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terça-feira, 20 de maio de 2014

ESPERANÇA DO MUNDO por Luiz Felipe Pondé

"Nunca confiei na felicidade", diz o personagem de Robert Duvall no filme "Tender Mercies" ("A Força do Carinho", título brasileiro bem infeliz para o filme), papel com o qual ganhou o Oscar de melhor ator em 1983. O filme narra a derrocada de um cantor de música country e sua sofrida redenção, graças ao amor e generosidade de uma mulher. 
No filme, salta aos olhos o deserto do Texas, a solidão de todas as planícies e a total ausência de qualquer metafísica barata, coisa comum hoje no cinema, seja ela moral, psicológica, ambiental ou política. O homem e a mulher são seres abandonados no mundo e devem cuidar de suas vidas porque ninguém mais o fará. 
Aliás, por falar em metafísica, a pior é a política. Mas da política trato apenas por obrigação profissional, porque, como diz Albert Camus nos seus "Cadernos" (o primeiro tem como título "Esperança do Mundo"), ouvindo aqueles que se dedicam à política, podemos apenas concluir que as pessoas se importam pouco com esta parte das suas vidas, uma vez que todos na política mentem.
Acrescentaria, além dos políticos profissionais, os intelectuais que a ela se voltam como redenção do mundo e forma de obrigar os outros a viverem de acordo com os delírios que alimentam em seus gabinetes. 
Enfim, no fundo, a política pouco me interessa. Trato-a assim como quem deve cuidar de uma ferida --do contrário ela se infectará. 
Noutro filme, "Alabama Monroe" (2012), do diretor Felix van Groeningen, a personagem feminina Elise, interpretada por Veerle Baetens, diz algo semelhante ao final: "Sempre soube que tudo aquilo não podia durar, porque a felicidade sempre acaba". Referia-se ela ao amor por seu marido Didier e pela pequena filha morta. 
Sinto-me em casa quando ouço pessoas dizerem coisas assim. Pois se existem apenas "três ou quatro atitudes diante do mundo", como dizia em seu "Breviário da Decomposição" Emil Cioran, filósofo romeno indispensável para quem suspeita que os trágicos gregos são quem tem razão na filosofia, esta é a minha. E seguramente a dele. E também a de Camus. 
Na mesma obra, Cioran faz um diagnóstico preciso: "A obsessão pelos remédios marca o fim de uma civilização, e, pela salvação, o fim da filosofia". Por isso ele afirma que desistiu da filosofia quando viu que em Kant não havia nenhuma tristeza. Os filósofos, diz Cioran, quase todos acabam bem, prova máxima contra a honestidade deles. 
Sempre sinto um cheiro de mesquinharia quando ouço alguém falar de uma nova dieta. A vida, talvez seja esta sua maior tragédia, se apequena quando não é de algum modo dada em sacrifício. Talvez seja isso que o cristianismo queira dizer quando afirma que só quando se perde a vida se ganha a vida. E não há saída: somos a civilização da mesquinharia. Até Cristo deve ser saudável. 
Sei que Camus considerava o suicídio o único problema filosófico ("O Mito de Sísifo"). E sei também que ele considerava um milagre um momento em que não tivesse que falar de si mesmo (caderno "Esperança do Mundo"). Detalhe: Camus usa expressões como "milagre", conhecia bem teólogos como Blaise Pascal e conceitos como o de "graça", citando-os com precisão. 
Mas eu suspeito que um dos maiores problemas da filosofia, e certamente um dos maiores milagres na vida, para quem tem um temperamento que desconfia da felicidade (trágico), é justamente o problema que Camus diz "ser um bom título": a esperança do mundo. 
Como ter esperança no mundo sem ter que abdicar da capacidade de vê-lo tal como é? Por isso, sinto um halo de graça quando vejo a esperança visitar o mundo. Afora as ilusões, só a generosidade é capaz de acolher a esperança. 
Talvez o próprio Camus dê uma pista neste "Caderno", sendo ele um filósofo, e sabendo, como nós todos, que nós filósofos sofremos da vaidade intelectual como pecado capital. Camus diz que "a obsessão em ter razão é a marca suprema de uma inteligência grosseira". Portanto, talvez, a humildade, virtude capital para Camus, seja a esperança para a filosofia. Ou, como dizia Santo Agostinho, o que falta ao filósofo é chorar.

Autoria de Luiz Felipe Pondé, filósofo e colunista da Folha de SP

Fonte: http://zelmar.blogspot.com.br/2014/05/esperanca-do-mundo.html

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Nôach por Luiz Felipe Pondé


Os eleitos de Deus só têm problemas; a solidão os assola, o sofrimento os persegue

O Deus de Israel não gosta de covardes. Homem, mulher, criança, todos são chamados à coragem, à dor e a tomar decisões difíceis.

Noé (Nôach), foi um desses heróis. Erich Auerbach, no seu "Mímesis", afirma que Deus testa seus heróis e heroínas, levando-os ao limite do insuportável, para que, sobrevivendo ao teste, descubram por que foram eleitos. Deus funda, assim, a ideia de autoconhecimento na literatura ocidental.

"E os que vieram, macho e fêmea, de toda criatura vieram, como Deus lhe havia ordenado; e o Eterno o fechou para protegê-lo. E foi o dilúvio quarenta dias sobre a terra, e multiplicaram-se as águas, e alcançaram a arca, e levantou-se de sobre a terra" (Gênesis, 7; 16-17, edição hebraica).

O filme "Noé", de Darren Aronofsky, é sobre eleição. "Eleição" é um conceito, muitas vezes, pouco compreendido pelo mundo contemporâneo, maníaco por felicidade "projetos do self" e sucesso.

Os eleitos pelo Deus de Israel só têm problemas; a solidão os assola, o medo e o sofrimento os persegue. Erich Auerbach entende muito mais de "eleição" na literatura israelita do que muito rabino, pastor e padre por aí, obcecados por vender autoajuda espiritual. "Dificilmente, um deles não sofre, como Adão, a mais profunda humilhação...", afirma Auerbach.

O diretor do filme, faz licenças poéticas, e algumas delas (não tenho como saber o quão consciente ele estava quando as fez) muito sofisticadas, levando em conta a "dramaturgia" do Velho Testamento, como falam os cristãos quando se referem à Bíblia hebraica.

Uma delas, muito pontual, é o uso da pequena tira de couro que o pai de Noé, e depois o próprio, enrola no braço: uma referência direta ao "tefilin" (filactério). A palavra hebraica tem sua raiz em "tefilá", que significa prece. Hoje, ela "virou" um cordão de couro ligado a duas caixinhas que o judeu amarra daquele jeito e também na cabeça (é bem maior do que mostra o filme).

Uma das preces ali contidas é o famoso "Shemá Israel", a qual lembra aos judeus que Deus é um só: "Shemá Israel, Adonai eloheinu, Adonai echad" (Ouve Israel, Adonai é nosso D'us, Adonai é Um"), na tradução feita pelo movimento religioso judaico Chabab.

Outra liberdade de roteiro está na longa discussão acerca das mulheres e da infertilidade da personagem que casará com Sem, filho mais velho de Noé. Na narrativa bíblica sobre o dilúvio não existe esta controvérsia que domina o filme. Sem, Cam e Jafé, filhos de Noé, já entram na arca com suas mulheres.

Mas, se para o homem bíblico o drama é o coração reto que serve a Deus, para a mulher, o drama é a fertilidade. Muitos criticam esse enfoque porque entendem que o homem tem um drama moral acerca da liberdade da vontade (tema muito bem trabalhado no filme) e a mulher tem um drama "fisiológico", portanto, alheio à liberdade.

Mas, ao enfrentar o mal da infertilidade e ao ser objeto de milagre (como no filme e em vários casos na Bíblia), a mulher revela sua vocação de ser a (desesperada) terra (in)fértil onde Deus deixa sua marca.

O medo da infertilidade no mundo semítico antigo acompanha muitas heroínas, como Sara, mulher de Abraão, e Rachel, mulher preferida de Jacó (mais tarde, chamado Israel, pai das 12 tribos).

O profeta Isaías, 54:1-55:5, compara as agonias e posteriores alegrias da mulher infértil (ou desamparada ou solitária) às águas de Noé: "Canta, ó estéril que não deste à luz; rompe em cânticos, e clama com alegria, tu que não tiveste dores de parto; porque mais serão os filhos da mulher solitária do que os da casada, diz o Eterno".

Adiante, o profeta compara a promessa de Deus a Noé, de que não mais lançará águas sobre a face da terra, com a promessa feita à infeliz de que Ele não terá mais ira contra sua revolta nem a repreenderá.

Sabe-se que Deus escolhe Rachel como a que "amolece" Seu coração, quando Ele fica irritado com o povo israelita. Está aí o mistério da dor feminina que encanta até o Eterno.

Quando você ouvir alguém dizer que a Bíblia é um livro bobo, saiba que você está diante de um ignorante. Boa semana


Fonte: http://avaranda.blogspot.com.br/2014/04/noach-luiz-felipe-ponde.html

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Euzinho

A modernidade é uma declaração de guerra à ideia de tradição. Mas nós, modernos, continuamos a não perceber isso, e o resultado é que suspiramos como bobos diante do que pensamos ser uma tradição, apesar de detestarmos qualquer sinal verdadeiro de tradição.
Procuramos tradições em workshops xamânicos, espaços budistas nas Perdizes, livros baratos sobre como viviam os druidas.
São muitas as definições de tradição. Não vou dar mais uma, mas sim elencar atitudes que estão muito mais próximas do que é uma tradição do que cursos de cabala nos Jardins. Nada tenho contra estudar culturas antigas, apenas julgo um equívoco confundir a ideia de tradição com modas de uma espiritualidade de consumo.
Não existe xamã na Vila Madalena. A cabala não vai salvar meu casamento. Meditação não fará de mim uma pessoa melhor no trabalho. Imitar a alimentação de monges tibetanos não aliviará minha inveja. Frequentar cachoeiras indígenas não fará de mim uma pessoa menos consumista. Tatuar palavras védicas não me impedirá de fazer qualquer negócio pra viver mais.
Visitar templos no Vietnã não fará de mim alguém menos dependente das redes sociais. Desejar isso fará de mim apenas ridículo.
Uma tradição, pra começo de conversa, nada tem a ver com "escolha". Não se escolhe uma tradição. Neste sentido, muitos rabinos têm razão em desconfiar de conversos ao judaísmo por opção. Uma tradição funciona sempre contra sua vontade, à revelia de sua consciência, submetendo-a ao imperativo que escapa à razão mais imediata. A única forma de tradição a que a maioria de nós ainda tem acesso é a língua materna.
Colocar os filhos pra dormir todos os dias é mais próximo do que é uma tradição do que estudar velhos símbolos indígenas ou brincar com eles em pousadas nas chapadas. Não poder sair à noite porque um dos filhos tem febre é tradição. Velá-lo durante a noite é tradição. Morrer de medo durante esta noite é tradição. Nada menos tradicional do que uma mulher sem filhos. Ela até pode aprender capoeira, mas será apenas iludida, se sua intenção for experimentar a tradição afro.
Nada tenho contra mulheres não terem filhos, digo apenas, de forma modesta, o que é uma tradição.
Homens que sustentam sua mulher e filhos são tradicionais, mesmo em tempos como os nossos em que todo mundo mente sobre isso. Levar seus velhos ao hospital, enterrá-los, em agonia ou com absoluta indiferença, é tradição. Andar pela casa à noite pra ver se tem algum ladrão, enquanto sua mulher e filhos ficam protegidos no quarto, é tradição. Ser obrigado a ser corajoso é uma tradição, maldita, mas é.
Pular sete ondas numa Copacabana lotada nada tem de tradicional, é apenas chato. Tradição é ir pra guerra se não sua mulher achará você covarde. Lavar louça, fazer o jantar, lavar banheiros, morrer de medo diante do médico. Falar disso pra quem vive uma situação semelhante a você. Ter que passar nas provas na escola. Ter que ser melhor do que os colegas. Sangrar todo mês.
Tradição é pagar contas, enfrentar finais de semana vazios e não desistir. É sonhar com um futuro que nunca chega. Engravidar a namorada. Ter ciúmes. Odiar Deus porque somos mortais. Ter inveja da amiga mais bonita, do amigo mais forte e inteligente. É cuidar dos netos. É educar os mais jovens e não deixar que eles acreditem nas bobagens que inventam.
Tradição funciona como hábitos que se impõem com a força de um vulcão, de um terremoto, de um tsunami, de uma febre amarela. Nada tem a ver com se pintar como aborígenes pra defender reservas indígenas ou abraçar árvores.
Evolução espiritual é um dos top em quem quer "adquirir" uma tradição. Mas esta nada tem a ver com "buscar" uma evolução espiritual como forma de fugir de filhos que têm febre ou compromissos afetivos. A evolução espiritual verdadeira é algo que nos acomete como uma disciplina aterrorizante.
Teste definitivo: você busca evolução espiritual pra aperfeiçoar seu "euzinho"? Lamento dizer que qualquer evolução espiritual (se existir) começa com você esquecer que seu euzinho existe.

ponde.folha@uol.com.br
luiz felipe pondé Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Escreve às segundas.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2014/01/1403270-euzinho.shtml

domingo, 6 de outubro de 2013

Pondé estreia novo programa na TV Cultura

Luiz Felipe PondéO filósofo Luiz Felipe Pondé estreia nesta sexta-feira (04), à meia-noite, seu novo programa na TV Cultura. Comandado por ele, “Peripatético” trará convidados diferentes a cada edição para debater temas contemporâneos da filosofia. Produzido pela Bossa Nova Films, o programa tem um formato inusitado: as discussões acontecem em clima despojado, numa casa de campo, enquanto os convidados caminham ao ar livre. O programa foi inspirado na escola do filósofo grego Aristóteles, que na Antiguidade costumava caminhar com seus discípulos enquanto discutiam filosofia. ”O objetivo é acabar com a ideia de que a filosofia é só para filósofos profissionais”, diz Pondé. Vaidade é o tema discutido no primeiro episódio. Os temas dos próximos 4 episódios já estão definidos e são: sexo, fé, melancolia e casamento – cada um com um conjunto de convidados diferentes. O programa será exibido sempre às sextas-feiras e tem classificação indicativa para 14 anos.


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Sinopse dos episódios

1º episódio – Vaidade
“Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade.” Será que esta frase do Eclesiastes traduz bem a nossa época? Para tratar do assunto, o Peripatético convidou a cineasta Paula Trabulsi, o cirurgião plástico Ed Wilson Rossoe, a atriz Grace Gianoukas e a ex-modelo Silene Zepter.  Para falar de vaidade é preciso sinceridade e autocrítica. Afinal, ela é a mentira que contamos sobre nós mesmos para não encararmos as nossas verdades.
2º episódio – Sexo
Quando sexo é o tema, nos mostramos muito esclarecidos e resolvidos. Todos têm uma opinião, uma experiência pra compartilhar, nem que seja uma mentira pra contar. Será que com a revolução sexual, a “conquistada” igualdade entre os sexos fez mulheres e homens mais felizes na cama? A sexóloga Gina Strozzi, a católica Regina Fasanella, estudante disposta a casar virgem, o artista plástico Junior Tupiná e a atriz de filmes pornô Vivi Fernandez foram convidados pelo programa Peripatético, com Luiz Felipe Pondé, para falar, falar e falar sobre sexo.
3º episódio – Fé
Falar de religião é uma forma de interrogar sobre a condição humana; é caminhar entre a fé e a razão. Hoje se discute Deus com palavras de ordem e frases feitas. Definitivamente perdemos de vista a tradição que as grandes religiões carregam. Luiz Felipe Pondé conversa com o teólogo Ed René Kivitz, o gerente de TI ateu Jaime Alves, o católico praticante Italo Fasanella e Ma Dhyan Bavhia, adepta da meditação.
4º episódio – Melancolia
Transtornos e sofrimentos psicológicos parecem se espalhar pelo ar nos nossos dias, como um vírus que contamina a vida moderna. Para cada nova doença, um novo remédio. E organizações de saúde já falam em uma epidemia de depressão. O que não muda nunca é o sofrimento humano, mas em um mundo hedonista não há espaço para angústias, coisa de gente mal resolvida. Por isso é preciso falar sobre melancolia. Falar de melancolia é falar da dor humana e do sentido da vida. O psiquiatra Marco Antonio Marcolin, o ator Carlos Meceni, a psicóloga Ciça Azevedo e a funcionária pública Nelzi Ribeiro são os convidados de Luiz Felipe Pondé deste Peripatético.
5º episódio – Casamento
Falar de casamento nos dias de hoje não é mais falar de uma comunhão para a vida eterna. É falar dos nossos ideais particulares de felicidade e realização; é falar de nossas carências, de nossos desejos. Em tempos de relações líquidas é raro encontrar quem quer viver para o outro, fortalecer a união e muito menos abrir mão de seus planos individuais em nome da sagrada família. Numa discussão em torno da vida a dois estão: Nadia Bucallon – advogada de família, Sergio Savian – terapeuta de casais, Priscila Stucky (solteira) e André Leite Carvalhaes – empresário, casado há 30 anos com a mesma mulher

Fonte: http://charlezine.com.br/ponde-estreia-novo-programa-na-tv-cultura-sobre-temas-filosoficos/

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A ética das baratas

As pessoas têm crenças desde a pré-história. Nossa constituição frágil é uma das razões para tal. Hoje, cercados de luxo e levados a condição de mimados que somos, até esquecemos que há anos atrás mais da metade de nossas mulheres morriam de parto. Elas viviam por conta de ficarem grávidas e pronto. Hoje existe essa coisa de "escolha", profissão, filhos depois da pós, direitos iguais, ar-condicionado, reposição hormonal, bolsa Prada.
Esquecemos que direitos e escolhas são produtos mais caros do que bolsa Prada. Pensamos que brotam em árvores.
Mas existem crenças mais frágeis do que outras, algumas que beiram o ridículo. E algumas delas até recebem bênçãos de filósofos chiques.
Em 1975, o filósofo utilitarista australiano Peter Singer publicou um livro chamado "Animal Liberation", que deixou o mundo de boca aberta.
Para Singer, "bicho é gente" (porque também sente dor). A partir daí, ele encampou toda uma gama de militantes que gostaria de tornar a alimentação carnívora um crime como o canibalismo.
Achar que se pode comer animais se basearia no preconceito de que os animais seriam "seres inferiores", daí o conceito de "especismo" como análogo ao de "racismo", o conhecido preconceito contra certas raças que foram consideradas inferiores no passado.
Tudo bem a ideia de que devemos tratar os animais com respeito e carinho e sem maus-tratos (eu pessoalmente gosto mais dos meus cachorros do que de muitas pessoas que conheço, e um deles é mais inteligente do que muita gente por aí), mas esta discussão quando toca as praias dos fanáticos puristas (essa praga que antes era limitada a crente religioso, mas hoje também se caracteriza por ser um ingrediente do fanatismo sem Deus de nossa época) é de encher o saco. Se um dia eles forem maioria, o mundo acaba.
O mundo não sobreviveria a uma praga de pessoas que não usam sapatos de couro porque os considera fruto da opressão capitalista contra os bichinhos inocentes.
Ainda bem que esta "seita verde" tende a passar com a idade, e aqueles que ainda permanecem nessa depois de mais velhos ou são hippies velhos que fazem bijuteria vagabunda em praças vazias (tem coisa mais feia do que um hippie velho?) ou são pessoas com tantos problemas psicológicos que esta pequena mania adolescente até desaparece no meio do resto de seus sofrimentos com a vida real.
Recentemente ouvi uma história hilária: alguém contra matar baratas porque não se deve matar nenhuma forma de vida. Risadas? É bom da próxima vez que alguém te convidar para ir na casa dela você checar se ela defende os direitos das baratas.
Nem Kafka foi tão longe ao apontar o ridículo de um homem que, ao se ver transformado num enorme inseto marrom, se preocupou primeiro com o fato de que iria perder o bonde e por isso perder o emprego.
Eu tenho uma regra na vida: quando alguém é mais ridículo do que alguns personagens do Kafka, eu evito esta pessoa.
Às vezes me pergunto o que faz uma pessoa razoável cair num delírio como esse. Como assim "não se deve matar nenhuma forma de vida"?
A pergunta é: essa moçadinha seguidora de uma mistura de filosofia singeriana aguada e budismo light (com pitadas de delírio) já olhou para natureza a sua volta?
A natureza é a maior destruidora de vidas na face da Terra. Ela mata sem pena fracos, pobres e oprimidos. A natureza é a maior "opressora" da face da Terra. E mais: normalmente essa moçadinha é bem narcisista e muito pouco solidária com gente de carne e osso.
Se todo mundo defender o direito da baratas, um dia vamos acordar com baratas na boca, nos ouvidos, na xícara do café da manhã. A mesma coisa: se não comermos os bois e as vacas, eles vão fazer uma manifestação na Paulista pedindo direito a pastos de graça ("os sem-pastos") para garantir a sobrevivência de seus milhões de cidadãos bovinos.
Pergunto a esses adoradores de baratas: ele já pensou que as alfaces também sofrem? ela já pensou que quando come uma alface está interrompendo toda uma vida feliz de fotossíntese? Que as alfaces também choram? Malvados e insensíveis...


Luiz Felipe Pondé Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".

O fascismo do PT contra os médicos

O PT está usando uma tática de difamação contra os médicos brasileiros igual à usada pelos nazistas contra os judeus: colando neles a imagem de interesseiros e insensíveis ao sofrimento do povo e, com isso, fazendo com que as pessoas acreditem que a reação dos médicos brasileiros é fruto de reserva de mercado. Os médicos brasileiros viraram os "judeus do PT".
Uma pergunta que não quer calar é por que justamente agora o governo "descobriu" que existem áreas do Brasil que precisam de médicos? Seria porque o governo quer aproveitar a instabilidade das manifestações para criar um bode expiatório? Pura retórica fascista e comunista.
E por que os médicos brasileiros "não querem ir"?
A resposta é outra pergunta: por que o governo do PT não investiu numa medicina no interior do país com sustentação técnica e de pessoal necessária, à semelhança do investimento no poder jurídico (mais barato)?
O PT não está nem aí para quem morre de dor de barriga, só quer ganhar eleição. E, para isso, quer "contrapor" os bons cidadãos médicos comunistas (como a gente do PT) que não querem dinheiro (risadas?) aos médicos brasileiros playboys. Difamação descarada de uma classe inteira.
A população já é desinformada sobre a vida dos médicos, achando que são todos uns milionários, quando a maioria esmagadora trabalha sob forte pressão e desvalorização salarial. A ideia de que médicos ganham muito é uma mentira. A formação é cara, longa, competitiva, incerta, violenta, difícil, estressante, e a oferta de emprego decente está aquém do investimento na formação.
Ganha-se menos do que a profissão exige em termos de responsabilidade prática e do desgaste que a formação implica, para não falar do desgaste do cotidiano. Os médicos são obrigados a ter vários empregos e a trabalhar correndo para poder pagar suas contas e as das suas famílias.
Trabalha-se muito, sob o olhar duro da população. As pessoas pensam que os médicos são os culpados de a saúde ser um lixo.
Assim como os judeus foram o bode expiatório dos nazistas, os médicos brasileiros estão sendo oferecidos como causa do sofrimento da população. Um escândalo.
É um erro achar que "um médico só faz o verão", como se uma "andorinha só fizesse o verão". Um médico não pode curar dor de barriga quando faltam gaze, equipamento, pessoal capacitado da área médica, como enfermeiras, assistentes de enfermagem, assistentes sociais, ambulâncias, estradas, leitos, remédios.
Só o senso comum que nada entende do cotidiano médico pode pensar que a presença de um médico no meio do nada "salva vidas". Isso é coisa de cinema barato.
E tem mais. Além do fato de os médicos cubanos serem mal formados, aliás, como tudo que é cubano, com exceção dos charutos, esses coitados vão pagar o pato pelo vazio técnico e procedimental em que serão jogados. Sem falar no fato de que não vão ganhar salário e estarão fora dos direitos trabalhistas. Tudo isso porque nosso governo é comunista como o de Cuba. Negócios entre "camaradas". Trabalho escravo a céu aberto e na cara de todo mundo.
Quando um paciente morre numa cadeira porque o médico não tem o que fazer com ele (falta tudo a sua volta para realizar o atendimento prático), a família, a mídia e o poder jurídico não vão cobrar do Ministério da Saúde a morte daquele infeliz.
É o médico (Dr. Fulano, Dra. Sicrana) quem paga o pato. Muitas vezes a solidão do médico é enorme, e o governo nunca esteve nem aí para isso. Agora, "arregaça as mangas" e resolve "salvar o povo".
A difamação vai piorar quando a culpa for jogada nos órgãos profissionais da categoria, dizendo que os médicos brasileiros não querem ir para locais difíceis, mas tampouco aceitam que o governo "salvador da pátria" importe seus escravos cubanos para salvar o povo. Mais uma vez, vemos uma medida retórica tomar o lugar de um problema de infraestrutura nunca enfrentado.
Ninguém é contra médicos estrangeiros, mas por que esses cubanos não devem passar pelas provas de validação dos diplomas como quaisquer outros? Porque vivemos sob um governo autoritário e populista.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2013/09/1335414-o-fascismo-do-pt-contra-os-medicos.shtml

Luiz Felipe Pondé Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".

Raízes do Romantismo

O mundo, às vezes, pode parecer um lugar assustador. Um lugar onde não conseguimos ver espaço para nossa vida. A alma, então, fica ofegante, sem ar, buscando um lugar onde o horror não seja a regra.
Esse lugar pode ser um mundo invisível, o passado, um paraíso, a pessoa desejada, ou, o que às vezes é a mesma coisa, um outro inferno, como o mundo, ainda que feito da substância dos pesadelos. Quando esse terreno encontra gênios literários, o horror pode virar beleza.
A descrição acima está muito próxima do que o filósofo judeu britânico Isaiah Berlin (século 20) pensava da Alemanha (ainda que neste momento a Alemanha não existisse como unidade política) dos séculos 17 e 18, devido as terríveis guerras religiosas entre católicos e protestantes, "a Guerra dos 30 Anos".
O resultado foi uma Alemanha devastada e reduzida à "Idade Média". Enquanto França e Inglaterra nadavam de braçada em direção à modernização burguesa industrial, os alemães se afogavam no ressentimento e na melancolia. Nascia o romantismo. Essa Alemanha foi seu o berço.
A historiografia marxista costuma dizer (com razão) que o romantismo é a primeira grande ressaca da Europa com a modernização burguesa. A tese de Berlin não nega este fato, mas ilumina elementos sutis com relação aos afetos românticos.
A modernidade é bipolar. Quando acorda bem, é iluminista, científica e progressista, assim como nós quando acordamos acreditando em nossa capacidade de produzir o sucesso material em nossas vidas.
Mas quando ela acorda mal, é romântica, ciente da hostilidade do mundo e em dúvida com relação à capacidade de sua grande criação, o iluminismo racionalista e técnico-científico. Assim como nós quando acordamos em meio a madrugada sentindo a solidão de quem investiu a vida em dinheiro, profissão e sucesso material às custas dos vínculos afetivos pouco eficazes.
Mas, se o romantismo é mal-estar com o mundo burguês, ele é também fruto do mesmo mundo burguês e sua esperança na capacidade do indivíduo criar sua própria vida e sonhar com um futuro que seja autêntico e livre de convenções limitantes. O romantismo é antes de tudo uma afetividade angustiada com um mundo que nega aos homens e mulheres sua espontaneidade. Uma espontaneidade recém-adquirida graças à liberdade moderna.
Em março e abril de 1965, Berlin deu um série de conferências na National Gallery of Art em Washington, EUA, como parte do programa conhecido como The A. W. Mellon Lectures in the Fine Arts. Estas conferências foram publicadas em 2001 com o título "The Roots of Romanticism", Princeton University Press, organizadas pelo editor da obra de Berlin, Henry Hardy. São quatro conferências imperdíveis tanto para os interessados no romantismo quanto para os interessados no pensamento do próprio Berlin.
O romantismo é um grande ataque ao iluminismo e sua fé na eficácia e na ciência da razão. Por isso, na segunda das conferências, Berlin identifica no pietismo alemão do século 17 a grande matriz romântica e não nos delírios das caminhadas do solitário Rousseau. Os pietistas eram de classe média baixa, homens de letras, que liam a mística alemã medieval, principalmente autores como o místico do século 14 Meister Eckhart.
Os petistas viam o mundo como um lugar tomado pelos horrores do mal e por isso fugiam para o campo, viviam em silêncio, estudavam, e por isso mesmo tinham uma vida interior de enorme força e violência. A vida como drama, e não como "uma agenda" (como viam os iluministas).
Em especial, o teólogo e poeta piestista J.G. Hamann (1730-1788), amigo pessoal de Immanuel Kant, lerá o conceito de "Abgrund" ekhartiano, entendido pelo medieval como "abismo sem fundo" de uma alma que se descobre feita da matéria de Deus, como sendo a realidade de uma alma obscura e misteriosa que não cabe na razão, mas que é presa num mundo que não é sua casa. O exílio no mundo é a marca deste "mago do Norte", como ficou conhecido.
O romantismo nos legou esse sentimento sem cura de que criamos um mundo no qual não nos reconhecemos.
Luiz Felipe Pondé Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O rosto da adúltera de Jesus

Então, Jesus foi abordado por um grupo de pessoas muito preocupadas com a retidão da lei. Traziam consigo uma mulher em prantos que havia sido pega em adultério. Jogada ao chão, ela tremia de medo. O povo pedia para que Jesus fizesse valer a lei: morte da adúltera por apedrejamento.
Isso foi há 2.000 anos, mas ainda hoje, no mesmo Oriente Médio, tem gente que apedreja mulheres e acha (agora, no Egito) que violentá-las nas praças seja um “direito da soberania popular revolucionária”, enquanto se matam, nas mesmas praças, pelo modo ocidental de vida ou por outra forma de lei (o fundamentalismo islamita).
E assim caminha a humanidade, em ciclos, para lugar nenhum, mas com festas e crenças diferentes no meio, e demagogos a cantar…
Mas voltemos a Jesus. Fatos como esses me fazem achar que Jesus era um cabra macho. Enfrentar o povo quando este se julga movido pelo correto modo de viver é algo que exige, como dizem los hermanos, “cojones”. Jesus disse que quem estivesse livre de pecado que atirasse a primeira pedra. Todos foram embora.
Esta é uma das passagens típicas do mundo bíblico na qual fica claro o tema da hipocrisia como motivação profunda daqueles que se acham arautos do bem, moral ou político.
Mas Jesus era um filósofo hebreu e estes filósofos eram diferentes dos filósofos gregos. O mundo bíblico é diferente da filosofia grega. Naquele, o “regime da verdade” (ou modo de busca da verdade) é interno e moral, na filosofia grega é externo e político.
O problema de saber se o que eu digo é verdade ou não, quando falo ou argumento, inexiste na Bíblia, porque o personagem principal do diálogo é Deus, e Ele sempre sabe de tudo, não há como mentir para Ele como há como mentir para outro homem ou para assembleia “soberana”, como na filosofia ou democracia gregas. Segundo o crítico George Steiner, o Deus de Israel irrita porque está em toda parte e sabe de tudo.
Sabe-se que o advento da democracia grega levou muita gente a pensar sobre a diferença entre pura retórica, que visa o mero convencimento dos outros numa assembleia (eu acho que a democracia é 90% isso mesmo), e a verdade em si do que se fala.
O problema que nasce daí é a relatividade da verdade, dependendo do ponto de vista de quem fala e de quem ouve. Na Bíblia, o problema é se minto para mim mesmo ou não. Na esfera pública, é o tema da hipocrisia, na privada, o da verdade interior. A Bíblia criou o sujeito e as bases da psicologia profunda.
Na Bíblia, como o poder é sempre de Deus e ele é mais íntimo de mim do que sou de mim mesmo, o problema é como eu enfrento a mim mesmo. A preocupação com a lei é sempre acompanhada da atenção para com a falsidade de quem diz ser justo. Por isso foram os hebreus que deram os primeiros passos para a descoberta do espaço interior onde vejo a distância entre mim e a verdade sobre mim mesmo, em vez de me preocupar com a verdade política, sofro com a mentira moral.
O crítico Erich Auerbach, no seu “A Cicatriz de Ulisses“, parte da coletânea “Mímesis“, reconhece este traço do texto hebraico: a relação de atenção e agonia entre Deus e seus eleitos molda o herói bíblico, dando a ele um rosto marcado por uma tensão moral.
Ainda na Bíblia hebraica, o rei David, o preferido de Deus, em seus belos “Salmos”, O encanta justamente porque expõe seu coração sem qualquer tentativa de mentir para si mesmo.
Santo Agostinho com suas “Confissões” faz eco a David. A literatura monástica e mística medievais cultivou este espaço até seu ressurgimento no século 19 no pietismo alemão de gente como J.G. Hamann, o “mago do norte”, ancestral direto do romantismo. Do romantismo e seu epicentro na verdade interior do sujeito, chegamos à psicologia profunda e à psicanálise.
A filosofia hebraica funda regimes de verdade que leva o sujeito a olhar para si mesmo ao invés de olhar para os outros. Em vez de cultivar uma filosofia política, ela cultiva uma filosofia moral da vida interior na qual não é barulho da assembleia que importa, mas o silêncio no qual os demônios desvelam nossa própria face.

Luiz Felipe Pondé

Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/

A espiritualidade das pedras




Meu Deus, como ter um “eu” cansa! Os místicos têm razão. Não é necessário ser um “crente” para ver isso, basta ter algum senso de ridículo para ver o quão cansativo é satisfazer o “eu”. E a modernidade é toda uma sinfonia (ou melhor, uma “diafonia”, contrário da sinfonia) para este pequeno “eu” infantil.
Outro dia, contemplava pessoas num aeroporto embarcando para os EUA com malas vazias para poder comprar um monte de coisas lá.
Que vergonha. É o tal do “eu” que faz isso. Ele precisa comprar, adquirir, sentir-se tendo vantagem em tudo. O “eu” sente um “frisson” num outlet baratinho em Miami. O mundo faz mais sentido quando ele economiza US$10. E o pior é que, neste mundo em que vivemos, faz mesmo sentido. Qualquer outra forma de sentido parece custar muito mais do que US$ 10.
A filosofia inglesa tem uma expressão muito boa que é “wants”, para se referir a nossas necessidades a serem satisfeitas. Poderíamos traduzir de modo livre por “quereres”. O “eu” é um poço sem fundo de “wants”. Isso me deprime um tanto.
Como dizia acima, a modernidade é toda feita para servir ao pequeno autoritário, o “eu”: ele exige mais sucesso, mais autoestima, mais saúde, mais dinheiro, mais beleza, mais celulares, mais viagens, mais consumo, mais direitos, mais rapidez, mais eficiência, mais atenção, mais reconhecimento, mais equilíbrio, melhor alimentação, mais espiritualidade para que ele não se sinta um materialista grosseiro.
Outra demanda do “eu” que enche o saco é querer se conhecer. Você conhece coisa mais chata do que alguém que tira um final de semana para fazer um workshop de autoconhecimento e aí vai para jardins “fakes” na Raposo? E pior, quem tira seis meses para se conhecer depois dos 40 anos e acha legal? O autoconhecimento só é sério quando deságua em autoironia.
O império do “eu” se revela quando vivemos pela angústia de torná-lo “resolvido”. Nada é mais típico dessa angústia estéril do que alguém sempre atento às próprias dores.
Outra armadilha típica do mundinho do “eu” é a idolatria do desejo. A filosofia sempre problematizou o desejo como modo de escravidão, e isso nada tem a ver com a dita repressão cristã (que nem foi o cristianismo que inventou) do desejo. Problematizar o desejo tem mais a ver com um conhecimento sutil, fruto da experimentação que a realização do desejo sem idealizá-lo traz. A idealização do desejo é marca da condição adolescente ou reprimida.
O “eu” falante inunda o mundo com seu ruído. O “eu” mais discreto tece um silêncio que desperta o interesse em conhecê-lo. Mas hoje vivemos num mundo da falação de si, como numa espécie de contínuo striptease da alma. O corpo nu é mais interessante do que a alma que se oferece. Por isso toda poesia sincera é ruim (Oscar Wilde). O “eu” deve agir como as mulheres quando fecham as pernas em sinal de pudor e vergonha.
A alta literatura espiritual, oriental ou ocidental, há muito compreende o ridículo do culto ao “eu”. Uma leveza peculiar está presente em narrativas gregas (neoplatonismo), budistas (o “eu” como prisão) ou místicas (cristã, judaica ou islâmica). Conceitos como “aniquilamento” (anéantissement, comum em textos franceses entre os séculos 14 e 17), “desprendimento” (abegescheidenheit, em alemão medieval) e “aphalé panta” (grego antigo) descrevem exatamente esse processo de superação da obsessão do “eu” por si mesmo.
A leveza nasce da sensação de que atender ao “eu” é uma prisão maior do que atender ao mundo, porque do “eu” nunca nos libertamos quando queremos servi-lo. Ele está em toda parte como um deus ressentido.
Por isso, um autor como Nikos Kazantzakis, em seu primoroso “Ascese[trecho do livro & citações], diz que apenas quando não queremos nada, quando não desejamos nada é que somos livres. Muito próximo dele, o filósofo epicurista André Comte-Sponville, no seu maior livro, “Tratado do Desespero e da Beatitude“, defende o “des-espero” como superação de uma vida pautada por expectativas.
Entre as piores expectativas está a da vida eterna. Espero que ao final o descanso das pedras nos espere. Amém.

Luiz Felipe Pondé 

Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/




Invasão de Privacidade

 


Quando Obama disse que ninguém pode viver com segurança e privacidade com 0% de inconveniência, pensei: Obama virou gente grande. Mas não foi assim que o mundo reagiu. Quase todo mundo ficou horrorizado, e eu, fiquei horrorizado com mais um show de infantilidade do mundo em que vivemos. É um mundo “teenager” mesmo.
E por que o Brasil seria vigiado? Talvez porque suspeita-se que o Brasil esteja na rota entre o dinheiro do crime internacional e terroristas. E a América Latina está à beira de uma virada socialista, só não sabe quem não quer ver. Corrupção, autoritarismo, gestão inepta da economia e populismo sempre foram paixões secretas do socialismo.
A CPI do “Obamagate” é um truque nacionalista (tipo Guerra das Malvinas) para desviar a atenção da nossa crise econômica, apesar de muitos brincarem de revolução enquanto a economia vai para o saco nas mãos de um governo que aumentou os gastos públicos com embaixadas em repúblicas das bananas, criação de ministérios inúteis e “investimento” na inadimplência como forma de ganhar votos.
A diferença entre um “teenager” (ainda que com PhD, PostDoc e livre-docência) e alguém que sofre para ser um pouco menos “teenager” é saber que o mundo não é preto e branco e que se você é responsável por muitas coisas, você nem sempre vive com luvas de pelica.
O mundo é uma terra abandonada pelos deuses, e temos que nos virar com o pouco que temos, a começar por uma espécie confusa como a nossa e que ainda acredita em borboletas azuis como salvação da vida.
Não é bonito o que o Obama fez. Mas todo mundo que tem as responsabilidades que o Obama tem faz coisas assim quando ocupa o lugar do Obama. Por muito menos, vigiamos a geladeira para ver quantos iogurtes tem, os armários da cozinha para ver quantos sacos de açúcar tem, e as sacolas das empregadas para ver se elas não estão levando algum pacotinho de carne.
O mundo é um grande Big Brother, George Orwell acertou em cheio. A diferença é que nosso mundo não é uma ditadura pré-histórica como a do livro “1984“, mas uma sociedade democrática que preserva direitos gays ao mesmo tempo que quer saber se eu e você estamos envolvidos num ataque a alguma embaixada no Mali ou que tipo de tênis e comida étnica curtimos.
Nada disso é bonito, apenas é assim. Para manter as coisas funcionando, pessoas tem que fazer coisas que não são muito bonitinhas. Eu sei que os inteligentinhos facilmente entram em surto, mas que vão brincar no parque, com segurança, de preferência.
As redes sociais, esse grande bacanal de narcisismo, são um prato cheio para sermos vigiados. Sites nos dão nosso perfil de consumo e nossa “linha da vida”. Celulares nos avisam quando algo acontece em nossa conta e em nosso cartão de crédito, e isso tudo é muito “prático”, não?
Este evento revela a óbvia violência à privacidade que as redes sociais significam. A ideia de que elas são uma ferramenta da democracia pode ser uma ideia também infantil. Além de elas serem um elemento de alto risco com relação a linchamentos e violência espontânea, elas nos tornam vulneráveis de modo direto na medida em que estar “na rede” significa estar dependente de uma “teia” (de aranha) tecnológica de controle bastante vulnerável a tutela das empresas que nos oferecem a própria ferramenta. Por isso o nome é TI, tecnologias da informação.
Há muito se sabe que é mais fácil subornar um blogueiro do que um jornal gigantesco (o blogueiro é mais barato…). Agora fica mais claro ainda que a manipulação via redes sociais é muito maior do que via mídia “clássica”.
Todo mundo sabe que não pode marcar encontros amorosos ilegítimos via e-mail ou mensagem de celular, como alguém fica escandalizado que a internet não seja segura? Parece papo de falsa virgem de 50 anos.
Em breve esqueceremos isso e continuaremos a postar fotos, falar bobagens, marcar revoluções no final de tarde e propor utopias que requentam a falida autogestão. E viajar para fazer compras em Miami com segurança e usando Visa.
Snowden, e seus 15 minutos, é mais um falso herói para falsos adultos.

Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/



sábado, 20 de julho de 2013

A química da democracia

Estamos diante de uma crise de representação política. A democracia moderna se caracteriza por ser representativa e não direta. Elegemos representantes e eles nos representam no Executivo e no Legislativo. Há muito tempo que este vínculo representativo no Brasil opera mal --vive-se a mesma coisa na Europa ocidental.

Julgo importante momentos como o que vivemos, não somente para chamar nossos representantes de volta a suas funções (eles trabalham para nós e pagamos os salários deles), como para refletir sobre os riscos deste mesmo colapso de representação e o desordenamento político-social que dele decorre a médio prazo: sem supermercados, sem escolas, sem estradas, sem chegar ao trabalho, sem lazer, sem policiamento.

A "química das massas" é volátil, incendiária e instável, e apesar de a imensa maioria ter uma intenção pacífica, a interrupção contínua e crescente da ordem político-social, por definição, rompe esta mesma ordem trazendo à tona riscos.

Mas nem todos os clássicos em política concordam com esta visão de risco do desgaste da ordem político-social. Alguns entendem que devemos buscar este desgaste e leem este mesmo desgaste como oportunidade criativa. Esta "química das massas" pode ser interpretada de diferentes formas.

Hobbes, por exemplo, que não é bem visto pela política contemporânea por ser posto "no saco" dos autoritários, entende que quando a ordem político-social se interrompe, "nossa química", que tem uma vocação latente para a desordem, a contingência e, por tabela, a violência (o que comumente se traduz dizendo que para Hobbes o homem é mau e a sociedade faz ele ser menos mau), entrará em ebulição a qualquer momento e a representatividade tem que retornar a funcionar, se não, caímos no caos social.

Este é o chamado pessimismo hobbesiano, que tende a valorizar a ordem a tudo custo e defender o monopólio legítimo da violência na mão do Estado.

Posições como a de Hobbes têm um defeito claro que é reprimir excessivamente qualquer tentativa de renovação das formas de representação. Daí ele ser mais afeito a temperamentos temerosos com relação a crises políticas agudas.

Rousseau, por outro lado, entende este desgaste como necessário para o surgimento da criatividade em política (Marx não está muito longe disso), daí ele ser típico de temperamentos mais revolucionários em política. Neste sentido, a violência decorrente da interrupção da ordem político-social é entendida como espaço para momentos de democracia direta.

Alguns defendem esta posição falando de "violência criativa" ou mesmo "a política será feita nas ruas e não nas instituições" porque elas não mais representam os representados e seus anseios. Aqui esquerda radical e direita radical se encontram na condenação da representação (os partidos).

O defeito desta opção está no fato de a democracia direta ou "das ruas" tender facilmente (todo mundo sabe disso) à violência, linchamento e julgamentos populares sumários. Neste caso, enquanto hobbesianos tendem a temer a "química das massas", rousseaunianos parecem torcer para esta química fazer novas receitas de "bolo social".

O que pensa Tocqueville sobre esta mesma química da democracia?

Tocqueville pensava que esta mesma química deve ser "cuidada" via mecanismos de pesos e contrapesos institucionais que reúnem desde assembleias muito locais, passando pelas instâncias de razão pública (tribunais, universidades, escolas, mídia), chegando ao Legislativo e Executivo estadual e federal.

Pare ele, não podemos abrir mão deste processo institucional de mitigação da "química da democracia" sob risco de esmagar o indivíduo sob a bota da tirania da maioria, de uma liberdade destrutiva e de uma igualdade com vocação para mediocridade, que elimina a própria criatividade cotidiana.

Por exemplo, no seu "Democracia na América", ele já dizia que não pode haver reeleição de representantes na democracia, se não dá em corrupção. Podemos começar a reforma por aí. Voto em Tocqueville.

PS. Não estou no Facebook, se você "falar" comigo no Face, não sou eu.

Luiz Felipe Pondé Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".

segunda-feira, 3 de junho de 2013

O bandido e o frentista



A população está entregue às traças, enquanto nos palácios, gente inteligentinha de todo tipo (com o mesmo caráter da aristocracia pré-revolucionária de Versailles) discursa sobre “direitos humanos dos bandidos”, toma vinho chileno, paga escola de esquerda da zona oeste de São Paulo que custa 3 mil reais mensais e vai para Nova York brincar de culta.
A inteligência ocidental está podre, mergulhada em seus delírios de reconstrução do mundo a partir de seus três gnomos Marx, Foucault e Bourdieu. Nós, desta casta de ungidos, desprezamos o povo comum porque pensamos que o que eles pensam é coisa de gente ignorante.
Outro dia fui abordado por um frentista num posto perto da minha casa na zona oeste (perto daquela praça destruída aos domingos pelas bikes -”bicicletas” na língua de pobre). Ele disse: “O senhor não é aquele filósofo da televisão?”. E continuou: “Não pense que porque somos proletários, não entendemos o que o senhor fala na televisão”.
Quem adivinha do que ele queria falar? Este posto sempre foi 24 horas e agora não é mais. Por quê? Disse ele que estavam todos, do dono aos funcionários, cansados de serem assaltados toda noite. Disse ele: “O ladrão vem na sua moto, para, põe a arma na nossa cara, rouba tudo, ameaça nos matar e vai embora. Nada acontece”.
E mais: “E fica todo mundo preocupado com o direito dos bandidos. Onde ficam os direitos de quem trabalha todo dia?”.
Vou dizer uma blasfêmia, dirão alguns dos meus amigos da casta inteligentinha: se preocupar com direitos dos bandidos é apenas um modo chique de continuar se lixando para o “povo”, assim como os coronéis nordestinos sempre se lixaram, a diferença agora é que a indiferença para com o destino das pessoas comuns vem regada a vinho chileno e leituras de Foucault.
A “elite branca letrada” é completamente indiferente para com o destino desse frentista.
Ele pede para que a polícia “acabe com os bandidos para ele poder trabalhar e a mulher e filhos dele não serem mortos”. Ingênuo? Simplista? Talvez, mas nem por isso menos verdadeiro na sua demanda “por direitos”. A verdade é que estamos mergulhados num blá-blá-blá pseudocientífico das razões que levam alguém a ser bandido, seja qual for a idade, e enquanto isso esse frentista se ferra.
O que terá acontecido, que de repente a elite letrada e pública ficou tão “sensível ao sofrimento social” e tão indiferente ao sofrimento desta “pequena gente honesta”? Até escuto alguns de nós dizer: “São uns mesquinhos que só pensam nas suas vidinhas”. Quem sabe alguns mais anacrônicos arriscariam: “Isso é resquício do pensamento pequeno burguês”.
A verdade é que nós estamos pouco nos lixando para o que essa gente que anda de metrô, trem e quatro ônibus sofre. Todo mundo muito “alegrinho” com a PEC das empregadas domésticas, mas entre elas e os bandidos a vítima social são os bandidos.
A pergunta que não quer calar é: por que em países islâmicos, por exemplo, com alto índice de pobreza, não existe criminalidade endêmica? Será que tem a ver com medo da terrível punição corânica?
Dirão os inteligentinhos que a causa da criminalidade é social. Hoje em dia, “causa social” serve para tudo, como um dia foram os astros e noutro a vontade dos deuses. Não nego que existam componentes sociais de fome e sofrimento na causa do comportamento criminoso, mas ninguém mais leva em conta que a maioria que vira bandido porque não quer trabalhar todo dia como esse frentista.
Ser bandido é, antes de tudo, um problema de caráter. E esse frentista, pobre também, sabe disso muito bem, só quem não sabe é minha casta de inteligentinhos.
O que dirão os inteligentinhos quando esse contingente de verdadeiras vítimas sociais do crime começarem a se organizar e matar os bandidos a sua volta? Pedirão a alguma ONG europeia para proteger os bandidos dessa gente “mesquinha” que só pensa em sua casinha, seus filhinhos e seu dinheirinho?
Acusarão essa gente humilhada e assaltada de não ter “sensibilidade social”? Dirão que soltar bandidos na rua é “justa violência revolucionária”?

Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/


terça-feira, 7 de maio de 2013

Para além do niilismo

O leitor sabe que meu pecado espiritual é o niilismo. Enfrento-o dia a dia como qualquer moléstia incurável. O tema já foi tratado por gênios como Nietzsche, Turguêniev, Dostoiévski, Cioran. Deixo meu leitor em companhia desses gigantes, muito melhores do que eu.
A tragédia também me acompanha em todo café da manhã, essa concepção grega de mundo que julgo a mais correta já pensada. Aqui tenho grandes parceiros como o autor da tragédia ática Sófocles (entre outros), o filósofo Nietzsche, o dramaturgo Shakespeare e os escritores contemporâneos Albert Camus e Philip Roth.
Ambos, niilismo e tragédia, são visões de mundo que arruínam a vida. Diante deles, ateísmo é para iniciantes. O ateísmo só é aceitável quando blasé e sem associações de ateus
militantes. Para niilistas como eu, o ateísmo crente em si mesmo é brincadeira de meninas com fita cor-de-rosa amarrada na cabeça.
Ando de saco cheio do niilismo e da tragédia, apesar de continuar experimentando-os todo dia. Em termos morais, a virtude máxima para ambos é a coragem, e o vício mais a mão, a covardia.
Nos últimos tempos, tenho me interessado por outra virtude, a confiança, essa, tão difícil quanto a coragem, uma vez tomada a alma pelo niilismo e pela tragédia. É sobre ela que quero falar nesta segunda-feira, dia normalmente difícil, acompanhado do "bode" do domingo e da monotonia do dia a dia que recomeça imerso num sono que nunca descansa, porque sempre atormentado pela dúvida com relação ao amor, à família, ao trabalho e à viabilidade do futuro.
Meu maior pecado como escritor é jamais enganar, jamais querer agradar. Essa é minha forma de prestar respeito a quem me lê semanalmente. O caráter de alguém que escreve é medido pela ausência de desejo de agradar a quem o lê.
Amar cães e confiar neles é mais fácil do que amar seres humanos e confiar neles. Por isso, num mundo atormentado pela dúvida niilista, ainda que em constante denegação dela, tanta gente se lança à defesa melosa de cães e gatos e exige carne de frangos felizes na hora de comer em restaurantes ridículos.
Quero propor a você duas obras. Um filme e um livro que julgo entre os maiores exemplos da arte a serviço da confiança na vida.
O filme "As Damas do Bois de Boulogne", do cineasta francês Robert Bresson, de 1945, é uma pérola sobre a confiança na vida e nos laços afetivos. Bresson é um cineasta muito marcado pelo pensamento do escritor George Bernanos, grande anatomista da alma e especialista em nossa natureza vaidosa, mentirosa e, por isso mesmo, desesperada. Coisa para gente grande, rara hoje em dia, neste mundo governado por adultos infantis.
O filme trata da vingança de uma mulher belíssima contra seu ex-amante (que a abandonou), um homem frívolo e covarde por temperamento. Essa vingança se constitui na aposta de que ele e a mulher que ela "contrata" para sua vingança agirão do modo esperado. Sua intenção é fazer com que seu ex-amante se apaixone por essa mulher "contratada", uma prostituta.
O homem é mantido na ignorância da vida pregressa de sua noiva até depois do casamento. O que a mulher abandonada não contava é que a prostituta se apaixonasse pelo covarde, levando-o a transformação inesperada de caráter.
O amor também é personagem central da obra do dinamarquês Soren Kierkegaard "As Obras do Amor", da Vozes. Esse livro é o texto mais belo que conheço sobre o amor na filosofia ocidental.
Segundo nosso existencialista, o amor tudo crê, mas nunca se ilude porque, assim como a desconfiança e o ceticismo, o amor sabe que o conhecimento não é capaz de nada além do que fundamentar o niilismo, o ceticismo e o desespero.
O amor é um afeto moral, não um ato da razão. A razão não justifica a vida. O amor é uma escolha de investimento na vida, uma atitude, mesmo que a razão prove a falta de sentido último de tudo.
Ingênuos são os niilistas e céticos que consideram a desconfiança um ato livre da vontade. A desconfiança é uma escravidão. A aposta na vida é que mostra o caráter maduro de mulheres e homens. Boa semana. 


Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".

Crítica: Obra de Tomás de Aquino ilumina Idade Média


Tomás de Aquino (1225-1274), um dos principais filosofos da Idade Media

O mundo medieval é distante do nosso. Aquele banhado pelas sombras, este pelas luzes dos iPhones. Mesmo a espiritualidade se faz prestadora de serviço e Jesus, um consultor de sucesso.
A metafísica, antes uma elegante ciência do intelecto, torna-se, a cada dia, mero imaginário a serviço de nossas pequenas neuroses instantâneas: hoje sou budista, amanhã seguidor de algum neocacique aborígene.
Pensamos na Idade Média como um esgoto grande cheio de peste, mulheres queimadas, anjos e demônios.



Tomás de Aquino (1225-1274), um dos principais filosofos da Idade Media (foto)

Mas não, a Idade Média foi uma época de grande atividade intelectual, com grande diversidade de interesses e concepções, ao contrário da nossa época, uma hora obcecada pelo cérebro, outra pelos genes, outra ainda pelo "social".
Uma das formas de conhecer a Idade Média, ultrapassando o "nosso senso comum de esgoto" sobre ela, é conhecer sua filosofia e o santo italiano Tomás de Aquino (1225-1274), que foi um dos seus maiores expoentes.
O Aquinate, como ficou conhecido seu conjunto de ideias, buscou pôr em diálogo a tradição bíblica e a filosofia grega, elaborando um sofisticado sistema filosófico de difícil redução a algum conjunto limitado de manias. Essas duas tradições são "costuradas" de modo sutil ao longo de sua obra.
Um belo exemplo desse percurso é "Questões Disputadas Sobre a Alma", que a editora É Realizações nos traz agora, numa elegante edição bilíngue latim-português, com excelente prefácio de Carlos Augusto Casanova Guerra, doutor pela Universidade de Navarra.
GRANDES TEMAS
A edição é um presente não só para o grande público erudito, interessado em conhecer mais a "mente medieval", mas também, e principalmente, para o público especializado, que agora dispõe de uma peça com tradução em português para seus estudos acadêmicos.
Tomás de Aquino arrola várias fontes na obra --Bíblia, Platão, Aristóteles, patrística, neoplatonismo--, todas organizadas de modo escolástico, ou seja, buscando clareza no encadeamento dos argumentos e conclusões.
O repertório erudito de sua época está todo ali, a serviço do esclarecimento de 21 questões sobre a alma que podem ser resumidas em alguns grandes temas.
Por exemplo, o que é o ser, o que é a essência da alma e qual seu lugar no mundo visível e invisível? Qual sua relação com o corpo? Somos imortais? E como é essa imortalidade?
O filósofo responde com esse elenco de temas algumas das questões de sua época, as inquietações do dia e da noite e do cotidiano. Será que essas questões mudaram tanto de lá pra cá?

QUESTÕES DISPUTADAS SOBRE A ALMA
AUTOR Tomás de Aquino
TRADUÇÃO Luiz Astorga
EDITORA É Realizações
QUANTO R$ 59 (464 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

terça-feira, 2 de abril de 2013

Você tem cabeça aberta?

 


Você tem cabeça aberta? Acusar alguém de ter cabeça fechada hoje em dia é uma ofensa pior do que xingar a mãe.
Hoje todos querem ter cabeça aberta. Um tema top para cabeças abertas é preconceito x práticas sexuais, e um lugar certo para deixar claro que você tem cabeça aberta é jantares inteligentes. Se você quer fazer sucesso num jantar desses, chame todo mundo que discorda de você de “ridícula”.
Nesses jantares, as pessoas têm as opiniões certas sobre tudo; por exemplo, ninguém tem preconceito contra nada. Acho muito fofo gente que não tem nenhum preconceito contra nada.
No tema “práticas sexuais”, o que percebemos, se formos um pouquinho além do senso comum, é que o “normal x patológico” ou “moral x imoral” é bastante relativo no tempo e no espaço. Isso significa que o que se acha imoral hoje amanhã pode não ser, e vice-versa. O mesmo para o que se acha patológico.
Quem busca um critério absoluto, sem variação histórica ou geográfica (a tal variação no tempo e no espaço de que falei acima), hoje em dia, se vê em maus lençóis. Além, claro, de dar atestado de ter preconceitos numa época em que ter preconceitos é pior do que matar a mãe.
Aliás, se não disse ainda, digo: acho fofo gente que não tem preconceito contra nada.
Um modo de se posicionar acerca dessa fronteira entre sexo normal x patológico ou moral x imoral é defender a ideia de que entre dois adultos tudo é permitido, se a prática for fruto de livre escolha (eis uma versão para mortais da tal autonomia kantiana). Esse argumento até é válido, já que não sabemos mais nada sobre coisa nenhuma em moral (só mentirosos dizem que têm “princípios éticos”). Mas ele é problemático, já na definição de “adulto”, porque ela também é relativa no tempo e no espaço. Um cara de 40 ficar com uma mina de 14 nem sempre foi visto como crime contra a infância.
Outra coisa problemática é a própria ideia de “livre escolha”. Por exemplo, se você gosta de apanhar, talvez só goste mesmo quando seu parceiro ou parceira vai além do que você “permite”, senão você não goza de verdade. Mas devo confessar que há algo de pueril em achar que “livre escolha” resolva o problema. Acreditar na ideia de “autonomia kantiana” (a tal da “livre escolha”), às vezes, também, é superfofo.
Vamos, porém, deixar de barato esses pequeníssimos detalhes e vamos a algo mais “significativo”. Faço uma proposta para seu próximo jantar inteligente. Claro, se você for um pobre engenheiro, nem pense em querer ir, a menos que sua mulher seja psicóloga –aí os donos da casa inteligente podem aceitá-lo. Se você for um cara e sua “mulher psi” for um cara também, aí a entrada é garantida.
Vamos testar as cabecinhas abertas? Atenção, respire fundo: você já viu o vídeo “2 girls 1 cup“? Mas, antes de descrevê-lo (não em detalhes, porque seria demais para uma segunda-feira), vou dizer uma coisa. Acho que, se você é o tipo de pessoa que quer provar que tem cabeça aberta, você deve discutir apenas o que lhe parece absurdo (ou “nojento”, na linguagem de gente que tem preconceito). Mas não é isso o que acontece normalmente.
A moçadinha que tem cabeça aberta só gosta de discutir coisa que não põe em risco sua imagem de gente bacana. Falar mal de machista, racista, sexista, católico e evangélico é coisa de iniciante no ramo de discussões de verdade.
E o vídeo? Neste, duas mulheres começam com sexo lésbico normal e acabam fazendo sexo a três: elas duas + as fezes de uma delas (se é apenas efeito especial, pouco importa). Isso é chamado no mundo careta de “coprofilia”. Quem gosta de xixi é urofílico.
Então: gente que gosta disso é doente, imoral, ou apenas gente de cabeça aberta explorando seus limites do gozo? Lembre: o que hoje é doença ou imoralidade amanhã pode não ser.
Na verdade, imagino que em breve esses caras terão suas ONGs e defenderão também “safe sex”. Como fazê-lo? Ensinando nas escolas a identificar fezes infectadas pela aparência e cheiro?
O que a gente fofa diria disso? Ainda sem preconceito? Perdeu o apetite? As ciências sexuais têm muito o que aprender.

Luiz Felipe Pondé (jornal FSP – 25.03.2012)  | Outra fonte para este artigo: AQUI



Helena não tem culpa

 
Detalhe de “A Intervenção das Sabinas” (1799)  |  Pintura de Jacques-Louis David


Dias atrás, uma amiga, alta executiva paulista, radicada no Rio, me mandou um e-mail com a cópia de uma resenha sobre um livro (fruto de pesquisa de campo) de um antropólogo, Napoleon Chagnon, que estudou os índios ianomâmis no Brasil e na Venezuela por muitos anos. Suas conclusões não são aquelas que a comunidade acadêmica, ideologicamente orientada na sua quase totalidade, costuma gostar.
Quem sabe, este “desgosto ideológico dos pares” (gente ávida por destruir oponentes teóricos) tenha sido responsável pelos desdobramentos negativos que o antropólogo teve em sua vida profissional por conta desta pesquisa. O livro (“Noble Savages“), que logo comprei, deveria ser lido nas escolas. Um tratado contra a tradição marxista, não só em antropologia, mas em tudo mais. Mas o que especificamente tem esse livro contra esta tradição?
Engana-se quem pensa que a tradição marxista comece com Marx, ela começa com Rousseau e seu bom selvagem. O princípio é que o homem é bom e a sociedade é que o perverte. A perversão do bom selvagem pelo “Das Kapital” é apenas uma decorrência do principio do Rousseau, só que para Marx não partimos do bom selvagem, mas sim chegaremos a ele quando superarmos esta sociedade má.
Uma ideia assim (que somos bons e a sociedade nos corrompe, e aqui você pode colocar no lugar de “sociedade” a família, o patriarcado, a igreja, o capital, os EUA, o patrão, seu pai autoritário) faz almas fracas gozarem de prazer. Porque o que ela diz é que, ao final, não sou responsável por nada que faço. Não fosse pela “sociedade”, eu seria um homem bom. Ao contrário do que parece, essa tradição pegou porque alimenta algo de muito banal: que somos homens bons em nossa natureza essencial. Esta ideia alimenta nossa vaidade e não foi por outro motivo que Burke, filósofo britânico do século 18, chamava Rousseau de “filósofo da vaidade”.
Nossa origem é o bom selvagem? É por isso que australianos que não têm o que fazer se pintam de aborígenes e gritam por aí? Quanta bobagem! Quanto lixo escrito com tinta cara!
Também concordo que devemos olhar para o “passado” para entendermos como somos hoje. A diferença é que minha ideia de “estado natural do homem” é diferente da de Rousseau, o filósofo da vaidade. Partilho da ideia que para nos entendermos devemos olhar para a pré-história de fato, e não a mítica, como a do Rousseau.
Este mito alimenta uma outra bobagem: a ideia de que toda diversidade cultural é linda. “Viva a diferença!”, dizem os festivos por aí. A “humanidade”, na sua capacidade frágil de não ser bicho malvado, foi tirada das pedras, à custa de muito sangue. Sempre bebemos o sangue dos outros no café da manhã.
E aí voltamos ao livro. A conclusão de Chagnon é que os ianomâmis, parentes nossos que vivem muito perto do que seria o neolítico, tribos que permaneceram bastante “puras” enquanto outras já haviam sido “contaminadas pela maldade do homem branco” (risadas?), sempre se mataram por uma razão nada complexa: “mulher, mulher, mulher”. Inclusive, quem tinha mais mulher, tinha mais descendentes.
Qualquer evolucionista gargalharia diante de tamanha obviedade ocultada pelas interpretações ideológicas pueris da falsa história do bom selvagem. Os ianomâmis também têm suas Helenas de Troia. Entre eles, quem matava mais tinha mais mulher. Entre nós, quem é mais “adaptado” tem mais mulher.
Não se trata de culpar as mulheres porque são filhas de Eva. Responsabilizar a mulher pelos males do mundo é coisa de homem brocha que, por não conseguir penetrá-la, recorre à falsa culpa feminina para aplacar sua desgraça.
Reconhecer que os ianomâmis se matam em troca de mulheres (ou se matavam enquanto eram “puros” ou “bons selvagens”) não é uma prova contra as mulheres. É uma prova contra Rousseau e sua tradição do bom selvagem. Eu, pessoalmente, acho até uma boa causa. Quero dizer, nos matarmos por mulheres. Neste caso, o troféu é bem concreto e todo mundo sabe de seu “valor de uso”.
Isto é, não precisamos de provas metafísicas para reconhecer o valor de uma mulher.

Luiz Felipe Pondé (jornal FSP – 18.03.2012)  | Outra fonte para este artigo: AQUI

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Análise sobre a renúncia do Papa Bento XVI




Joseph Ratzinger é um dos maiores teólogos vivos do cristianismo. Como papa Bento 16, fracassou.
Conservador, um tanto liberal no começo de sua carreira, Bento 16 iniciou seu papado com um projeto, já em curso quando era a eminência parda intelectual de João Paulo 2º, de pôr “medida” na herança do Concílio Vaticano 2º, verdadeira “revolução liberal” na Igreja Católica. Já nos anos 80 atacava a teologia da libertação latino-americana por considerá-la certa quanto ao carisma profético bíblico de procurar justiça no mundo, mas errada quanto a assumir o marxismo como ferramenta de realização desta justiça.
Bento 16 foi um duro crítico da ideia de que a igreja deva aceitar soluções modernas para problemas modernos. Nesse sentido, apesar de ter resistido bravamente, com a idade e a fraqueza que esta implica, acabou por ser um papa acuado pelas demandas modernas feitas à igreja e por uma incapacidade de pôr em marcha sua “infantaria”, que nunca aceitou plenamente seu perfil de intelectual alemão eurocêntrico.
Sua ideia de igreja é a de um pequeno grupo coeso de crentes, fiéis ao magistério da igreja (conjunto de normas para condução moral da vida), distante das “modas moderninhas”.
Quais seriam algumas dessas demandas modernas? Diálogo simétrico com outros credos (multiculturalismo), casamento gay, divórcio, sacerdócio das mulheres, fim do celibato, uso de contraceptivos, aborto, punição pública de padres pedófilos (a igreja deveria passar esses padres para a Justiça comum), aceitação de avanços da medicina pré-natal como identificação de fetos sem cérebro e consequente aborto, alinhamento político do clero com causas sociais e políticas do terceiro mundo –enfim, desafios típicos do contemporâneo.
Bento 16 esbarrou com o fato de que a maior parte dos católicos militantes hoje é de países pobres (afora o caso dos EUA, o cristianismo é uma religião de país pobre).
Os fiéis, portanto, estão mais próximos de um discurso contaminado pelas teorias políticas de esquerda, que fala de justiça social como um direito “divino” e aproxima Jesus de Che Guevara, do que da complicada discussão acerca dos excessos do iluminismo racionalista ou da crítica bíblica que tende a humanizar Cristo excessivamente em detrimento de sua divindade.
Seu próprio clero (sua “infantaria”) ajudou no fracasso de seu papado, resistindo sistematicamente à “romanização da igreja”, o que em jargão técnico significa centralização das decisões relativas ao cotidiano da instituição na lenta burocracia do Vaticano, com sua típica alienação europeia, distante do “caos” do mundo real do Terceiro Mundo. O Vaticano é muito europeu, inclusive em sua decadência como referência para o mundo no século 21.
Mas há dimensões que transcendem as dificuldades específicas de seu projeto conservador e tocam dificuldades da Igreja Católica contemporânea como um todo. A igreja hoje tem um sério problema de formação de quadros. Antes era “um bom negócio” entrar para a igreja; hoje, quem o faz, salvo casos de grande vocação mística e espiritual ou de revolta contra as ditas “injustiças sociais”, é muitas vezes gente sem muita opção de vida. Quando não, tal como é visto por parte da população secular, gente com desvios sexuais graves.
Os cursos de formação do clero, quando não totalmente contaminados pelos próprios teóricos que João Paulo 2º chamava em sua encíclica “Fides et Ratio” (“Fé e Razão”) de “pensadores da suspeita” contra a fé e a razão (Marx, Nietzsche, Freud, Foucault), são fracos, com professores mal formados e conteúdos vazios. Claro que existem exceções, que, como sempre, em sendo exceções, confirmam a regra.
Enfim, o papado de Bento 16 fracassou, em grande parte, em razão do fogo amigo: sua própria infantaria.
A Igreja Católica agoniza diante de um mundo que cada vez é mais opaco para quem pensa, como ela, que a vida seja algo mais do que conforto, prazer e liberdade pra transar com quem quisermos e quando quisermos.


Luiz Felipe Pondé (jornal FSP – 12.02.2012)

Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/

Amando uma mulher inteligente


Mads Mikkelsen (esquerda), Alicia Vikander (centro) e Mikkel Boe Følsgaard (direita)

Hoje é Carnaval. Carnaval é um saco. Morei muitos anos na Bahia, falo de cátedra. Não existe festa mais autoritária do que o Carnaval e a devastação que causa em nome de sua alegria barulhenta. Mas gosto não se discute, lamenta-se. Por isso, hoje vou falar de coisa mais séria; vou falar de amor romântico e de um filme maravilhoso para quem gosta do tema e também de filosofia: “O Amante da Rainha“, filme dinamarquês dirigido por Nikolaj Arcel, com Mads Mikkelsen (o amante) e Alicia Vikander (a rainha) no elenco.
Você acredita no amor romântico? Dito assim parece uma pergunta idiota. Alguns dirão que pessoas maduras sabem que o amor não existe. Outros, que é diferente de paixão, sendo esta passageira, enquanto o amor seria algo mais sólido, dado a parcerias de longa duração.
Nada mais pernicioso para um casamento de longa duração do que a expectativa de amor romântico depois de um certo número de anos, diriam os “maduros”. Expectativas assim seriam “coisa de mulher”, o que também é uma besteira. Homens sonham com momentos de paixão com suas mulheres no dia a dia. “Ter uma mulher” significa exatamente isso.
Supor que os homens são animais de cerveja, futebol e sexo é não entender nada sobre os homens. Pensar que os homens só pensam em cerveja, futebol e sexo é a mesma coisa que pensar que mulher é um ser menos inteligente. A suposta simplicidade masculina é tão falsa quanto a também suposta irracionalidade feminina.
O tema encanta, apesar de alguns teóricos afirmarem que o amor é uma mera invenção da literatura europeia medieval (como o Papai Noel), universalizada, de modo equivocado, pelos autores românticos dos séculos 19 e 20. Digo “equivocada” porque, para os medievais, nem todo mundo seria capaz de viver ou suportar tal forma de amor avassalador. Já para os românticos, modernos, todo mundo poderia viver essa forma de encantadora doença da alma.
Eu não acredito que o amor romântico seja uma invenção da literatura, mas concordo com os medievais: muita gente passa pela vida sem experimentá-lo. Uma pena, pobres miseráveis…
A narrativa medieval descreve essa “maladie de la pensée” (doença do pensamento, do espírito), dito no original provençal (um tipo de francês comum na Idade Média), como um modo de obsessão que arrasta o homem e a mulher, fazendo com que fiquem presos no desejo de estar um com o outro e atormentados quando não podem se encontrar, quando não podem se tocar. Segundo os medievais, ele ficará horas imaginando o que ela estaria fazendo, pensando, sonhando, com o desejo de penetrar em todos os segredos de sua alma e de seu corpo (“Tratado do Amor Cortês“, de André Capelão, publicado pela editora Martins Fontes).
A estrutura ideal supõe o amor impossível, no qual a morte espera os dois ou um dos dois –e a desgraça do que sobrevive. Quando o amante é amigo fiel do marido dela, a estrutura dramática encontra seu modo mais perfeito de impasse.
Dirão os especialistas que o amor romântico cantado nos séculos 18 e 19 fala da destruição de qualquer forma de vida que não a interesseira, típica da burguesia e sua alma de “merceeiro”, como diria Marx.
“O Amante da Rainha” tem exatamente essa estrutura. O amante é médico e confidente do rei e se apaixonará enlouquecidamente, e será correspondido, pela rainha. Esse médico, chamado de “o alemão” pelos dinamarqueses (o personagem é alemão), é um iluminista (leitor de Rousseau e Voltaire) que crê na superação da barbárie pelo uso da razão e da ciência. Ela também.
O amor dos heróis não é apenas construído a partir de “sentimentos” mas, também, do encontro entre suas almas inquietas com o mundo a sua volta. Ambos são filósofos de uma época em que a filosofia se revoltou com a estupidez do mundo (o filme se passa na segunda metade do século 18). Aliás, a filosofia sempre se revoltará, porque o mundo será sempre estúpido.
Além de belas pernas e belos seios, a delícia de partilhar inquietações filosóficas com uma mulher que amamos pode ser uma das maiores formas de amor romântico que existe. Infeliz aquele que não sabe disso.


Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/

Luiz Felipe Pondé (jornal FSP – 11.02.2012) | Outra fonte para este artigo: AQUI

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terça-feira, 20 de maio de 2014

ESPERANÇA DO MUNDO por Luiz Felipe Pondé

"Nunca confiei na felicidade", diz o personagem de Robert Duvall no filme "Tender Mercies" ("A Força do Carinho", título brasileiro bem infeliz para o filme), papel com o qual ganhou o Oscar de melhor ator em 1983. O filme narra a derrocada de um cantor de música country e sua sofrida redenção, graças ao amor e generosidade de uma mulher. 
No filme, salta aos olhos o deserto do Texas, a solidão de todas as planícies e a total ausência de qualquer metafísica barata, coisa comum hoje no cinema, seja ela moral, psicológica, ambiental ou política. O homem e a mulher são seres abandonados no mundo e devem cuidar de suas vidas porque ninguém mais o fará. 
Aliás, por falar em metafísica, a pior é a política. Mas da política trato apenas por obrigação profissional, porque, como diz Albert Camus nos seus "Cadernos" (o primeiro tem como título "Esperança do Mundo"), ouvindo aqueles que se dedicam à política, podemos apenas concluir que as pessoas se importam pouco com esta parte das suas vidas, uma vez que todos na política mentem.
Acrescentaria, além dos políticos profissionais, os intelectuais que a ela se voltam como redenção do mundo e forma de obrigar os outros a viverem de acordo com os delírios que alimentam em seus gabinetes. 
Enfim, no fundo, a política pouco me interessa. Trato-a assim como quem deve cuidar de uma ferida --do contrário ela se infectará. 
Noutro filme, "Alabama Monroe" (2012), do diretor Felix van Groeningen, a personagem feminina Elise, interpretada por Veerle Baetens, diz algo semelhante ao final: "Sempre soube que tudo aquilo não podia durar, porque a felicidade sempre acaba". Referia-se ela ao amor por seu marido Didier e pela pequena filha morta. 
Sinto-me em casa quando ouço pessoas dizerem coisas assim. Pois se existem apenas "três ou quatro atitudes diante do mundo", como dizia em seu "Breviário da Decomposição" Emil Cioran, filósofo romeno indispensável para quem suspeita que os trágicos gregos são quem tem razão na filosofia, esta é a minha. E seguramente a dele. E também a de Camus. 
Na mesma obra, Cioran faz um diagnóstico preciso: "A obsessão pelos remédios marca o fim de uma civilização, e, pela salvação, o fim da filosofia". Por isso ele afirma que desistiu da filosofia quando viu que em Kant não havia nenhuma tristeza. Os filósofos, diz Cioran, quase todos acabam bem, prova máxima contra a honestidade deles. 
Sempre sinto um cheiro de mesquinharia quando ouço alguém falar de uma nova dieta. A vida, talvez seja esta sua maior tragédia, se apequena quando não é de algum modo dada em sacrifício. Talvez seja isso que o cristianismo queira dizer quando afirma que só quando se perde a vida se ganha a vida. E não há saída: somos a civilização da mesquinharia. Até Cristo deve ser saudável. 
Sei que Camus considerava o suicídio o único problema filosófico ("O Mito de Sísifo"). E sei também que ele considerava um milagre um momento em que não tivesse que falar de si mesmo (caderno "Esperança do Mundo"). Detalhe: Camus usa expressões como "milagre", conhecia bem teólogos como Blaise Pascal e conceitos como o de "graça", citando-os com precisão. 
Mas eu suspeito que um dos maiores problemas da filosofia, e certamente um dos maiores milagres na vida, para quem tem um temperamento que desconfia da felicidade (trágico), é justamente o problema que Camus diz "ser um bom título": a esperança do mundo. 
Como ter esperança no mundo sem ter que abdicar da capacidade de vê-lo tal como é? Por isso, sinto um halo de graça quando vejo a esperança visitar o mundo. Afora as ilusões, só a generosidade é capaz de acolher a esperança. 
Talvez o próprio Camus dê uma pista neste "Caderno", sendo ele um filósofo, e sabendo, como nós todos, que nós filósofos sofremos da vaidade intelectual como pecado capital. Camus diz que "a obsessão em ter razão é a marca suprema de uma inteligência grosseira". Portanto, talvez, a humildade, virtude capital para Camus, seja a esperança para a filosofia. Ou, como dizia Santo Agostinho, o que falta ao filósofo é chorar.

Autoria de Luiz Felipe Pondé, filósofo e colunista da Folha de SP

Fonte: http://zelmar.blogspot.com.br/2014/05/esperanca-do-mundo.html

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Nôach por Luiz Felipe Pondé


Os eleitos de Deus só têm problemas; a solidão os assola, o sofrimento os persegue

O Deus de Israel não gosta de covardes. Homem, mulher, criança, todos são chamados à coragem, à dor e a tomar decisões difíceis.

Noé (Nôach), foi um desses heróis. Erich Auerbach, no seu "Mímesis", afirma que Deus testa seus heróis e heroínas, levando-os ao limite do insuportável, para que, sobrevivendo ao teste, descubram por que foram eleitos. Deus funda, assim, a ideia de autoconhecimento na literatura ocidental.

"E os que vieram, macho e fêmea, de toda criatura vieram, como Deus lhe havia ordenado; e o Eterno o fechou para protegê-lo. E foi o dilúvio quarenta dias sobre a terra, e multiplicaram-se as águas, e alcançaram a arca, e levantou-se de sobre a terra" (Gênesis, 7; 16-17, edição hebraica).

O filme "Noé", de Darren Aronofsky, é sobre eleição. "Eleição" é um conceito, muitas vezes, pouco compreendido pelo mundo contemporâneo, maníaco por felicidade "projetos do self" e sucesso.

Os eleitos pelo Deus de Israel só têm problemas; a solidão os assola, o medo e o sofrimento os persegue. Erich Auerbach entende muito mais de "eleição" na literatura israelita do que muito rabino, pastor e padre por aí, obcecados por vender autoajuda espiritual. "Dificilmente, um deles não sofre, como Adão, a mais profunda humilhação...", afirma Auerbach.

O diretor do filme, faz licenças poéticas, e algumas delas (não tenho como saber o quão consciente ele estava quando as fez) muito sofisticadas, levando em conta a "dramaturgia" do Velho Testamento, como falam os cristãos quando se referem à Bíblia hebraica.

Uma delas, muito pontual, é o uso da pequena tira de couro que o pai de Noé, e depois o próprio, enrola no braço: uma referência direta ao "tefilin" (filactério). A palavra hebraica tem sua raiz em "tefilá", que significa prece. Hoje, ela "virou" um cordão de couro ligado a duas caixinhas que o judeu amarra daquele jeito e também na cabeça (é bem maior do que mostra o filme).

Uma das preces ali contidas é o famoso "Shemá Israel", a qual lembra aos judeus que Deus é um só: "Shemá Israel, Adonai eloheinu, Adonai echad" (Ouve Israel, Adonai é nosso D'us, Adonai é Um"), na tradução feita pelo movimento religioso judaico Chabab.

Outra liberdade de roteiro está na longa discussão acerca das mulheres e da infertilidade da personagem que casará com Sem, filho mais velho de Noé. Na narrativa bíblica sobre o dilúvio não existe esta controvérsia que domina o filme. Sem, Cam e Jafé, filhos de Noé, já entram na arca com suas mulheres.

Mas, se para o homem bíblico o drama é o coração reto que serve a Deus, para a mulher, o drama é a fertilidade. Muitos criticam esse enfoque porque entendem que o homem tem um drama moral acerca da liberdade da vontade (tema muito bem trabalhado no filme) e a mulher tem um drama "fisiológico", portanto, alheio à liberdade.

Mas, ao enfrentar o mal da infertilidade e ao ser objeto de milagre (como no filme e em vários casos na Bíblia), a mulher revela sua vocação de ser a (desesperada) terra (in)fértil onde Deus deixa sua marca.

O medo da infertilidade no mundo semítico antigo acompanha muitas heroínas, como Sara, mulher de Abraão, e Rachel, mulher preferida de Jacó (mais tarde, chamado Israel, pai das 12 tribos).

O profeta Isaías, 54:1-55:5, compara as agonias e posteriores alegrias da mulher infértil (ou desamparada ou solitária) às águas de Noé: "Canta, ó estéril que não deste à luz; rompe em cânticos, e clama com alegria, tu que não tiveste dores de parto; porque mais serão os filhos da mulher solitária do que os da casada, diz o Eterno".

Adiante, o profeta compara a promessa de Deus a Noé, de que não mais lançará águas sobre a face da terra, com a promessa feita à infeliz de que Ele não terá mais ira contra sua revolta nem a repreenderá.

Sabe-se que Deus escolhe Rachel como a que "amolece" Seu coração, quando Ele fica irritado com o povo israelita. Está aí o mistério da dor feminina que encanta até o Eterno.

Quando você ouvir alguém dizer que a Bíblia é um livro bobo, saiba que você está diante de um ignorante. Boa semana


Fonte: http://avaranda.blogspot.com.br/2014/04/noach-luiz-felipe-ponde.html

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Euzinho

A modernidade é uma declaração de guerra à ideia de tradição. Mas nós, modernos, continuamos a não perceber isso, e o resultado é que suspiramos como bobos diante do que pensamos ser uma tradição, apesar de detestarmos qualquer sinal verdadeiro de tradição.
Procuramos tradições em workshops xamânicos, espaços budistas nas Perdizes, livros baratos sobre como viviam os druidas.
São muitas as definições de tradição. Não vou dar mais uma, mas sim elencar atitudes que estão muito mais próximas do que é uma tradição do que cursos de cabala nos Jardins. Nada tenho contra estudar culturas antigas, apenas julgo um equívoco confundir a ideia de tradição com modas de uma espiritualidade de consumo.
Não existe xamã na Vila Madalena. A cabala não vai salvar meu casamento. Meditação não fará de mim uma pessoa melhor no trabalho. Imitar a alimentação de monges tibetanos não aliviará minha inveja. Frequentar cachoeiras indígenas não fará de mim uma pessoa menos consumista. Tatuar palavras védicas não me impedirá de fazer qualquer negócio pra viver mais.
Visitar templos no Vietnã não fará de mim alguém menos dependente das redes sociais. Desejar isso fará de mim apenas ridículo.
Uma tradição, pra começo de conversa, nada tem a ver com "escolha". Não se escolhe uma tradição. Neste sentido, muitos rabinos têm razão em desconfiar de conversos ao judaísmo por opção. Uma tradição funciona sempre contra sua vontade, à revelia de sua consciência, submetendo-a ao imperativo que escapa à razão mais imediata. A única forma de tradição a que a maioria de nós ainda tem acesso é a língua materna.
Colocar os filhos pra dormir todos os dias é mais próximo do que é uma tradição do que estudar velhos símbolos indígenas ou brincar com eles em pousadas nas chapadas. Não poder sair à noite porque um dos filhos tem febre é tradição. Velá-lo durante a noite é tradição. Morrer de medo durante esta noite é tradição. Nada menos tradicional do que uma mulher sem filhos. Ela até pode aprender capoeira, mas será apenas iludida, se sua intenção for experimentar a tradição afro.
Nada tenho contra mulheres não terem filhos, digo apenas, de forma modesta, o que é uma tradição.
Homens que sustentam sua mulher e filhos são tradicionais, mesmo em tempos como os nossos em que todo mundo mente sobre isso. Levar seus velhos ao hospital, enterrá-los, em agonia ou com absoluta indiferença, é tradição. Andar pela casa à noite pra ver se tem algum ladrão, enquanto sua mulher e filhos ficam protegidos no quarto, é tradição. Ser obrigado a ser corajoso é uma tradição, maldita, mas é.
Pular sete ondas numa Copacabana lotada nada tem de tradicional, é apenas chato. Tradição é ir pra guerra se não sua mulher achará você covarde. Lavar louça, fazer o jantar, lavar banheiros, morrer de medo diante do médico. Falar disso pra quem vive uma situação semelhante a você. Ter que passar nas provas na escola. Ter que ser melhor do que os colegas. Sangrar todo mês.
Tradição é pagar contas, enfrentar finais de semana vazios e não desistir. É sonhar com um futuro que nunca chega. Engravidar a namorada. Ter ciúmes. Odiar Deus porque somos mortais. Ter inveja da amiga mais bonita, do amigo mais forte e inteligente. É cuidar dos netos. É educar os mais jovens e não deixar que eles acreditem nas bobagens que inventam.
Tradição funciona como hábitos que se impõem com a força de um vulcão, de um terremoto, de um tsunami, de uma febre amarela. Nada tem a ver com se pintar como aborígenes pra defender reservas indígenas ou abraçar árvores.
Evolução espiritual é um dos top em quem quer "adquirir" uma tradição. Mas esta nada tem a ver com "buscar" uma evolução espiritual como forma de fugir de filhos que têm febre ou compromissos afetivos. A evolução espiritual verdadeira é algo que nos acomete como uma disciplina aterrorizante.
Teste definitivo: você busca evolução espiritual pra aperfeiçoar seu "euzinho"? Lamento dizer que qualquer evolução espiritual (se existir) começa com você esquecer que seu euzinho existe.

ponde.folha@uol.com.br
luiz felipe pondé Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, 'Contra um mundo melhor' (Ed. LeYa). Escreve às segundas.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2014/01/1403270-euzinho.shtml

domingo, 6 de outubro de 2013

Pondé estreia novo programa na TV Cultura

Luiz Felipe PondéO filósofo Luiz Felipe Pondé estreia nesta sexta-feira (04), à meia-noite, seu novo programa na TV Cultura. Comandado por ele, “Peripatético” trará convidados diferentes a cada edição para debater temas contemporâneos da filosofia. Produzido pela Bossa Nova Films, o programa tem um formato inusitado: as discussões acontecem em clima despojado, numa casa de campo, enquanto os convidados caminham ao ar livre. O programa foi inspirado na escola do filósofo grego Aristóteles, que na Antiguidade costumava caminhar com seus discípulos enquanto discutiam filosofia. ”O objetivo é acabar com a ideia de que a filosofia é só para filósofos profissionais”, diz Pondé. Vaidade é o tema discutido no primeiro episódio. Os temas dos próximos 4 episódios já estão definidos e são: sexo, fé, melancolia e casamento – cada um com um conjunto de convidados diferentes. O programa será exibido sempre às sextas-feiras e tem classificação indicativa para 14 anos.


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Sinopse dos episódios

1º episódio – Vaidade
“Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade.” Será que esta frase do Eclesiastes traduz bem a nossa época? Para tratar do assunto, o Peripatético convidou a cineasta Paula Trabulsi, o cirurgião plástico Ed Wilson Rossoe, a atriz Grace Gianoukas e a ex-modelo Silene Zepter.  Para falar de vaidade é preciso sinceridade e autocrítica. Afinal, ela é a mentira que contamos sobre nós mesmos para não encararmos as nossas verdades.
2º episódio – Sexo
Quando sexo é o tema, nos mostramos muito esclarecidos e resolvidos. Todos têm uma opinião, uma experiência pra compartilhar, nem que seja uma mentira pra contar. Será que com a revolução sexual, a “conquistada” igualdade entre os sexos fez mulheres e homens mais felizes na cama? A sexóloga Gina Strozzi, a católica Regina Fasanella, estudante disposta a casar virgem, o artista plástico Junior Tupiná e a atriz de filmes pornô Vivi Fernandez foram convidados pelo programa Peripatético, com Luiz Felipe Pondé, para falar, falar e falar sobre sexo.
3º episódio – Fé
Falar de religião é uma forma de interrogar sobre a condição humana; é caminhar entre a fé e a razão. Hoje se discute Deus com palavras de ordem e frases feitas. Definitivamente perdemos de vista a tradição que as grandes religiões carregam. Luiz Felipe Pondé conversa com o teólogo Ed René Kivitz, o gerente de TI ateu Jaime Alves, o católico praticante Italo Fasanella e Ma Dhyan Bavhia, adepta da meditação.
4º episódio – Melancolia
Transtornos e sofrimentos psicológicos parecem se espalhar pelo ar nos nossos dias, como um vírus que contamina a vida moderna. Para cada nova doença, um novo remédio. E organizações de saúde já falam em uma epidemia de depressão. O que não muda nunca é o sofrimento humano, mas em um mundo hedonista não há espaço para angústias, coisa de gente mal resolvida. Por isso é preciso falar sobre melancolia. Falar de melancolia é falar da dor humana e do sentido da vida. O psiquiatra Marco Antonio Marcolin, o ator Carlos Meceni, a psicóloga Ciça Azevedo e a funcionária pública Nelzi Ribeiro são os convidados de Luiz Felipe Pondé deste Peripatético.
5º episódio – Casamento
Falar de casamento nos dias de hoje não é mais falar de uma comunhão para a vida eterna. É falar dos nossos ideais particulares de felicidade e realização; é falar de nossas carências, de nossos desejos. Em tempos de relações líquidas é raro encontrar quem quer viver para o outro, fortalecer a união e muito menos abrir mão de seus planos individuais em nome da sagrada família. Numa discussão em torno da vida a dois estão: Nadia Bucallon – advogada de família, Sergio Savian – terapeuta de casais, Priscila Stucky (solteira) e André Leite Carvalhaes – empresário, casado há 30 anos com a mesma mulher

Fonte: http://charlezine.com.br/ponde-estreia-novo-programa-na-tv-cultura-sobre-temas-filosoficos/

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A ética das baratas

As pessoas têm crenças desde a pré-história. Nossa constituição frágil é uma das razões para tal. Hoje, cercados de luxo e levados a condição de mimados que somos, até esquecemos que há anos atrás mais da metade de nossas mulheres morriam de parto. Elas viviam por conta de ficarem grávidas e pronto. Hoje existe essa coisa de "escolha", profissão, filhos depois da pós, direitos iguais, ar-condicionado, reposição hormonal, bolsa Prada.
Esquecemos que direitos e escolhas são produtos mais caros do que bolsa Prada. Pensamos que brotam em árvores.
Mas existem crenças mais frágeis do que outras, algumas que beiram o ridículo. E algumas delas até recebem bênçãos de filósofos chiques.
Em 1975, o filósofo utilitarista australiano Peter Singer publicou um livro chamado "Animal Liberation", que deixou o mundo de boca aberta.
Para Singer, "bicho é gente" (porque também sente dor). A partir daí, ele encampou toda uma gama de militantes que gostaria de tornar a alimentação carnívora um crime como o canibalismo.
Achar que se pode comer animais se basearia no preconceito de que os animais seriam "seres inferiores", daí o conceito de "especismo" como análogo ao de "racismo", o conhecido preconceito contra certas raças que foram consideradas inferiores no passado.
Tudo bem a ideia de que devemos tratar os animais com respeito e carinho e sem maus-tratos (eu pessoalmente gosto mais dos meus cachorros do que de muitas pessoas que conheço, e um deles é mais inteligente do que muita gente por aí), mas esta discussão quando toca as praias dos fanáticos puristas (essa praga que antes era limitada a crente religioso, mas hoje também se caracteriza por ser um ingrediente do fanatismo sem Deus de nossa época) é de encher o saco. Se um dia eles forem maioria, o mundo acaba.
O mundo não sobreviveria a uma praga de pessoas que não usam sapatos de couro porque os considera fruto da opressão capitalista contra os bichinhos inocentes.
Ainda bem que esta "seita verde" tende a passar com a idade, e aqueles que ainda permanecem nessa depois de mais velhos ou são hippies velhos que fazem bijuteria vagabunda em praças vazias (tem coisa mais feia do que um hippie velho?) ou são pessoas com tantos problemas psicológicos que esta pequena mania adolescente até desaparece no meio do resto de seus sofrimentos com a vida real.
Recentemente ouvi uma história hilária: alguém contra matar baratas porque não se deve matar nenhuma forma de vida. Risadas? É bom da próxima vez que alguém te convidar para ir na casa dela você checar se ela defende os direitos das baratas.
Nem Kafka foi tão longe ao apontar o ridículo de um homem que, ao se ver transformado num enorme inseto marrom, se preocupou primeiro com o fato de que iria perder o bonde e por isso perder o emprego.
Eu tenho uma regra na vida: quando alguém é mais ridículo do que alguns personagens do Kafka, eu evito esta pessoa.
Às vezes me pergunto o que faz uma pessoa razoável cair num delírio como esse. Como assim "não se deve matar nenhuma forma de vida"?
A pergunta é: essa moçadinha seguidora de uma mistura de filosofia singeriana aguada e budismo light (com pitadas de delírio) já olhou para natureza a sua volta?
A natureza é a maior destruidora de vidas na face da Terra. Ela mata sem pena fracos, pobres e oprimidos. A natureza é a maior "opressora" da face da Terra. E mais: normalmente essa moçadinha é bem narcisista e muito pouco solidária com gente de carne e osso.
Se todo mundo defender o direito da baratas, um dia vamos acordar com baratas na boca, nos ouvidos, na xícara do café da manhã. A mesma coisa: se não comermos os bois e as vacas, eles vão fazer uma manifestação na Paulista pedindo direito a pastos de graça ("os sem-pastos") para garantir a sobrevivência de seus milhões de cidadãos bovinos.
Pergunto a esses adoradores de baratas: ele já pensou que as alfaces também sofrem? ela já pensou que quando come uma alface está interrompendo toda uma vida feliz de fotossíntese? Que as alfaces também choram? Malvados e insensíveis...


Luiz Felipe Pondé Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".

O fascismo do PT contra os médicos

O PT está usando uma tática de difamação contra os médicos brasileiros igual à usada pelos nazistas contra os judeus: colando neles a imagem de interesseiros e insensíveis ao sofrimento do povo e, com isso, fazendo com que as pessoas acreditem que a reação dos médicos brasileiros é fruto de reserva de mercado. Os médicos brasileiros viraram os "judeus do PT".
Uma pergunta que não quer calar é por que justamente agora o governo "descobriu" que existem áreas do Brasil que precisam de médicos? Seria porque o governo quer aproveitar a instabilidade das manifestações para criar um bode expiatório? Pura retórica fascista e comunista.
E por que os médicos brasileiros "não querem ir"?
A resposta é outra pergunta: por que o governo do PT não investiu numa medicina no interior do país com sustentação técnica e de pessoal necessária, à semelhança do investimento no poder jurídico (mais barato)?
O PT não está nem aí para quem morre de dor de barriga, só quer ganhar eleição. E, para isso, quer "contrapor" os bons cidadãos médicos comunistas (como a gente do PT) que não querem dinheiro (risadas?) aos médicos brasileiros playboys. Difamação descarada de uma classe inteira.
A população já é desinformada sobre a vida dos médicos, achando que são todos uns milionários, quando a maioria esmagadora trabalha sob forte pressão e desvalorização salarial. A ideia de que médicos ganham muito é uma mentira. A formação é cara, longa, competitiva, incerta, violenta, difícil, estressante, e a oferta de emprego decente está aquém do investimento na formação.
Ganha-se menos do que a profissão exige em termos de responsabilidade prática e do desgaste que a formação implica, para não falar do desgaste do cotidiano. Os médicos são obrigados a ter vários empregos e a trabalhar correndo para poder pagar suas contas e as das suas famílias.
Trabalha-se muito, sob o olhar duro da população. As pessoas pensam que os médicos são os culpados de a saúde ser um lixo.
Assim como os judeus foram o bode expiatório dos nazistas, os médicos brasileiros estão sendo oferecidos como causa do sofrimento da população. Um escândalo.
É um erro achar que "um médico só faz o verão", como se uma "andorinha só fizesse o verão". Um médico não pode curar dor de barriga quando faltam gaze, equipamento, pessoal capacitado da área médica, como enfermeiras, assistentes de enfermagem, assistentes sociais, ambulâncias, estradas, leitos, remédios.
Só o senso comum que nada entende do cotidiano médico pode pensar que a presença de um médico no meio do nada "salva vidas". Isso é coisa de cinema barato.
E tem mais. Além do fato de os médicos cubanos serem mal formados, aliás, como tudo que é cubano, com exceção dos charutos, esses coitados vão pagar o pato pelo vazio técnico e procedimental em que serão jogados. Sem falar no fato de que não vão ganhar salário e estarão fora dos direitos trabalhistas. Tudo isso porque nosso governo é comunista como o de Cuba. Negócios entre "camaradas". Trabalho escravo a céu aberto e na cara de todo mundo.
Quando um paciente morre numa cadeira porque o médico não tem o que fazer com ele (falta tudo a sua volta para realizar o atendimento prático), a família, a mídia e o poder jurídico não vão cobrar do Ministério da Saúde a morte daquele infeliz.
É o médico (Dr. Fulano, Dra. Sicrana) quem paga o pato. Muitas vezes a solidão do médico é enorme, e o governo nunca esteve nem aí para isso. Agora, "arregaça as mangas" e resolve "salvar o povo".
A difamação vai piorar quando a culpa for jogada nos órgãos profissionais da categoria, dizendo que os médicos brasileiros não querem ir para locais difíceis, mas tampouco aceitam que o governo "salvador da pátria" importe seus escravos cubanos para salvar o povo. Mais uma vez, vemos uma medida retórica tomar o lugar de um problema de infraestrutura nunca enfrentado.
Ninguém é contra médicos estrangeiros, mas por que esses cubanos não devem passar pelas provas de validação dos diplomas como quaisquer outros? Porque vivemos sob um governo autoritário e populista.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2013/09/1335414-o-fascismo-do-pt-contra-os-medicos.shtml

Luiz Felipe Pondé Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".

Raízes do Romantismo

O mundo, às vezes, pode parecer um lugar assustador. Um lugar onde não conseguimos ver espaço para nossa vida. A alma, então, fica ofegante, sem ar, buscando um lugar onde o horror não seja a regra.
Esse lugar pode ser um mundo invisível, o passado, um paraíso, a pessoa desejada, ou, o que às vezes é a mesma coisa, um outro inferno, como o mundo, ainda que feito da substância dos pesadelos. Quando esse terreno encontra gênios literários, o horror pode virar beleza.
A descrição acima está muito próxima do que o filósofo judeu britânico Isaiah Berlin (século 20) pensava da Alemanha (ainda que neste momento a Alemanha não existisse como unidade política) dos séculos 17 e 18, devido as terríveis guerras religiosas entre católicos e protestantes, "a Guerra dos 30 Anos".
O resultado foi uma Alemanha devastada e reduzida à "Idade Média". Enquanto França e Inglaterra nadavam de braçada em direção à modernização burguesa industrial, os alemães se afogavam no ressentimento e na melancolia. Nascia o romantismo. Essa Alemanha foi seu o berço.
A historiografia marxista costuma dizer (com razão) que o romantismo é a primeira grande ressaca da Europa com a modernização burguesa. A tese de Berlin não nega este fato, mas ilumina elementos sutis com relação aos afetos românticos.
A modernidade é bipolar. Quando acorda bem, é iluminista, científica e progressista, assim como nós quando acordamos acreditando em nossa capacidade de produzir o sucesso material em nossas vidas.
Mas quando ela acorda mal, é romântica, ciente da hostilidade do mundo e em dúvida com relação à capacidade de sua grande criação, o iluminismo racionalista e técnico-científico. Assim como nós quando acordamos em meio a madrugada sentindo a solidão de quem investiu a vida em dinheiro, profissão e sucesso material às custas dos vínculos afetivos pouco eficazes.
Mas, se o romantismo é mal-estar com o mundo burguês, ele é também fruto do mesmo mundo burguês e sua esperança na capacidade do indivíduo criar sua própria vida e sonhar com um futuro que seja autêntico e livre de convenções limitantes. O romantismo é antes de tudo uma afetividade angustiada com um mundo que nega aos homens e mulheres sua espontaneidade. Uma espontaneidade recém-adquirida graças à liberdade moderna.
Em março e abril de 1965, Berlin deu um série de conferências na National Gallery of Art em Washington, EUA, como parte do programa conhecido como The A. W. Mellon Lectures in the Fine Arts. Estas conferências foram publicadas em 2001 com o título "The Roots of Romanticism", Princeton University Press, organizadas pelo editor da obra de Berlin, Henry Hardy. São quatro conferências imperdíveis tanto para os interessados no romantismo quanto para os interessados no pensamento do próprio Berlin.
O romantismo é um grande ataque ao iluminismo e sua fé na eficácia e na ciência da razão. Por isso, na segunda das conferências, Berlin identifica no pietismo alemão do século 17 a grande matriz romântica e não nos delírios das caminhadas do solitário Rousseau. Os pietistas eram de classe média baixa, homens de letras, que liam a mística alemã medieval, principalmente autores como o místico do século 14 Meister Eckhart.
Os petistas viam o mundo como um lugar tomado pelos horrores do mal e por isso fugiam para o campo, viviam em silêncio, estudavam, e por isso mesmo tinham uma vida interior de enorme força e violência. A vida como drama, e não como "uma agenda" (como viam os iluministas).
Em especial, o teólogo e poeta piestista J.G. Hamann (1730-1788), amigo pessoal de Immanuel Kant, lerá o conceito de "Abgrund" ekhartiano, entendido pelo medieval como "abismo sem fundo" de uma alma que se descobre feita da matéria de Deus, como sendo a realidade de uma alma obscura e misteriosa que não cabe na razão, mas que é presa num mundo que não é sua casa. O exílio no mundo é a marca deste "mago do Norte", como ficou conhecido.
O romantismo nos legou esse sentimento sem cura de que criamos um mundo no qual não nos reconhecemos.
Luiz Felipe Pondé Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O rosto da adúltera de Jesus

Então, Jesus foi abordado por um grupo de pessoas muito preocupadas com a retidão da lei. Traziam consigo uma mulher em prantos que havia sido pega em adultério. Jogada ao chão, ela tremia de medo. O povo pedia para que Jesus fizesse valer a lei: morte da adúltera por apedrejamento.
Isso foi há 2.000 anos, mas ainda hoje, no mesmo Oriente Médio, tem gente que apedreja mulheres e acha (agora, no Egito) que violentá-las nas praças seja um “direito da soberania popular revolucionária”, enquanto se matam, nas mesmas praças, pelo modo ocidental de vida ou por outra forma de lei (o fundamentalismo islamita).
E assim caminha a humanidade, em ciclos, para lugar nenhum, mas com festas e crenças diferentes no meio, e demagogos a cantar…
Mas voltemos a Jesus. Fatos como esses me fazem achar que Jesus era um cabra macho. Enfrentar o povo quando este se julga movido pelo correto modo de viver é algo que exige, como dizem los hermanos, “cojones”. Jesus disse que quem estivesse livre de pecado que atirasse a primeira pedra. Todos foram embora.
Esta é uma das passagens típicas do mundo bíblico na qual fica claro o tema da hipocrisia como motivação profunda daqueles que se acham arautos do bem, moral ou político.
Mas Jesus era um filósofo hebreu e estes filósofos eram diferentes dos filósofos gregos. O mundo bíblico é diferente da filosofia grega. Naquele, o “regime da verdade” (ou modo de busca da verdade) é interno e moral, na filosofia grega é externo e político.
O problema de saber se o que eu digo é verdade ou não, quando falo ou argumento, inexiste na Bíblia, porque o personagem principal do diálogo é Deus, e Ele sempre sabe de tudo, não há como mentir para Ele como há como mentir para outro homem ou para assembleia “soberana”, como na filosofia ou democracia gregas. Segundo o crítico George Steiner, o Deus de Israel irrita porque está em toda parte e sabe de tudo.
Sabe-se que o advento da democracia grega levou muita gente a pensar sobre a diferença entre pura retórica, que visa o mero convencimento dos outros numa assembleia (eu acho que a democracia é 90% isso mesmo), e a verdade em si do que se fala.
O problema que nasce daí é a relatividade da verdade, dependendo do ponto de vista de quem fala e de quem ouve. Na Bíblia, o problema é se minto para mim mesmo ou não. Na esfera pública, é o tema da hipocrisia, na privada, o da verdade interior. A Bíblia criou o sujeito e as bases da psicologia profunda.
Na Bíblia, como o poder é sempre de Deus e ele é mais íntimo de mim do que sou de mim mesmo, o problema é como eu enfrento a mim mesmo. A preocupação com a lei é sempre acompanhada da atenção para com a falsidade de quem diz ser justo. Por isso foram os hebreus que deram os primeiros passos para a descoberta do espaço interior onde vejo a distância entre mim e a verdade sobre mim mesmo, em vez de me preocupar com a verdade política, sofro com a mentira moral.
O crítico Erich Auerbach, no seu “A Cicatriz de Ulisses“, parte da coletânea “Mímesis“, reconhece este traço do texto hebraico: a relação de atenção e agonia entre Deus e seus eleitos molda o herói bíblico, dando a ele um rosto marcado por uma tensão moral.
Ainda na Bíblia hebraica, o rei David, o preferido de Deus, em seus belos “Salmos”, O encanta justamente porque expõe seu coração sem qualquer tentativa de mentir para si mesmo.
Santo Agostinho com suas “Confissões” faz eco a David. A literatura monástica e mística medievais cultivou este espaço até seu ressurgimento no século 19 no pietismo alemão de gente como J.G. Hamann, o “mago do norte”, ancestral direto do romantismo. Do romantismo e seu epicentro na verdade interior do sujeito, chegamos à psicologia profunda e à psicanálise.
A filosofia hebraica funda regimes de verdade que leva o sujeito a olhar para si mesmo ao invés de olhar para os outros. Em vez de cultivar uma filosofia política, ela cultiva uma filosofia moral da vida interior na qual não é barulho da assembleia que importa, mas o silêncio no qual os demônios desvelam nossa própria face.

Luiz Felipe Pondé

Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/

A espiritualidade das pedras




Meu Deus, como ter um “eu” cansa! Os místicos têm razão. Não é necessário ser um “crente” para ver isso, basta ter algum senso de ridículo para ver o quão cansativo é satisfazer o “eu”. E a modernidade é toda uma sinfonia (ou melhor, uma “diafonia”, contrário da sinfonia) para este pequeno “eu” infantil.
Outro dia, contemplava pessoas num aeroporto embarcando para os EUA com malas vazias para poder comprar um monte de coisas lá.
Que vergonha. É o tal do “eu” que faz isso. Ele precisa comprar, adquirir, sentir-se tendo vantagem em tudo. O “eu” sente um “frisson” num outlet baratinho em Miami. O mundo faz mais sentido quando ele economiza US$10. E o pior é que, neste mundo em que vivemos, faz mesmo sentido. Qualquer outra forma de sentido parece custar muito mais do que US$ 10.
A filosofia inglesa tem uma expressão muito boa que é “wants”, para se referir a nossas necessidades a serem satisfeitas. Poderíamos traduzir de modo livre por “quereres”. O “eu” é um poço sem fundo de “wants”. Isso me deprime um tanto.
Como dizia acima, a modernidade é toda feita para servir ao pequeno autoritário, o “eu”: ele exige mais sucesso, mais autoestima, mais saúde, mais dinheiro, mais beleza, mais celulares, mais viagens, mais consumo, mais direitos, mais rapidez, mais eficiência, mais atenção, mais reconhecimento, mais equilíbrio, melhor alimentação, mais espiritualidade para que ele não se sinta um materialista grosseiro.
Outra demanda do “eu” que enche o saco é querer se conhecer. Você conhece coisa mais chata do que alguém que tira um final de semana para fazer um workshop de autoconhecimento e aí vai para jardins “fakes” na Raposo? E pior, quem tira seis meses para se conhecer depois dos 40 anos e acha legal? O autoconhecimento só é sério quando deságua em autoironia.
O império do “eu” se revela quando vivemos pela angústia de torná-lo “resolvido”. Nada é mais típico dessa angústia estéril do que alguém sempre atento às próprias dores.
Outra armadilha típica do mundinho do “eu” é a idolatria do desejo. A filosofia sempre problematizou o desejo como modo de escravidão, e isso nada tem a ver com a dita repressão cristã (que nem foi o cristianismo que inventou) do desejo. Problematizar o desejo tem mais a ver com um conhecimento sutil, fruto da experimentação que a realização do desejo sem idealizá-lo traz. A idealização do desejo é marca da condição adolescente ou reprimida.
O “eu” falante inunda o mundo com seu ruído. O “eu” mais discreto tece um silêncio que desperta o interesse em conhecê-lo. Mas hoje vivemos num mundo da falação de si, como numa espécie de contínuo striptease da alma. O corpo nu é mais interessante do que a alma que se oferece. Por isso toda poesia sincera é ruim (Oscar Wilde). O “eu” deve agir como as mulheres quando fecham as pernas em sinal de pudor e vergonha.
A alta literatura espiritual, oriental ou ocidental, há muito compreende o ridículo do culto ao “eu”. Uma leveza peculiar está presente em narrativas gregas (neoplatonismo), budistas (o “eu” como prisão) ou místicas (cristã, judaica ou islâmica). Conceitos como “aniquilamento” (anéantissement, comum em textos franceses entre os séculos 14 e 17), “desprendimento” (abegescheidenheit, em alemão medieval) e “aphalé panta” (grego antigo) descrevem exatamente esse processo de superação da obsessão do “eu” por si mesmo.
A leveza nasce da sensação de que atender ao “eu” é uma prisão maior do que atender ao mundo, porque do “eu” nunca nos libertamos quando queremos servi-lo. Ele está em toda parte como um deus ressentido.
Por isso, um autor como Nikos Kazantzakis, em seu primoroso “Ascese[trecho do livro & citações], diz que apenas quando não queremos nada, quando não desejamos nada é que somos livres. Muito próximo dele, o filósofo epicurista André Comte-Sponville, no seu maior livro, “Tratado do Desespero e da Beatitude“, defende o “des-espero” como superação de uma vida pautada por expectativas.
Entre as piores expectativas está a da vida eterna. Espero que ao final o descanso das pedras nos espere. Amém.

Luiz Felipe Pondé 

Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/




Invasão de Privacidade

 


Quando Obama disse que ninguém pode viver com segurança e privacidade com 0% de inconveniência, pensei: Obama virou gente grande. Mas não foi assim que o mundo reagiu. Quase todo mundo ficou horrorizado, e eu, fiquei horrorizado com mais um show de infantilidade do mundo em que vivemos. É um mundo “teenager” mesmo.
E por que o Brasil seria vigiado? Talvez porque suspeita-se que o Brasil esteja na rota entre o dinheiro do crime internacional e terroristas. E a América Latina está à beira de uma virada socialista, só não sabe quem não quer ver. Corrupção, autoritarismo, gestão inepta da economia e populismo sempre foram paixões secretas do socialismo.
A CPI do “Obamagate” é um truque nacionalista (tipo Guerra das Malvinas) para desviar a atenção da nossa crise econômica, apesar de muitos brincarem de revolução enquanto a economia vai para o saco nas mãos de um governo que aumentou os gastos públicos com embaixadas em repúblicas das bananas, criação de ministérios inúteis e “investimento” na inadimplência como forma de ganhar votos.
A diferença entre um “teenager” (ainda que com PhD, PostDoc e livre-docência) e alguém que sofre para ser um pouco menos “teenager” é saber que o mundo não é preto e branco e que se você é responsável por muitas coisas, você nem sempre vive com luvas de pelica.
O mundo é uma terra abandonada pelos deuses, e temos que nos virar com o pouco que temos, a começar por uma espécie confusa como a nossa e que ainda acredita em borboletas azuis como salvação da vida.
Não é bonito o que o Obama fez. Mas todo mundo que tem as responsabilidades que o Obama tem faz coisas assim quando ocupa o lugar do Obama. Por muito menos, vigiamos a geladeira para ver quantos iogurtes tem, os armários da cozinha para ver quantos sacos de açúcar tem, e as sacolas das empregadas para ver se elas não estão levando algum pacotinho de carne.
O mundo é um grande Big Brother, George Orwell acertou em cheio. A diferença é que nosso mundo não é uma ditadura pré-histórica como a do livro “1984“, mas uma sociedade democrática que preserva direitos gays ao mesmo tempo que quer saber se eu e você estamos envolvidos num ataque a alguma embaixada no Mali ou que tipo de tênis e comida étnica curtimos.
Nada disso é bonito, apenas é assim. Para manter as coisas funcionando, pessoas tem que fazer coisas que não são muito bonitinhas. Eu sei que os inteligentinhos facilmente entram em surto, mas que vão brincar no parque, com segurança, de preferência.
As redes sociais, esse grande bacanal de narcisismo, são um prato cheio para sermos vigiados. Sites nos dão nosso perfil de consumo e nossa “linha da vida”. Celulares nos avisam quando algo acontece em nossa conta e em nosso cartão de crédito, e isso tudo é muito “prático”, não?
Este evento revela a óbvia violência à privacidade que as redes sociais significam. A ideia de que elas são uma ferramenta da democracia pode ser uma ideia também infantil. Além de elas serem um elemento de alto risco com relação a linchamentos e violência espontânea, elas nos tornam vulneráveis de modo direto na medida em que estar “na rede” significa estar dependente de uma “teia” (de aranha) tecnológica de controle bastante vulnerável a tutela das empresas que nos oferecem a própria ferramenta. Por isso o nome é TI, tecnologias da informação.
Há muito se sabe que é mais fácil subornar um blogueiro do que um jornal gigantesco (o blogueiro é mais barato…). Agora fica mais claro ainda que a manipulação via redes sociais é muito maior do que via mídia “clássica”.
Todo mundo sabe que não pode marcar encontros amorosos ilegítimos via e-mail ou mensagem de celular, como alguém fica escandalizado que a internet não seja segura? Parece papo de falsa virgem de 50 anos.
Em breve esqueceremos isso e continuaremos a postar fotos, falar bobagens, marcar revoluções no final de tarde e propor utopias que requentam a falida autogestão. E viajar para fazer compras em Miami com segurança e usando Visa.
Snowden, e seus 15 minutos, é mais um falso herói para falsos adultos.

Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/



sábado, 20 de julho de 2013

A química da democracia

Estamos diante de uma crise de representação política. A democracia moderna se caracteriza por ser representativa e não direta. Elegemos representantes e eles nos representam no Executivo e no Legislativo. Há muito tempo que este vínculo representativo no Brasil opera mal --vive-se a mesma coisa na Europa ocidental.

Julgo importante momentos como o que vivemos, não somente para chamar nossos representantes de volta a suas funções (eles trabalham para nós e pagamos os salários deles), como para refletir sobre os riscos deste mesmo colapso de representação e o desordenamento político-social que dele decorre a médio prazo: sem supermercados, sem escolas, sem estradas, sem chegar ao trabalho, sem lazer, sem policiamento.

A "química das massas" é volátil, incendiária e instável, e apesar de a imensa maioria ter uma intenção pacífica, a interrupção contínua e crescente da ordem político-social, por definição, rompe esta mesma ordem trazendo à tona riscos.

Mas nem todos os clássicos em política concordam com esta visão de risco do desgaste da ordem político-social. Alguns entendem que devemos buscar este desgaste e leem este mesmo desgaste como oportunidade criativa. Esta "química das massas" pode ser interpretada de diferentes formas.

Hobbes, por exemplo, que não é bem visto pela política contemporânea por ser posto "no saco" dos autoritários, entende que quando a ordem político-social se interrompe, "nossa química", que tem uma vocação latente para a desordem, a contingência e, por tabela, a violência (o que comumente se traduz dizendo que para Hobbes o homem é mau e a sociedade faz ele ser menos mau), entrará em ebulição a qualquer momento e a representatividade tem que retornar a funcionar, se não, caímos no caos social.

Este é o chamado pessimismo hobbesiano, que tende a valorizar a ordem a tudo custo e defender o monopólio legítimo da violência na mão do Estado.

Posições como a de Hobbes têm um defeito claro que é reprimir excessivamente qualquer tentativa de renovação das formas de representação. Daí ele ser mais afeito a temperamentos temerosos com relação a crises políticas agudas.

Rousseau, por outro lado, entende este desgaste como necessário para o surgimento da criatividade em política (Marx não está muito longe disso), daí ele ser típico de temperamentos mais revolucionários em política. Neste sentido, a violência decorrente da interrupção da ordem político-social é entendida como espaço para momentos de democracia direta.

Alguns defendem esta posição falando de "violência criativa" ou mesmo "a política será feita nas ruas e não nas instituições" porque elas não mais representam os representados e seus anseios. Aqui esquerda radical e direita radical se encontram na condenação da representação (os partidos).

O defeito desta opção está no fato de a democracia direta ou "das ruas" tender facilmente (todo mundo sabe disso) à violência, linchamento e julgamentos populares sumários. Neste caso, enquanto hobbesianos tendem a temer a "química das massas", rousseaunianos parecem torcer para esta química fazer novas receitas de "bolo social".

O que pensa Tocqueville sobre esta mesma química da democracia?

Tocqueville pensava que esta mesma química deve ser "cuidada" via mecanismos de pesos e contrapesos institucionais que reúnem desde assembleias muito locais, passando pelas instâncias de razão pública (tribunais, universidades, escolas, mídia), chegando ao Legislativo e Executivo estadual e federal.

Pare ele, não podemos abrir mão deste processo institucional de mitigação da "química da democracia" sob risco de esmagar o indivíduo sob a bota da tirania da maioria, de uma liberdade destrutiva e de uma igualdade com vocação para mediocridade, que elimina a própria criatividade cotidiana.

Por exemplo, no seu "Democracia na América", ele já dizia que não pode haver reeleição de representantes na democracia, se não dá em corrupção. Podemos começar a reforma por aí. Voto em Tocqueville.

PS. Não estou no Facebook, se você "falar" comigo no Face, não sou eu.

Luiz Felipe Pondé Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".

segunda-feira, 3 de junho de 2013

O bandido e o frentista



A população está entregue às traças, enquanto nos palácios, gente inteligentinha de todo tipo (com o mesmo caráter da aristocracia pré-revolucionária de Versailles) discursa sobre “direitos humanos dos bandidos”, toma vinho chileno, paga escola de esquerda da zona oeste de São Paulo que custa 3 mil reais mensais e vai para Nova York brincar de culta.
A inteligência ocidental está podre, mergulhada em seus delírios de reconstrução do mundo a partir de seus três gnomos Marx, Foucault e Bourdieu. Nós, desta casta de ungidos, desprezamos o povo comum porque pensamos que o que eles pensam é coisa de gente ignorante.
Outro dia fui abordado por um frentista num posto perto da minha casa na zona oeste (perto daquela praça destruída aos domingos pelas bikes -”bicicletas” na língua de pobre). Ele disse: “O senhor não é aquele filósofo da televisão?”. E continuou: “Não pense que porque somos proletários, não entendemos o que o senhor fala na televisão”.
Quem adivinha do que ele queria falar? Este posto sempre foi 24 horas e agora não é mais. Por quê? Disse ele que estavam todos, do dono aos funcionários, cansados de serem assaltados toda noite. Disse ele: “O ladrão vem na sua moto, para, põe a arma na nossa cara, rouba tudo, ameaça nos matar e vai embora. Nada acontece”.
E mais: “E fica todo mundo preocupado com o direito dos bandidos. Onde ficam os direitos de quem trabalha todo dia?”.
Vou dizer uma blasfêmia, dirão alguns dos meus amigos da casta inteligentinha: se preocupar com direitos dos bandidos é apenas um modo chique de continuar se lixando para o “povo”, assim como os coronéis nordestinos sempre se lixaram, a diferença agora é que a indiferença para com o destino das pessoas comuns vem regada a vinho chileno e leituras de Foucault.
A “elite branca letrada” é completamente indiferente para com o destino desse frentista.
Ele pede para que a polícia “acabe com os bandidos para ele poder trabalhar e a mulher e filhos dele não serem mortos”. Ingênuo? Simplista? Talvez, mas nem por isso menos verdadeiro na sua demanda “por direitos”. A verdade é que estamos mergulhados num blá-blá-blá pseudocientífico das razões que levam alguém a ser bandido, seja qual for a idade, e enquanto isso esse frentista se ferra.
O que terá acontecido, que de repente a elite letrada e pública ficou tão “sensível ao sofrimento social” e tão indiferente ao sofrimento desta “pequena gente honesta”? Até escuto alguns de nós dizer: “São uns mesquinhos que só pensam nas suas vidinhas”. Quem sabe alguns mais anacrônicos arriscariam: “Isso é resquício do pensamento pequeno burguês”.
A verdade é que nós estamos pouco nos lixando para o que essa gente que anda de metrô, trem e quatro ônibus sofre. Todo mundo muito “alegrinho” com a PEC das empregadas domésticas, mas entre elas e os bandidos a vítima social são os bandidos.
A pergunta que não quer calar é: por que em países islâmicos, por exemplo, com alto índice de pobreza, não existe criminalidade endêmica? Será que tem a ver com medo da terrível punição corânica?
Dirão os inteligentinhos que a causa da criminalidade é social. Hoje em dia, “causa social” serve para tudo, como um dia foram os astros e noutro a vontade dos deuses. Não nego que existam componentes sociais de fome e sofrimento na causa do comportamento criminoso, mas ninguém mais leva em conta que a maioria que vira bandido porque não quer trabalhar todo dia como esse frentista.
Ser bandido é, antes de tudo, um problema de caráter. E esse frentista, pobre também, sabe disso muito bem, só quem não sabe é minha casta de inteligentinhos.
O que dirão os inteligentinhos quando esse contingente de verdadeiras vítimas sociais do crime começarem a se organizar e matar os bandidos a sua volta? Pedirão a alguma ONG europeia para proteger os bandidos dessa gente “mesquinha” que só pensa em sua casinha, seus filhinhos e seu dinheirinho?
Acusarão essa gente humilhada e assaltada de não ter “sensibilidade social”? Dirão que soltar bandidos na rua é “justa violência revolucionária”?

Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/


terça-feira, 7 de maio de 2013

Para além do niilismo

O leitor sabe que meu pecado espiritual é o niilismo. Enfrento-o dia a dia como qualquer moléstia incurável. O tema já foi tratado por gênios como Nietzsche, Turguêniev, Dostoiévski, Cioran. Deixo meu leitor em companhia desses gigantes, muito melhores do que eu.
A tragédia também me acompanha em todo café da manhã, essa concepção grega de mundo que julgo a mais correta já pensada. Aqui tenho grandes parceiros como o autor da tragédia ática Sófocles (entre outros), o filósofo Nietzsche, o dramaturgo Shakespeare e os escritores contemporâneos Albert Camus e Philip Roth.
Ambos, niilismo e tragédia, são visões de mundo que arruínam a vida. Diante deles, ateísmo é para iniciantes. O ateísmo só é aceitável quando blasé e sem associações de ateus
militantes. Para niilistas como eu, o ateísmo crente em si mesmo é brincadeira de meninas com fita cor-de-rosa amarrada na cabeça.
Ando de saco cheio do niilismo e da tragédia, apesar de continuar experimentando-os todo dia. Em termos morais, a virtude máxima para ambos é a coragem, e o vício mais a mão, a covardia.
Nos últimos tempos, tenho me interessado por outra virtude, a confiança, essa, tão difícil quanto a coragem, uma vez tomada a alma pelo niilismo e pela tragédia. É sobre ela que quero falar nesta segunda-feira, dia normalmente difícil, acompanhado do "bode" do domingo e da monotonia do dia a dia que recomeça imerso num sono que nunca descansa, porque sempre atormentado pela dúvida com relação ao amor, à família, ao trabalho e à viabilidade do futuro.
Meu maior pecado como escritor é jamais enganar, jamais querer agradar. Essa é minha forma de prestar respeito a quem me lê semanalmente. O caráter de alguém que escreve é medido pela ausência de desejo de agradar a quem o lê.
Amar cães e confiar neles é mais fácil do que amar seres humanos e confiar neles. Por isso, num mundo atormentado pela dúvida niilista, ainda que em constante denegação dela, tanta gente se lança à defesa melosa de cães e gatos e exige carne de frangos felizes na hora de comer em restaurantes ridículos.
Quero propor a você duas obras. Um filme e um livro que julgo entre os maiores exemplos da arte a serviço da confiança na vida.
O filme "As Damas do Bois de Boulogne", do cineasta francês Robert Bresson, de 1945, é uma pérola sobre a confiança na vida e nos laços afetivos. Bresson é um cineasta muito marcado pelo pensamento do escritor George Bernanos, grande anatomista da alma e especialista em nossa natureza vaidosa, mentirosa e, por isso mesmo, desesperada. Coisa para gente grande, rara hoje em dia, neste mundo governado por adultos infantis.
O filme trata da vingança de uma mulher belíssima contra seu ex-amante (que a abandonou), um homem frívolo e covarde por temperamento. Essa vingança se constitui na aposta de que ele e a mulher que ela "contrata" para sua vingança agirão do modo esperado. Sua intenção é fazer com que seu ex-amante se apaixone por essa mulher "contratada", uma prostituta.
O homem é mantido na ignorância da vida pregressa de sua noiva até depois do casamento. O que a mulher abandonada não contava é que a prostituta se apaixonasse pelo covarde, levando-o a transformação inesperada de caráter.
O amor também é personagem central da obra do dinamarquês Soren Kierkegaard "As Obras do Amor", da Vozes. Esse livro é o texto mais belo que conheço sobre o amor na filosofia ocidental.
Segundo nosso existencialista, o amor tudo crê, mas nunca se ilude porque, assim como a desconfiança e o ceticismo, o amor sabe que o conhecimento não é capaz de nada além do que fundamentar o niilismo, o ceticismo e o desespero.
O amor é um afeto moral, não um ato da razão. A razão não justifica a vida. O amor é uma escolha de investimento na vida, uma atitude, mesmo que a razão prove a falta de sentido último de tudo.
Ingênuos são os niilistas e céticos que consideram a desconfiança um ato livre da vontade. A desconfiança é uma escravidão. A aposta na vida é que mostra o caráter maduro de mulheres e homens. Boa semana. 


Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".

Crítica: Obra de Tomás de Aquino ilumina Idade Média


Tomás de Aquino (1225-1274), um dos principais filosofos da Idade Media

O mundo medieval é distante do nosso. Aquele banhado pelas sombras, este pelas luzes dos iPhones. Mesmo a espiritualidade se faz prestadora de serviço e Jesus, um consultor de sucesso.
A metafísica, antes uma elegante ciência do intelecto, torna-se, a cada dia, mero imaginário a serviço de nossas pequenas neuroses instantâneas: hoje sou budista, amanhã seguidor de algum neocacique aborígene.
Pensamos na Idade Média como um esgoto grande cheio de peste, mulheres queimadas, anjos e demônios.



Tomás de Aquino (1225-1274), um dos principais filosofos da Idade Media (foto)

Mas não, a Idade Média foi uma época de grande atividade intelectual, com grande diversidade de interesses e concepções, ao contrário da nossa época, uma hora obcecada pelo cérebro, outra pelos genes, outra ainda pelo "social".
Uma das formas de conhecer a Idade Média, ultrapassando o "nosso senso comum de esgoto" sobre ela, é conhecer sua filosofia e o santo italiano Tomás de Aquino (1225-1274), que foi um dos seus maiores expoentes.
O Aquinate, como ficou conhecido seu conjunto de ideias, buscou pôr em diálogo a tradição bíblica e a filosofia grega, elaborando um sofisticado sistema filosófico de difícil redução a algum conjunto limitado de manias. Essas duas tradições são "costuradas" de modo sutil ao longo de sua obra.
Um belo exemplo desse percurso é "Questões Disputadas Sobre a Alma", que a editora É Realizações nos traz agora, numa elegante edição bilíngue latim-português, com excelente prefácio de Carlos Augusto Casanova Guerra, doutor pela Universidade de Navarra.
GRANDES TEMAS
A edição é um presente não só para o grande público erudito, interessado em conhecer mais a "mente medieval", mas também, e principalmente, para o público especializado, que agora dispõe de uma peça com tradução em português para seus estudos acadêmicos.
Tomás de Aquino arrola várias fontes na obra --Bíblia, Platão, Aristóteles, patrística, neoplatonismo--, todas organizadas de modo escolástico, ou seja, buscando clareza no encadeamento dos argumentos e conclusões.
O repertório erudito de sua época está todo ali, a serviço do esclarecimento de 21 questões sobre a alma que podem ser resumidas em alguns grandes temas.
Por exemplo, o que é o ser, o que é a essência da alma e qual seu lugar no mundo visível e invisível? Qual sua relação com o corpo? Somos imortais? E como é essa imortalidade?
O filósofo responde com esse elenco de temas algumas das questões de sua época, as inquietações do dia e da noite e do cotidiano. Será que essas questões mudaram tanto de lá pra cá?

QUESTÕES DISPUTADAS SOBRE A ALMA
AUTOR Tomás de Aquino
TRADUÇÃO Luiz Astorga
EDITORA É Realizações
QUANTO R$ 59 (464 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

terça-feira, 2 de abril de 2013

Você tem cabeça aberta?

 


Você tem cabeça aberta? Acusar alguém de ter cabeça fechada hoje em dia é uma ofensa pior do que xingar a mãe.
Hoje todos querem ter cabeça aberta. Um tema top para cabeças abertas é preconceito x práticas sexuais, e um lugar certo para deixar claro que você tem cabeça aberta é jantares inteligentes. Se você quer fazer sucesso num jantar desses, chame todo mundo que discorda de você de “ridícula”.
Nesses jantares, as pessoas têm as opiniões certas sobre tudo; por exemplo, ninguém tem preconceito contra nada. Acho muito fofo gente que não tem nenhum preconceito contra nada.
No tema “práticas sexuais”, o que percebemos, se formos um pouquinho além do senso comum, é que o “normal x patológico” ou “moral x imoral” é bastante relativo no tempo e no espaço. Isso significa que o que se acha imoral hoje amanhã pode não ser, e vice-versa. O mesmo para o que se acha patológico.
Quem busca um critério absoluto, sem variação histórica ou geográfica (a tal variação no tempo e no espaço de que falei acima), hoje em dia, se vê em maus lençóis. Além, claro, de dar atestado de ter preconceitos numa época em que ter preconceitos é pior do que matar a mãe.
Aliás, se não disse ainda, digo: acho fofo gente que não tem preconceito contra nada.
Um modo de se posicionar acerca dessa fronteira entre sexo normal x patológico ou moral x imoral é defender a ideia de que entre dois adultos tudo é permitido, se a prática for fruto de livre escolha (eis uma versão para mortais da tal autonomia kantiana). Esse argumento até é válido, já que não sabemos mais nada sobre coisa nenhuma em moral (só mentirosos dizem que têm “princípios éticos”). Mas ele é problemático, já na definição de “adulto”, porque ela também é relativa no tempo e no espaço. Um cara de 40 ficar com uma mina de 14 nem sempre foi visto como crime contra a infância.
Outra coisa problemática é a própria ideia de “livre escolha”. Por exemplo, se você gosta de apanhar, talvez só goste mesmo quando seu parceiro ou parceira vai além do que você “permite”, senão você não goza de verdade. Mas devo confessar que há algo de pueril em achar que “livre escolha” resolva o problema. Acreditar na ideia de “autonomia kantiana” (a tal da “livre escolha”), às vezes, também, é superfofo.
Vamos, porém, deixar de barato esses pequeníssimos detalhes e vamos a algo mais “significativo”. Faço uma proposta para seu próximo jantar inteligente. Claro, se você for um pobre engenheiro, nem pense em querer ir, a menos que sua mulher seja psicóloga –aí os donos da casa inteligente podem aceitá-lo. Se você for um cara e sua “mulher psi” for um cara também, aí a entrada é garantida.
Vamos testar as cabecinhas abertas? Atenção, respire fundo: você já viu o vídeo “2 girls 1 cup“? Mas, antes de descrevê-lo (não em detalhes, porque seria demais para uma segunda-feira), vou dizer uma coisa. Acho que, se você é o tipo de pessoa que quer provar que tem cabeça aberta, você deve discutir apenas o que lhe parece absurdo (ou “nojento”, na linguagem de gente que tem preconceito). Mas não é isso o que acontece normalmente.
A moçadinha que tem cabeça aberta só gosta de discutir coisa que não põe em risco sua imagem de gente bacana. Falar mal de machista, racista, sexista, católico e evangélico é coisa de iniciante no ramo de discussões de verdade.
E o vídeo? Neste, duas mulheres começam com sexo lésbico normal e acabam fazendo sexo a três: elas duas + as fezes de uma delas (se é apenas efeito especial, pouco importa). Isso é chamado no mundo careta de “coprofilia”. Quem gosta de xixi é urofílico.
Então: gente que gosta disso é doente, imoral, ou apenas gente de cabeça aberta explorando seus limites do gozo? Lembre: o que hoje é doença ou imoralidade amanhã pode não ser.
Na verdade, imagino que em breve esses caras terão suas ONGs e defenderão também “safe sex”. Como fazê-lo? Ensinando nas escolas a identificar fezes infectadas pela aparência e cheiro?
O que a gente fofa diria disso? Ainda sem preconceito? Perdeu o apetite? As ciências sexuais têm muito o que aprender.

Luiz Felipe Pondé (jornal FSP – 25.03.2012)  | Outra fonte para este artigo: AQUI



Helena não tem culpa

 
Detalhe de “A Intervenção das Sabinas” (1799)  |  Pintura de Jacques-Louis David


Dias atrás, uma amiga, alta executiva paulista, radicada no Rio, me mandou um e-mail com a cópia de uma resenha sobre um livro (fruto de pesquisa de campo) de um antropólogo, Napoleon Chagnon, que estudou os índios ianomâmis no Brasil e na Venezuela por muitos anos. Suas conclusões não são aquelas que a comunidade acadêmica, ideologicamente orientada na sua quase totalidade, costuma gostar.
Quem sabe, este “desgosto ideológico dos pares” (gente ávida por destruir oponentes teóricos) tenha sido responsável pelos desdobramentos negativos que o antropólogo teve em sua vida profissional por conta desta pesquisa. O livro (“Noble Savages“), que logo comprei, deveria ser lido nas escolas. Um tratado contra a tradição marxista, não só em antropologia, mas em tudo mais. Mas o que especificamente tem esse livro contra esta tradição?
Engana-se quem pensa que a tradição marxista comece com Marx, ela começa com Rousseau e seu bom selvagem. O princípio é que o homem é bom e a sociedade é que o perverte. A perversão do bom selvagem pelo “Das Kapital” é apenas uma decorrência do principio do Rousseau, só que para Marx não partimos do bom selvagem, mas sim chegaremos a ele quando superarmos esta sociedade má.
Uma ideia assim (que somos bons e a sociedade nos corrompe, e aqui você pode colocar no lugar de “sociedade” a família, o patriarcado, a igreja, o capital, os EUA, o patrão, seu pai autoritário) faz almas fracas gozarem de prazer. Porque o que ela diz é que, ao final, não sou responsável por nada que faço. Não fosse pela “sociedade”, eu seria um homem bom. Ao contrário do que parece, essa tradição pegou porque alimenta algo de muito banal: que somos homens bons em nossa natureza essencial. Esta ideia alimenta nossa vaidade e não foi por outro motivo que Burke, filósofo britânico do século 18, chamava Rousseau de “filósofo da vaidade”.
Nossa origem é o bom selvagem? É por isso que australianos que não têm o que fazer se pintam de aborígenes e gritam por aí? Quanta bobagem! Quanto lixo escrito com tinta cara!
Também concordo que devemos olhar para o “passado” para entendermos como somos hoje. A diferença é que minha ideia de “estado natural do homem” é diferente da de Rousseau, o filósofo da vaidade. Partilho da ideia que para nos entendermos devemos olhar para a pré-história de fato, e não a mítica, como a do Rousseau.
Este mito alimenta uma outra bobagem: a ideia de que toda diversidade cultural é linda. “Viva a diferença!”, dizem os festivos por aí. A “humanidade”, na sua capacidade frágil de não ser bicho malvado, foi tirada das pedras, à custa de muito sangue. Sempre bebemos o sangue dos outros no café da manhã.
E aí voltamos ao livro. A conclusão de Chagnon é que os ianomâmis, parentes nossos que vivem muito perto do que seria o neolítico, tribos que permaneceram bastante “puras” enquanto outras já haviam sido “contaminadas pela maldade do homem branco” (risadas?), sempre se mataram por uma razão nada complexa: “mulher, mulher, mulher”. Inclusive, quem tinha mais mulher, tinha mais descendentes.
Qualquer evolucionista gargalharia diante de tamanha obviedade ocultada pelas interpretações ideológicas pueris da falsa história do bom selvagem. Os ianomâmis também têm suas Helenas de Troia. Entre eles, quem matava mais tinha mais mulher. Entre nós, quem é mais “adaptado” tem mais mulher.
Não se trata de culpar as mulheres porque são filhas de Eva. Responsabilizar a mulher pelos males do mundo é coisa de homem brocha que, por não conseguir penetrá-la, recorre à falsa culpa feminina para aplacar sua desgraça.
Reconhecer que os ianomâmis se matam em troca de mulheres (ou se matavam enquanto eram “puros” ou “bons selvagens”) não é uma prova contra as mulheres. É uma prova contra Rousseau e sua tradição do bom selvagem. Eu, pessoalmente, acho até uma boa causa. Quero dizer, nos matarmos por mulheres. Neste caso, o troféu é bem concreto e todo mundo sabe de seu “valor de uso”.
Isto é, não precisamos de provas metafísicas para reconhecer o valor de uma mulher.

Luiz Felipe Pondé (jornal FSP – 18.03.2012)  | Outra fonte para este artigo: AQUI

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Análise sobre a renúncia do Papa Bento XVI




Joseph Ratzinger é um dos maiores teólogos vivos do cristianismo. Como papa Bento 16, fracassou.
Conservador, um tanto liberal no começo de sua carreira, Bento 16 iniciou seu papado com um projeto, já em curso quando era a eminência parda intelectual de João Paulo 2º, de pôr “medida” na herança do Concílio Vaticano 2º, verdadeira “revolução liberal” na Igreja Católica. Já nos anos 80 atacava a teologia da libertação latino-americana por considerá-la certa quanto ao carisma profético bíblico de procurar justiça no mundo, mas errada quanto a assumir o marxismo como ferramenta de realização desta justiça.
Bento 16 foi um duro crítico da ideia de que a igreja deva aceitar soluções modernas para problemas modernos. Nesse sentido, apesar de ter resistido bravamente, com a idade e a fraqueza que esta implica, acabou por ser um papa acuado pelas demandas modernas feitas à igreja e por uma incapacidade de pôr em marcha sua “infantaria”, que nunca aceitou plenamente seu perfil de intelectual alemão eurocêntrico.
Sua ideia de igreja é a de um pequeno grupo coeso de crentes, fiéis ao magistério da igreja (conjunto de normas para condução moral da vida), distante das “modas moderninhas”.
Quais seriam algumas dessas demandas modernas? Diálogo simétrico com outros credos (multiculturalismo), casamento gay, divórcio, sacerdócio das mulheres, fim do celibato, uso de contraceptivos, aborto, punição pública de padres pedófilos (a igreja deveria passar esses padres para a Justiça comum), aceitação de avanços da medicina pré-natal como identificação de fetos sem cérebro e consequente aborto, alinhamento político do clero com causas sociais e políticas do terceiro mundo –enfim, desafios típicos do contemporâneo.
Bento 16 esbarrou com o fato de que a maior parte dos católicos militantes hoje é de países pobres (afora o caso dos EUA, o cristianismo é uma religião de país pobre).
Os fiéis, portanto, estão mais próximos de um discurso contaminado pelas teorias políticas de esquerda, que fala de justiça social como um direito “divino” e aproxima Jesus de Che Guevara, do que da complicada discussão acerca dos excessos do iluminismo racionalista ou da crítica bíblica que tende a humanizar Cristo excessivamente em detrimento de sua divindade.
Seu próprio clero (sua “infantaria”) ajudou no fracasso de seu papado, resistindo sistematicamente à “romanização da igreja”, o que em jargão técnico significa centralização das decisões relativas ao cotidiano da instituição na lenta burocracia do Vaticano, com sua típica alienação europeia, distante do “caos” do mundo real do Terceiro Mundo. O Vaticano é muito europeu, inclusive em sua decadência como referência para o mundo no século 21.
Mas há dimensões que transcendem as dificuldades específicas de seu projeto conservador e tocam dificuldades da Igreja Católica contemporânea como um todo. A igreja hoje tem um sério problema de formação de quadros. Antes era “um bom negócio” entrar para a igreja; hoje, quem o faz, salvo casos de grande vocação mística e espiritual ou de revolta contra as ditas “injustiças sociais”, é muitas vezes gente sem muita opção de vida. Quando não, tal como é visto por parte da população secular, gente com desvios sexuais graves.
Os cursos de formação do clero, quando não totalmente contaminados pelos próprios teóricos que João Paulo 2º chamava em sua encíclica “Fides et Ratio” (“Fé e Razão”) de “pensadores da suspeita” contra a fé e a razão (Marx, Nietzsche, Freud, Foucault), são fracos, com professores mal formados e conteúdos vazios. Claro que existem exceções, que, como sempre, em sendo exceções, confirmam a regra.
Enfim, o papado de Bento 16 fracassou, em grande parte, em razão do fogo amigo: sua própria infantaria.
A Igreja Católica agoniza diante de um mundo que cada vez é mais opaco para quem pensa, como ela, que a vida seja algo mais do que conforto, prazer e liberdade pra transar com quem quisermos e quando quisermos.


Luiz Felipe Pondé (jornal FSP – 12.02.2012)

Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/

Amando uma mulher inteligente


Mads Mikkelsen (esquerda), Alicia Vikander (centro) e Mikkel Boe Følsgaard (direita)

Hoje é Carnaval. Carnaval é um saco. Morei muitos anos na Bahia, falo de cátedra. Não existe festa mais autoritária do que o Carnaval e a devastação que causa em nome de sua alegria barulhenta. Mas gosto não se discute, lamenta-se. Por isso, hoje vou falar de coisa mais séria; vou falar de amor romântico e de um filme maravilhoso para quem gosta do tema e também de filosofia: “O Amante da Rainha“, filme dinamarquês dirigido por Nikolaj Arcel, com Mads Mikkelsen (o amante) e Alicia Vikander (a rainha) no elenco.
Você acredita no amor romântico? Dito assim parece uma pergunta idiota. Alguns dirão que pessoas maduras sabem que o amor não existe. Outros, que é diferente de paixão, sendo esta passageira, enquanto o amor seria algo mais sólido, dado a parcerias de longa duração.
Nada mais pernicioso para um casamento de longa duração do que a expectativa de amor romântico depois de um certo número de anos, diriam os “maduros”. Expectativas assim seriam “coisa de mulher”, o que também é uma besteira. Homens sonham com momentos de paixão com suas mulheres no dia a dia. “Ter uma mulher” significa exatamente isso.
Supor que os homens são animais de cerveja, futebol e sexo é não entender nada sobre os homens. Pensar que os homens só pensam em cerveja, futebol e sexo é a mesma coisa que pensar que mulher é um ser menos inteligente. A suposta simplicidade masculina é tão falsa quanto a também suposta irracionalidade feminina.
O tema encanta, apesar de alguns teóricos afirmarem que o amor é uma mera invenção da literatura europeia medieval (como o Papai Noel), universalizada, de modo equivocado, pelos autores românticos dos séculos 19 e 20. Digo “equivocada” porque, para os medievais, nem todo mundo seria capaz de viver ou suportar tal forma de amor avassalador. Já para os românticos, modernos, todo mundo poderia viver essa forma de encantadora doença da alma.
Eu não acredito que o amor romântico seja uma invenção da literatura, mas concordo com os medievais: muita gente passa pela vida sem experimentá-lo. Uma pena, pobres miseráveis…
A narrativa medieval descreve essa “maladie de la pensée” (doença do pensamento, do espírito), dito no original provençal (um tipo de francês comum na Idade Média), como um modo de obsessão que arrasta o homem e a mulher, fazendo com que fiquem presos no desejo de estar um com o outro e atormentados quando não podem se encontrar, quando não podem se tocar. Segundo os medievais, ele ficará horas imaginando o que ela estaria fazendo, pensando, sonhando, com o desejo de penetrar em todos os segredos de sua alma e de seu corpo (“Tratado do Amor Cortês“, de André Capelão, publicado pela editora Martins Fontes).
A estrutura ideal supõe o amor impossível, no qual a morte espera os dois ou um dos dois –e a desgraça do que sobrevive. Quando o amante é amigo fiel do marido dela, a estrutura dramática encontra seu modo mais perfeito de impasse.
Dirão os especialistas que o amor romântico cantado nos séculos 18 e 19 fala da destruição de qualquer forma de vida que não a interesseira, típica da burguesia e sua alma de “merceeiro”, como diria Marx.
“O Amante da Rainha” tem exatamente essa estrutura. O amante é médico e confidente do rei e se apaixonará enlouquecidamente, e será correspondido, pela rainha. Esse médico, chamado de “o alemão” pelos dinamarqueses (o personagem é alemão), é um iluminista (leitor de Rousseau e Voltaire) que crê na superação da barbárie pelo uso da razão e da ciência. Ela também.
O amor dos heróis não é apenas construído a partir de “sentimentos” mas, também, do encontro entre suas almas inquietas com o mundo a sua volta. Ambos são filósofos de uma época em que a filosofia se revoltou com a estupidez do mundo (o filme se passa na segunda metade do século 18). Aliás, a filosofia sempre se revoltará, porque o mundo será sempre estúpido.
Além de belas pernas e belos seios, a delícia de partilhar inquietações filosóficas com uma mulher que amamos pode ser uma das maiores formas de amor romântico que existe. Infeliz aquele que não sabe disso.


Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/

Luiz Felipe Pondé (jornal FSP – 11.02.2012) | Outra fonte para este artigo: AQUI

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