Criou uma obra torrencial, quente de vida e de pecado, numa prosa que parecia desleixada aos críticos
Ele foi o único habitante deste planeta que conseguiu acreditar com a
mesma sinceridade em Marx e na Menininha do Gantois. Muitos não admitem
essa intimidade de Jorge com o marxismo, ao qual aderiu mais com o
coração do que com a cabeça. E sua literatura também foi assim. Nada de
papo cabeça.
Papo coração.
Suando baianidade, melado pelo ouro do cacau, ele foi uma mistura de pai
de santo e pajé, um pajé que sabia contar histórias bonitas para a
imensa taba global onde à noite, se alguém era capaz de duvidar, ele
repetia com astúcia: "Meninos, eu vi!".
Se o poeta é o fingidor, o romancista é o mentiroso. No caso da poesia, quanto mais finge, mais o poeta é sincero.
No romance, quanto mais se mente, mais se é verdadeiro. E nada mais
verdadeiro do que o universo de saveiros e moleques, de mulatas
cadeirudas e operários perseguidos, de xangôs e iemanjás, de cabarés e
velórios, de doutores de borla e capelo e capitães de longo curso, de
quituteiras e babalaôs que povoaram suas noites enfeitiçadas, seus
terreiros de suor e milagres -que a carne sofre inteira e precisa sentir
prazer por inteiro, pois ninguém é de ferro.
Jorge Amado conseguiu o absurdo de ser cético e de ser crente. Só na
Bahia podia nascer um sujeito assim. Por isso mesmo ele tinha um gosto
de azeite e de sono espreguiçado, de cafuné e de mulata tombada nos
fundos da cozinha.
Espiou o mundo com o olho treinado nas fechaduras da vida: compreendeu
tudo. Leitores que ele teve em todo o mundo não sabem o que perderam: a
pessoa humana que só deu a conhecer uma parte de si mesma. Uma parte que
constitui um dos maiores todos da literatura moderna.
E este Jorge começou a se mostrar de mansinho, escrevendo "Lenita", uma
novela em parceria com Dias da Costa e Edson Carneiro. Tinha 15 anos. O
trabalho em equipe geralmente não figura na lista de suas obras, mas não
deixou de ser uma ameaça. Ele queria escrever.
O seu aprendizado não seria feito nos laboratórios da gramática ou nos
alambiques da linguística. Como a cozinheira se faz no fogão, prevendo e
provendo panelas e frigideiras, Jorge se fez na vida, vivendo e
escrevendo. Lenita teria sucessoras: Gabriela, Dona Flor, Tereza
Batista, Tieta do Agreste.
Criou uma obra torrencial, humana, quente de vida e de pecado, numa
prosa que parecia desleixada aos críticos do "ancien régime" literário,
mas que o povo ia absorvendo, gostando e consagrando.
Sua obra é inteira, coerente, vívida, caudalosa, formalmente irregular e
densamente regular. Não se deve exigir a mediocridade das fórmulas
tradicionais de um escritor cuja força humana e literária criou
"Jubiabá", "Mar Morto", "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água".
Suas mulheres de ancas cobiçadas, seus turcos fesceninos cheios de
truques, seus marinheiros mentirosos, seus santos e suas senhoras
afogadas em mantas e colares coloridos são sempre os mesmos, em qualquer
língua ou sob qualquer sintaxe.
Jorge faria hoje, 10 de agosto, cem anos. Fez mais do que isso. Para
todo o sempre, ele ficou inteiro em sua obra, e para aqueles que o
conheceram foi uma figura humana espetacular. Dele guardo duas
lembranças pessoais.
À minha revelia, marcou um encontro com a Menininha do Gantois e foi
comigo para ver como me sairia. Garantiu-me que a visita "mal não pode
fazer". Filho dileto de outra mãe de santo, ele não podia pedir a bênção
de uma rival. Mas pediu e foi abençoado. Para todos os efeitos, ele era
filho e devoto de todas as mães de santo da Bahia.
Tancredo Neves foi a um almoço na "Manchete". Quando me viu, o já
presidente eleito elogiou crônica publicada naquela semana, aludindo a
uma suposta "plasticidade" de estilo. Tive meu minuto de glória. Logo
chegou Jorge Amado, blusão com todas as cores, boné de operário russo e
capanga pendurada em diagonal no seu largo peito. Tancredo correu para
abraçá-lo e elogiou seu último livro: "Que plasticidade!".
Murchei. Fui me queixar com o Jorge, muito mais escolado em situações
iguais. Ele comentou: "O Doutor Tancredo errou de profissão. Seria
melhor e maior romancista do que todos nós, incluindo o velho Machado".
folha de s.paulo
10/08/2012
http://sergyovitro.blogspot.com.br/2012/08/carlos-heitor-cony-o-imenso-jorge.html