MADRI - Com ironia, menos pesar do que o esperado por alguns e
distante, mas atento, Milan Kundera (nascido em Brno, República Tcheca,
em 1929) voltou ao panorama da literatura europeia. "La Fête de
L’insignificance" ("A festa da insignificância") chegou às livrarias
francesas pela editora Gallimard (ainda a ser publicado no Brasil) e já
vendeu 100.000 exemplares na Itália. E longe de ser resolvido, o enigma
do escritor esquivo e recluso, escondido e voluntariamente desligado de
sua língua materna — escreve em francês desde "A Lentidão", lançado em
1994 —, revela-se um pouco mais agora.
“Leve como uma pluma de
perdiz ou de anjo”, compara o "Le Monde", Kundera voa alto no romance
que aparece agora, 14 anos depois de "A Ignorância". Por onde andou? O
que estava fazendo? Afastar-se, ocultar-se, ler em francês, alemão e
tcheco, as línguas que domina Aprofundar talvez os meandros kafkianos
que tanto o apaixonam e reconhecer neles os sinais deste tempo difuso,
indescritível.
Kundera tenta passar despercebido com sua vocação
de autor invisível, apesar das polêmicas que lhe perseguiram, sobretudo
em seu país de origem. Foi acusado de ter colaborado com o regime
comunista. Ele se recusou a revisar suas traduções do francês ao tcheco —
“por falta de tempo”, chegou a dizer; leia-se: por falta de vontade.
Rompeu quase todos os vínculos que lhe uniam à República Tcheca. Isso,
depois de ter esmiuçado brilhantemente uma terra central e sofrida,
serena e humilhada pelos grandes flagelos do século XX.
O peso de
um legado escuro em busca da luz — ou do absurdo — definiu sua obra
desde "Risíveis amores" até "A brincadeira"; de "A vida está em outro
lugar" até "A insustentável leveza do ser" — publicado em seu país em
2004, mas um clássico desde meados dos anos 1980. Também serviu de guia
ao seu estilo cada vez mais enigmático e polissêmico em livros como "A
imortalidade", "A lentidão" ou neste último lançamento.
Sua
editora Beatriz de Moura, nascida no Rio de Janeiro, está traduzindo ao
espanhol uma obra que o autor levava um tempo comentando com os mais
íntimos. Começa com pinceladas eróticas e ares pós-modernos de "Morte em
Veneza", entre a contemplação de um umbigo e a comparação do sagrado
símbolo romântico dos seios femininos com a efigie da Virgem Maria.
De
Moura, dedicada e árdua defensora de Kundera, revela alguns detalhes:
“Estão presentes quase todos os temas preferidos do autor e levados à
sua essência: a maternidade, a sexualidade, o poder com suas facetas —
desde a crueldade e a arbitrariedade até o absurdo e a ternura —, a
grosseria do falacioso...”.
Tudo isso, com uma pitada de humor.
Foi o que mais surpreendeu a editora. Esse equilíbrio magistral se nota
nas entrelinhas: “Fácil de ler, mas difícil de compreender”, garante.
“No geral, Kundera mostra uma visão descontraída do mundo que não para
de cair no ridículo e que termina em um festejo burlesco”.
Sobre
essa profunda leveza concordam as resenhas francesas e italianas. “O
grande retorno de Kundera”, atesta o "Le Figaro". “A última valsa…”,
destaca o "Le Nouvel Observateur", prevendo que já não haverá outra
igual. Como uma “pequena e encantadora comédia humana”, definiu o "La
Repubblica", ao passo que o "Corriere della Sera" descrevia o livro como
um “divertimento surreal e uma parábola felliniana na qual se mesclam
personagens com elucubrações extravagantes”.
Mais Falstaff que
Hamlet, Kundera apresenta-se novamente nesta etapa final de sua vida e
de sua obra, com 85 anos completados neste mês. Imprevisível e muito
livre, insólito e inesperado, no tempo que mediou desde seu último
lançamento literário, o autor ingressou na coleção da Plêiade de
Gallimard, algo como o olimpo da literatura francesa, onde se junta a
Proust e Balzac. E também viveu mergulhado em uma polêmica: em 2008 uma
revista tcheca lhe acusou de delatar, em 1950, um estudante à polícia
comunista. O rapaz passou 22 anos na prisão.