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domingo, 16 de fevereiro de 2014

"Conhece-te a ti mesmo, mas não fique íntimo" de Luis Fernando Veríssimo

A escrita nasceu da necessidade de não esquecer. O primeiro hominídeo que pensou "preciso me lembrar disto" deve ter olhado em volta e procurado alguma coisa que ele não sabia o que era. Era lápis e papel, que ainda não tinham sido inventados. A angústia primordial da humanidade foi a de perder o pensamento fugidio. Imagine quantas boas ideias não desapareceram para sempre por falta de algo que as retivesse na memória e no mundo. A história da civilização teria sido outra se, antes de inventar a roda, o homem tivesse inventado a Bic e o bloco de notas.
*
As espécies que não desenvolveram a escrita se valem da memória instintiva. O salmão sabe o caminho do lugar onde nasceu sem consultar um parente ou um mapa. Já o homem pode ser definido como o animal que precisa consultar as suas notas. Nas sociedades não letradas as lembranças sobrevivem na recitação familiar e nos mitos tribais, que são a memória ritualizada. Todas as outras dependem do memorando. Mas mesmo com todas as formas de anotações inventadas pelo homem desde o tempo das cavernas, inclusive, hoje, o "notebook" eletrônico, a angústia persiste.
*
O que está aí em cima é o resumo de um texto que escrevi há anos, depois de ter uma ideia para crônica, confiar que bastaria anotar uma frase para me lembrar da ideia - e imediatamente esquecê-la. Eu já havia desistido de ter um bloco de notas sempre à mão para o caso de sonhar com uma boa ideia ou ter um lampejo criativo, porque minha experiência era que nenhuma ideia sonhada resiste à luz do dia e os lampejos aproveitáveis aconteciam invariavelmente no chuveiro. Mas desta vez o lampejo foi num lugar seco e anotei a frase: "Conhece-te a ti mesmo, mas não fique íntimo". Boa, boa. Só que quando sentei para escrever a crônica a frase tinha perdido o sentido. Não me ajudava a me lembrar de nada. E não me lembrou de nada até agora, quando, por acaso, a vi escrita num bloco de notas antigo e finalmente me entendi.
*
O que eu quis dizer, eu acho, é que é positivo e saudável o ser humano se conhecer, desvendar todo os seus mistérios e exorcizar todas as suas culpas, com ou sem orientação cientifica ou religiosa. Ou será que é mesmo? Talvez o conselho mais prático e racional seja se conhecer, sim, mas evitar muita intimidade com esse ser que atende pelo nosso nome, tem os mesmos pais e o mesmo CPF, torce pelo mesmo time e nos levará junto quando morrer. Como em qualquer relacionamento humano, nas nossas relações com nós mesmos deve haver um certo recato, e cuidado para evitar mal-entendidos. Familiaridade demais pode gerar desprezo e revolta. Quem sabe o que nos espera lá no fundo sombrio, nos nossos mergulhos de autoconhecimento? Melhor ficar na superfície, que é mais clara e tranquila.
*
Junto com a frase anotada anos atrás há outra, também para me lembrar de uma ideia para crônica. A frase é: "O abacaxi é fruta a contragosto". Mas esta eu não tenho a menor ideia do que queria dizer.

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,sem-intimidades,1130947,0.htm

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Hélas

Luis Fernando Verissimo - O Estado de S. Paulo
 
Deus criou o Céu e a Terra e o Dia e a Noite, e deu nome às plantas, aos bichos e às coisas. Mas também era preciso dar nome aos sentimentos e às emoções, a perplexidades e a situações inusitadas e, sentindo-se despreparado para a tarefa, Deus criou os franceses.
Os franceses têm a expressão certa para tudo, inclusive para o inexprimível, que eles chamam de "je ne sait quoi". O francês é a única língua do mundo com uma definição para a incapacidade de definir. Eles não apenas têm um nome para "fazer beicinho", "bouder" como inventaram uma peça da casa que teoricamente existe só para a mulher se recolher enquanto o faz, o "boudoir". Outra expressão francesa que não ocorreria a mais ninguém é "esprit d’escalier", ou o espírito que só se faz presente quando a gente já está descendo a escada, depois de falhar na hora de ser brilhante. Se não fossem os franceses, não saberíamos como chamar a sensação de que a boa frase ou a resposta arrasadora geralmente só nos vêm quando não adianta mais. Na escada ou, mais recentemente, no elevador.
Outra boa frase francesa era "epater les bourgeois". Caiu em desuso, em primeiro lugar, porque todas as frases prontas francesas foram ficando antigas num mundo cada vez mais americano, mas também porque foi ficando cada vez mais difícil espantar a burguesia. Depois da revolução sexual e do escancaramento da privacidade, nada mais espanta ninguém e o que antes chocava hoje vira moda.
O que ainda funciona - tanto que, no Brasil, se transformou num gênero jornalístico - é "epater la gauche", contrariar o pensamento convencionalmente progressista, ou apenas correto, com reacionarismo explícito. Os "epateurs" da esquerda podem ser divertidos, mas como em todo "succès d’escandale" (que remédio, sou um antigo) nunca se sabe se o sucesso se deve ao talento para escandalizar ou se o escândalo dispensa o talento, e basta ser contra para aparecer. De qualquer maneira, "hélas", aos poucos as frases feitas francesas vão perdendo a atualidade e - ça va sans dire - a utilidade
Papo vovô. Lucinda, nossa neta de 5 anos, gosta de brincar de modelo. E como toda modelo precisa de um nome artístico, ela nos informou que seu "nom de passarelle" é Uvinha Tessler. Não entendemos bem. Não seria Evinha Tessler? Não, era Uvinha mesmo. E ela desfila fazendo caras de Uvinha Tessler.

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,helas,1076499,0.htm

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domingo, 16 de fevereiro de 2014

"Conhece-te a ti mesmo, mas não fique íntimo" de Luis Fernando Veríssimo

A escrita nasceu da necessidade de não esquecer. O primeiro hominídeo que pensou "preciso me lembrar disto" deve ter olhado em volta e procurado alguma coisa que ele não sabia o que era. Era lápis e papel, que ainda não tinham sido inventados. A angústia primordial da humanidade foi a de perder o pensamento fugidio. Imagine quantas boas ideias não desapareceram para sempre por falta de algo que as retivesse na memória e no mundo. A história da civilização teria sido outra se, antes de inventar a roda, o homem tivesse inventado a Bic e o bloco de notas.
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As espécies que não desenvolveram a escrita se valem da memória instintiva. O salmão sabe o caminho do lugar onde nasceu sem consultar um parente ou um mapa. Já o homem pode ser definido como o animal que precisa consultar as suas notas. Nas sociedades não letradas as lembranças sobrevivem na recitação familiar e nos mitos tribais, que são a memória ritualizada. Todas as outras dependem do memorando. Mas mesmo com todas as formas de anotações inventadas pelo homem desde o tempo das cavernas, inclusive, hoje, o "notebook" eletrônico, a angústia persiste.
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O que está aí em cima é o resumo de um texto que escrevi há anos, depois de ter uma ideia para crônica, confiar que bastaria anotar uma frase para me lembrar da ideia - e imediatamente esquecê-la. Eu já havia desistido de ter um bloco de notas sempre à mão para o caso de sonhar com uma boa ideia ou ter um lampejo criativo, porque minha experiência era que nenhuma ideia sonhada resiste à luz do dia e os lampejos aproveitáveis aconteciam invariavelmente no chuveiro. Mas desta vez o lampejo foi num lugar seco e anotei a frase: "Conhece-te a ti mesmo, mas não fique íntimo". Boa, boa. Só que quando sentei para escrever a crônica a frase tinha perdido o sentido. Não me ajudava a me lembrar de nada. E não me lembrou de nada até agora, quando, por acaso, a vi escrita num bloco de notas antigo e finalmente me entendi.
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O que eu quis dizer, eu acho, é que é positivo e saudável o ser humano se conhecer, desvendar todo os seus mistérios e exorcizar todas as suas culpas, com ou sem orientação cientifica ou religiosa. Ou será que é mesmo? Talvez o conselho mais prático e racional seja se conhecer, sim, mas evitar muita intimidade com esse ser que atende pelo nosso nome, tem os mesmos pais e o mesmo CPF, torce pelo mesmo time e nos levará junto quando morrer. Como em qualquer relacionamento humano, nas nossas relações com nós mesmos deve haver um certo recato, e cuidado para evitar mal-entendidos. Familiaridade demais pode gerar desprezo e revolta. Quem sabe o que nos espera lá no fundo sombrio, nos nossos mergulhos de autoconhecimento? Melhor ficar na superfície, que é mais clara e tranquila.
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Junto com a frase anotada anos atrás há outra, também para me lembrar de uma ideia para crônica. A frase é: "O abacaxi é fruta a contragosto". Mas esta eu não tenho a menor ideia do que queria dizer.

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,sem-intimidades,1130947,0.htm

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Hélas

Luis Fernando Verissimo - O Estado de S. Paulo
 
Deus criou o Céu e a Terra e o Dia e a Noite, e deu nome às plantas, aos bichos e às coisas. Mas também era preciso dar nome aos sentimentos e às emoções, a perplexidades e a situações inusitadas e, sentindo-se despreparado para a tarefa, Deus criou os franceses.
Os franceses têm a expressão certa para tudo, inclusive para o inexprimível, que eles chamam de "je ne sait quoi". O francês é a única língua do mundo com uma definição para a incapacidade de definir. Eles não apenas têm um nome para "fazer beicinho", "bouder" como inventaram uma peça da casa que teoricamente existe só para a mulher se recolher enquanto o faz, o "boudoir". Outra expressão francesa que não ocorreria a mais ninguém é "esprit d’escalier", ou o espírito que só se faz presente quando a gente já está descendo a escada, depois de falhar na hora de ser brilhante. Se não fossem os franceses, não saberíamos como chamar a sensação de que a boa frase ou a resposta arrasadora geralmente só nos vêm quando não adianta mais. Na escada ou, mais recentemente, no elevador.
Outra boa frase francesa era "epater les bourgeois". Caiu em desuso, em primeiro lugar, porque todas as frases prontas francesas foram ficando antigas num mundo cada vez mais americano, mas também porque foi ficando cada vez mais difícil espantar a burguesia. Depois da revolução sexual e do escancaramento da privacidade, nada mais espanta ninguém e o que antes chocava hoje vira moda.
O que ainda funciona - tanto que, no Brasil, se transformou num gênero jornalístico - é "epater la gauche", contrariar o pensamento convencionalmente progressista, ou apenas correto, com reacionarismo explícito. Os "epateurs" da esquerda podem ser divertidos, mas como em todo "succès d’escandale" (que remédio, sou um antigo) nunca se sabe se o sucesso se deve ao talento para escandalizar ou se o escândalo dispensa o talento, e basta ser contra para aparecer. De qualquer maneira, "hélas", aos poucos as frases feitas francesas vão perdendo a atualidade e - ça va sans dire - a utilidade
Papo vovô. Lucinda, nossa neta de 5 anos, gosta de brincar de modelo. E como toda modelo precisa de um nome artístico, ela nos informou que seu "nom de passarelle" é Uvinha Tessler. Não entendemos bem. Não seria Evinha Tessler? Não, era Uvinha mesmo. E ela desfila fazendo caras de Uvinha Tessler.

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,helas,1076499,0.htm

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