada na sala/ Só falta você estar
Não me falta parede/ E nela uma porta pra você entrar/ Não me falta tapete/ Só falta o seu pé descalço pra pisar
Não me falta cama/ Só falta você deitar/ Não me falta o sol da manhã/ Só falta você acordar
Pras janelas se abrirem pra mim/ E o vento brincar no quintal/ Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal
A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio
Não me falta banheiro, quarto/ Abajur, sala de jantar/ Não me falta cozinha/ Só falta a campainha tocar
Não me falta cachorro/ Uivando só porque você não está/ Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar
Não me falta casa/ Só falta ela ser um lar/ Não me falta o tempo que passa/ Só não dá mais para tanto esperar
Para os pássaros voltarem a cantar/ E a nuvem desenhar um coração flechado/ Para o chão voltar a se deitar/ E a chuva batucar no telhado
Numa sociedade imensamente carente de referências, a casa cheia de gente, onde as famílias se encontram e se transformam a cada encontro, é a realização de qualquer Natal e passagem de ano para alguém, na medida em que simboliza recomeço, renovo, revitalização. Também é uma oportunidade de resgate das referências familiares, a partir das quais ressignificamos nosso mundo, nossa casa, nosso lugar no mundo e passamos a ser mais humanos com respeito, amor, tolerância, bondade, justiça e paz.
Enquanto escrevia esse texto, duas figuras clássicas da literatura não me saíam da cabeça, a do filho pródigo usada por Jesus Cristo e a de Ulisses usada por Homero. As duas falam desse regresso ao lar e, curiosamente, a casa estava aberta, no sentido de mostrar uma nova maneira de reaprender a ver o mundo.

Jackislandy Meira de M. Silva, professor, filósofo e teólogo.




domingo, 9 de novembro de 2014

Sociedade de Eu com outrem - linguagem e bondade.

É preciso inverter os termos. Para a tradição filosófica, os conflitos entre o Mesmo e o Outro resolvem-se pela teoria em que o Outro se reduz ao Mesmo ou, concretamente, pela comunidade do Estado em que sob o poder anônimo, ainda que inteligível, o Eu reencontra a guerra na opressão tirânica que sofre da parte da totalidade. A Ética, em que o Mesmo tem em conta o irredutível Outrem, dependeria da opinião. O esforço deste livro vai no sentido de captar no discurso uma relação não alérgica com a alteridade, descobrir nele o Desejo - onde o poder, por essência assassino do Outro, se torna, em face do Outro e "contra todo o bom senso", impossibilidade do assassínio, consideração do Outro na justiça. O nosso esforço consiste concretamente em manter, na comunidade anônima, a sociedade de Eu com outrem - linguagem e bondade. Esta relação não é pré-filosófica, porque não violenta o eu, não lhe é imposta brutalmente de fora, contra a sua vontade, ou com o seu desconhecimento como opinião; mais exatamente, é-lhe imposta, para além de toda a violência, de uma violência que o põe inteiramente em questão. A relação ética, oposta à filosofia primeira da identificação da liberdade e do poder, não é contra a verdade, dirige-se ao ser na sua exterioridade absoluta e cumpre a própria intenção que anima a caminhada para a verdade.

LEVINÁS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. 3ª ed. Portugal, Lisboa: Edições 70, 2008, p. 34

domingo, 6 de abril de 2014

Oh, o outro!



Às vezes até mesmo os filósofos cedem à facilidade. Quando estão totalmente perdidos, quando não sabem mais como imperar e se fazer ouvir, sacam suas formulazinhas mágicas. A mais “hype”, nos dias de hoje, é tão simples quanto “bom dia” ou “obrigado”; é “o Outro” ou ainda “Outrem”. Nosso filósofo, que no início da noite se apresentou modestamente como fenomenólogo, não fará uso dela senão com prudência. Aliás, o fenomenólogo é por natureza um sujeito circunspecto: é o cara que sabe que, sob o mapa rodoviário, há florestas, lagos, rios, em suma, que olha para a estrada e não confia exclusivamente no GPS. Eis por que ele saberá evitar pronunciar “o Outro” com demasiada ênfase, pois, se vocalizarmos pesadamente o O maiúsculo, a palavra fica ridícula. Mas tampouco a lançará com a displicência dos que dizem “o Outro” como se falassem dos “outros”, das “pessoas”, do “povo” ou dos “burgueses”, pois seu território é a terra escarpada da ética e não a sala de espera da banalidade social. Imporá a fórmula sem “pathos” e sem despudor. Apresentá-la no momento oportuno é fundamental. Cedo demais, o filósofo seria tomado por laborioso charlatão. Tarde demais, quando cada um só pensa em si, ninguém irá ouvi-lo. “O Outro” casa perfeitamente com uma salada, quando já comemos o suficiente para ansiar por um pouco de transcendência. Ele pode começara afirmando: “Temos que saber respeitar a alteridade do outro”(durante uma conversa sobre assimilação dos imigrantes); “O mais bonito é encontrar o Outro”(sobre férias na Tailândia); “Precisamos sair da ditadura do Mesmo e conseguir pensar no Outro” (sobre geopolítica); ou ainda: “É impossível apreender plenamente a alteridade do Outro” (sobre um caso de adultério). Que azar, nosso herói esbarra com uma dificuldade: um beócio fanático por fenomenologia transcendental. O qual está se lixando para a inobstante respeitável alteridade do Outro e rebate num tom de gangue de rua: “Oh, o outro!” O fenomenólogo não se desarma e aceita o diálogo (o que, em linguagem filosófica, significa o monólogo): “O que é o Outro? Nada. Porque não é uma coisa.” E abram alas! “Claro, podemos reificar o Outro homem, o outro eu, o alter ego, fazer dele um mero objeto, de prazer ou de ódio. É tão mais simples assimilar o outro a um papel social... Mas então você reduz um sujeito humano ao cognoscível. Ora, o Outro me escapa por princípio.” Se o intrometido não responder nada, é porque está desestabilizado. O fenomenólogo pode então pronunciar o nome do grande pensador do Outro sem temor de desencadear a hilaridade geral: Levinas, prenome Emmanuel, filósofo do século XX nascido na Lituânia (daí seu sobrenome esquisito) e naturalizado francês em 1930. “Para Levinas”, continua o alterófilo, “a ética não é uma seção entre outras da Filosofia, mas seu eixo principal. Por quê? Porque a ética não é fruto de uma reflexão abstrata sobre os nossos atos, mas da experiência perceptiva do Outro homem, de Outrem. Quem é o Outro? É alguém que possui todas as minhas características, um outro eu, com suas percepções, seus sentimentos, seus pensamentos. Mas que todavia escapa à inspeção geral promovida pelo Outro. Na experiência mais simples, o Outro me desafia. Descrever o que se passa permite, então, descobrir tesouros éticos. O Outro apresenta-se normalmente sob o aspecto de um rosto. Esse rosto não é uma coisa a ser analisada, mas um Outro encontrar. Claro, tenta-se frequentemente mascarar essa indigência do rosto conferindo-lhe conteúdo. Mas o rosto é a oferenda de uma vulnerabilidade essencial. Não são as religiões que fundam a moral, mas é a percepção do rosto do Outro que decreta regras, de maneira imanente: ‘O rosto é o que não podemos matar, ou pelo menos aquilo cujo sentido consiste em dizer: Não matarás’, escreve Levinas.” Se o chato não pagar uma penitência depois dessa bela tirada e continuar sem compreender a beleza do Outro, só resta ao nosso filósofo consolar-se dizendo que, decididamente, os Outros são sempre os Mesmos.

In ORTOLI, Sven. Pequeno Manual para Sobreviver a um Papo-cabeça. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 89-92

quarta-feira, 5 de março de 2014

Levinas: ponto de subversão



“Mas eu penso que a relação do estrangeiro com o estrangeiro, tornando-se amor e abnegação, atesta mais a ordem de Deus. Sempre admirei, na Bíblia, a fórmula: ‘Amarás o estrangeiro’. Essa relação pode se prolongar nas relações fraternais, mas é certamente na relação com outro homem, em meus deveres, em minhas obrigações, em que lhe diz respeito, que há, para mim, a palavra de Deus. É nesse ponto que a subversão considerável da ordem natural se produz: alguém, que não me diz respeito, me diz respeito, é bem isso o paradoxo do amor do estrangeiro. Inicialmente, ser, é persistir em seu ser. É nesses termos que Spinoza entende a existência. Ser é o esforço de ser, o fato de perseverar em seu ser. E eis de repente uma ruptura desse esforço. Em minha responsabilidade no tocante a outrem, que logicamente nada é, que é outro, que é separado, que é estrangeiro. Eu tenho essa responsabilidade a partir do momento em que abordo o outro homem. Nesse sentido, falo aqui da palavra de Deus que converte a perseverança em meu ser em solicitude para com outrem”

POIRIÉ, François. Emmanuel Lévinas: ensaio e entrevistas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 99-100.

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sábado, 6 de dezembro de 2014

Casa aberta





Mais do que em todos os dias e em grandes momentos do ano, as festividades natalinas e as ligadas ao Réveillon causam em nós uma sensação diferente. E o mais interessante é que não apenas representamos ou idealizamos estes eventos, mas os concretizamos, fazemos acontecer momentos de inteira generosidade, gratidão a Deus e às pessoas com as quais convivemos. Expressões de paz, amor, bondade, alegria e esperança nos conectam uns aos outros de uma forma tão objetiva que somos movidos para gestos de exuberância humana: Trocamos presentes; organizamos jantares beneficentes; sorteamos cestas natalinas; realizamos passeios ou viagens com quem amamos; abrimos a casa, etc. Sem contar as centenas de beijos e abraços muito comuns desta época do ano.
Essa sensação extremamente humana nos faz lembrar de como deve ser um lar. Não, às vezes, de como ele é, sujo, violento, insuportável, detestável, mas de como deveria ser, limpo, pacífico, agradável, seguro, acolhedor. A casa da gente precisa ser bem tratada, principalmente em tempos de festa, quando recebemos pessoas queridas que não víamos há anos. É preciso olhar mais para casa, onde as distâncias diminuem e tudo fica mais próximo. É exatamente o que acontece agora, no devido instante em que somos arrancados de nosso próprio mundo, de um mundo fechado, totalitário, racionalista, egoísta para nos relacionarmos com o que há para além de nós mesmos, alcançando assim uma abertura para a alteridade, uma abertura infinita.
Emmanuel Levinas, filósofo, leitor da Bíblia e de Dostoievski, entendia a casa como um ponto de referência, segundo a qual o eu vai em direção à exterioridade do mundo. “O papel privilegiado da casa não consiste em ser o fim da atividade humana, mas em ser a condição e, nesse sentido, o seu começo” (Totalidade e Infinito, p. 144). A casa que sou eu e a casa que é o mundo vivem agora uma conexão tão intensa a ponto de um querer humanizar o outro e vice-versa. “Simultaneamente fora e dentro, vai para fora a partir de uma intimidade. Por outro lado, a intimidade abre-se dentro de uma casa, que se situa nesse fora” (idem, p. 145).  
A ilustração da casa, sugerida por Levinas, para demonstrar a pertinência de nossas relações com os excluídos, com as minorias desfavorecidas, os pobres, a viúva, o órfão e o estrangeiro é cada vez mais significativa e atual. A recorrente imagem da “casa aberta”, neste período do ano, tal como deve ser em toda a vida, receptiva ao outro, é muito viva na música de Arnaldo Antunes, “a casa é sua”:
Não me falta cadeira/ Não me falta sofá /Só falta você/ sentada na sala/ Só falta você estar
Não me falta parede/ E nela uma porta pra você entrar/ Não me falta tapete/ Só falta o seu pé descalço pra pisar
Não me falta cama/ Só falta você deitar/ Não me falta o sol da manhã/ Só falta você acordar
Pras janelas se abrirem pra mim/ E o vento brincar no quintal/ Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal
A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio
Não me falta banheiro, quarto/ Abajur, sala de jantar/ Não me falta cozinha/ Só falta a campainha tocar
Não me falta cachorro/ Uivando só porque você não está/ Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar
Não me falta casa/ Só falta ela ser um lar/ Não me falta o tempo que passa/ Só não dá mais para tanto esperar
Para os pássaros voltarem a cantar/ E a nuvem desenhar um coração flechado/ Para o chão voltar a se deitar/ E a chuva batucar no telhado
Numa sociedade imensamente carente de referências, a casa cheia de gente, onde as famílias se encontram e se transformam a cada encontro, é a realização de qualquer Natal e passagem de ano para alguém, na medida em que simboliza recomeço, renovo, revitalização. Também é uma oportunidade de resgate das referências familiares, a partir das quais ressignificamos nosso mundo, nossa casa, nosso lugar no mundo e passamos a ser mais humanos com respeito, amor, tolerância, bondade, justiça e paz.
Enquanto escrevia esse texto, duas figuras clássicas da literatura não me saíam da cabeça, a do filho pródigo usada por Jesus Cristo e a de Ulisses usada por Homero. As duas falam desse regresso ao lar e, curiosamente, a casa estava aberta, no sentido de mostrar uma nova maneira de reaprender a ver o mundo.

Jackislandy Meira de M. Silva, professor, filósofo e teólogo.




domingo, 9 de novembro de 2014

Sociedade de Eu com outrem - linguagem e bondade.

É preciso inverter os termos. Para a tradição filosófica, os conflitos entre o Mesmo e o Outro resolvem-se pela teoria em que o Outro se reduz ao Mesmo ou, concretamente, pela comunidade do Estado em que sob o poder anônimo, ainda que inteligível, o Eu reencontra a guerra na opressão tirânica que sofre da parte da totalidade. A Ética, em que o Mesmo tem em conta o irredutível Outrem, dependeria da opinião. O esforço deste livro vai no sentido de captar no discurso uma relação não alérgica com a alteridade, descobrir nele o Desejo - onde o poder, por essência assassino do Outro, se torna, em face do Outro e "contra todo o bom senso", impossibilidade do assassínio, consideração do Outro na justiça. O nosso esforço consiste concretamente em manter, na comunidade anônima, a sociedade de Eu com outrem - linguagem e bondade. Esta relação não é pré-filosófica, porque não violenta o eu, não lhe é imposta brutalmente de fora, contra a sua vontade, ou com o seu desconhecimento como opinião; mais exatamente, é-lhe imposta, para além de toda a violência, de uma violência que o põe inteiramente em questão. A relação ética, oposta à filosofia primeira da identificação da liberdade e do poder, não é contra a verdade, dirige-se ao ser na sua exterioridade absoluta e cumpre a própria intenção que anima a caminhada para a verdade.

LEVINÁS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. 3ª ed. Portugal, Lisboa: Edições 70, 2008, p. 34

domingo, 6 de abril de 2014

Oh, o outro!



Às vezes até mesmo os filósofos cedem à facilidade. Quando estão totalmente perdidos, quando não sabem mais como imperar e se fazer ouvir, sacam suas formulazinhas mágicas. A mais “hype”, nos dias de hoje, é tão simples quanto “bom dia” ou “obrigado”; é “o Outro” ou ainda “Outrem”. Nosso filósofo, que no início da noite se apresentou modestamente como fenomenólogo, não fará uso dela senão com prudência. Aliás, o fenomenólogo é por natureza um sujeito circunspecto: é o cara que sabe que, sob o mapa rodoviário, há florestas, lagos, rios, em suma, que olha para a estrada e não confia exclusivamente no GPS. Eis por que ele saberá evitar pronunciar “o Outro” com demasiada ênfase, pois, se vocalizarmos pesadamente o O maiúsculo, a palavra fica ridícula. Mas tampouco a lançará com a displicência dos que dizem “o Outro” como se falassem dos “outros”, das “pessoas”, do “povo” ou dos “burgueses”, pois seu território é a terra escarpada da ética e não a sala de espera da banalidade social. Imporá a fórmula sem “pathos” e sem despudor. Apresentá-la no momento oportuno é fundamental. Cedo demais, o filósofo seria tomado por laborioso charlatão. Tarde demais, quando cada um só pensa em si, ninguém irá ouvi-lo. “O Outro” casa perfeitamente com uma salada, quando já comemos o suficiente para ansiar por um pouco de transcendência. Ele pode começara afirmando: “Temos que saber respeitar a alteridade do outro”(durante uma conversa sobre assimilação dos imigrantes); “O mais bonito é encontrar o Outro”(sobre férias na Tailândia); “Precisamos sair da ditadura do Mesmo e conseguir pensar no Outro” (sobre geopolítica); ou ainda: “É impossível apreender plenamente a alteridade do Outro” (sobre um caso de adultério). Que azar, nosso herói esbarra com uma dificuldade: um beócio fanático por fenomenologia transcendental. O qual está se lixando para a inobstante respeitável alteridade do Outro e rebate num tom de gangue de rua: “Oh, o outro!” O fenomenólogo não se desarma e aceita o diálogo (o que, em linguagem filosófica, significa o monólogo): “O que é o Outro? Nada. Porque não é uma coisa.” E abram alas! “Claro, podemos reificar o Outro homem, o outro eu, o alter ego, fazer dele um mero objeto, de prazer ou de ódio. É tão mais simples assimilar o outro a um papel social... Mas então você reduz um sujeito humano ao cognoscível. Ora, o Outro me escapa por princípio.” Se o intrometido não responder nada, é porque está desestabilizado. O fenomenólogo pode então pronunciar o nome do grande pensador do Outro sem temor de desencadear a hilaridade geral: Levinas, prenome Emmanuel, filósofo do século XX nascido na Lituânia (daí seu sobrenome esquisito) e naturalizado francês em 1930. “Para Levinas”, continua o alterófilo, “a ética não é uma seção entre outras da Filosofia, mas seu eixo principal. Por quê? Porque a ética não é fruto de uma reflexão abstrata sobre os nossos atos, mas da experiência perceptiva do Outro homem, de Outrem. Quem é o Outro? É alguém que possui todas as minhas características, um outro eu, com suas percepções, seus sentimentos, seus pensamentos. Mas que todavia escapa à inspeção geral promovida pelo Outro. Na experiência mais simples, o Outro me desafia. Descrever o que se passa permite, então, descobrir tesouros éticos. O Outro apresenta-se normalmente sob o aspecto de um rosto. Esse rosto não é uma coisa a ser analisada, mas um Outro encontrar. Claro, tenta-se frequentemente mascarar essa indigência do rosto conferindo-lhe conteúdo. Mas o rosto é a oferenda de uma vulnerabilidade essencial. Não são as religiões que fundam a moral, mas é a percepção do rosto do Outro que decreta regras, de maneira imanente: ‘O rosto é o que não podemos matar, ou pelo menos aquilo cujo sentido consiste em dizer: Não matarás’, escreve Levinas.” Se o chato não pagar uma penitência depois dessa bela tirada e continuar sem compreender a beleza do Outro, só resta ao nosso filósofo consolar-se dizendo que, decididamente, os Outros são sempre os Mesmos.

In ORTOLI, Sven. Pequeno Manual para Sobreviver a um Papo-cabeça. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 89-92

quarta-feira, 5 de março de 2014

Levinas: ponto de subversão



“Mas eu penso que a relação do estrangeiro com o estrangeiro, tornando-se amor e abnegação, atesta mais a ordem de Deus. Sempre admirei, na Bíblia, a fórmula: ‘Amarás o estrangeiro’. Essa relação pode se prolongar nas relações fraternais, mas é certamente na relação com outro homem, em meus deveres, em minhas obrigações, em que lhe diz respeito, que há, para mim, a palavra de Deus. É nesse ponto que a subversão considerável da ordem natural se produz: alguém, que não me diz respeito, me diz respeito, é bem isso o paradoxo do amor do estrangeiro. Inicialmente, ser, é persistir em seu ser. É nesses termos que Spinoza entende a existência. Ser é o esforço de ser, o fato de perseverar em seu ser. E eis de repente uma ruptura desse esforço. Em minha responsabilidade no tocante a outrem, que logicamente nada é, que é outro, que é separado, que é estrangeiro. Eu tenho essa responsabilidade a partir do momento em que abordo o outro homem. Nesse sentido, falo aqui da palavra de Deus que converte a perseverança em meu ser em solicitude para com outrem”

POIRIÉ, François. Emmanuel Lévinas: ensaio e entrevistas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 99-100.

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