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sábado, 6 de dezembro de 2014

Casa aberta





Mais do que em todos os dias e em grandes momentos do ano, as festividades natalinas e as ligadas ao Réveillon causam em nós uma sensação diferente. E o mais interessante é que não apenas representamos ou idealizamos estes eventos, mas os concretizamos, fazemos acontecer momentos de inteira generosidade, gratidão a Deus e às pessoas com as quais convivemos. Expressões de paz, amor, bondade, alegria e esperança nos conectam uns aos outros de uma forma tão objetiva que somos movidos para gestos de exuberância humana: Trocamos presentes; organizamos jantares beneficentes; sorteamos cestas natalinas; realizamos passeios ou viagens com quem amamos; abrimos a casa, etc. Sem contar as centenas de beijos e abraços muito comuns desta época do ano.
Essa sensação extremamente humana nos faz lembrar de como deve ser um lar. Não, às vezes, de como ele é, sujo, violento, insuportável, detestável, mas de como deveria ser, limpo, pacífico, agradável, seguro, acolhedor. A casa da gente precisa ser bem tratada, principalmente em tempos de festa, quando recebemos pessoas queridas que não víamos há anos. É preciso olhar mais para casa, onde as distâncias diminuem e tudo fica mais próximo. É exatamente o que acontece agora, no devido instante em que somos arrancados de nosso próprio mundo, de um mundo fechado, totalitário, racionalista, egoísta para nos relacionarmos com o que há para além de nós mesmos, alcançando assim uma abertura para a alteridade, uma abertura infinita.
Emmanuel Levinas, filósofo, leitor da Bíblia e de Dostoievski, entendia a casa como um ponto de referência, segundo a qual o eu vai em direção à exterioridade do mundo. “O papel privilegiado da casa não consiste em ser o fim da atividade humana, mas em ser a condição e, nesse sentido, o seu começo” (Totalidade e Infinito, p. 144). A casa que sou eu e a casa que é o mundo vivem agora uma conexão tão intensa a ponto de um querer humanizar o outro e vice-versa. “Simultaneamente fora e dentro, vai para fora a partir de uma intimidade. Por outro lado, a intimidade abre-se dentro de uma casa, que se situa nesse fora” (idem, p. 145).  
A ilustração da casa, sugerida por Levinas, para demonstrar a pertinência de nossas relações com os excluídos, com as minorias desfavorecidas, os pobres, a viúva, o órfão e o estrangeiro é cada vez mais significativa e atual. A recorrente imagem da “casa aberta”, neste período do ano, tal como deve ser em toda a vida, receptiva ao outro, é muito viva na música de Arnaldo Antunes, “a casa é sua”:
Não me falta cadeira/ Não me falta sofá /Só falta você/ sentada na sala/ Só falta você estar
Não me falta parede/ E nela uma porta pra você entrar/ Não me falta tapete/ Só falta o seu pé descalço pra pisar
Não me falta cama/ Só falta você deitar/ Não me falta o sol da manhã/ Só falta você acordar
Pras janelas se abrirem pra mim/ E o vento brincar no quintal/ Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal
A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio
Não me falta banheiro, quarto/ Abajur, sala de jantar/ Não me falta cozinha/ Só falta a campainha tocar
Não me falta cachorro/ Uivando só porque você não está/ Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar
Não me falta casa/ Só falta ela ser um lar/ Não me falta o tempo que passa/ Só não dá mais para tanto esperar
Para os pássaros voltarem a cantar/ E a nuvem desenhar um coração flechado/ Para o chão voltar a se deitar/ E a chuva batucar no telhado
Numa sociedade imensamente carente de referências, a casa cheia de gente, onde as famílias se encontram e se transformam a cada encontro, é a realização de qualquer Natal e passagem de ano para alguém, na medida em que simboliza recomeço, renovo, revitalização. Também é uma oportunidade de resgate das referências familiares, a partir das quais ressignificamos nosso mundo, nossa casa, nosso lugar no mundo e passamos a ser mais humanos com respeito, amor, tolerância, bondade, justiça e paz.
Enquanto escrevia esse texto, duas figuras clássicas da literatura não me saíam da cabeça, a do filho pródigo usada por Jesus Cristo e a de Ulisses usada por Homero. As duas falam desse regresso ao lar e, curiosamente, a casa estava aberta, no sentido de mostrar uma nova maneira de reaprender a ver o mundo.

Jackislandy Meira de M. Silva, professor, filósofo e teólogo.




segunda-feira, 28 de abril de 2014

YES, QUEREMOS BANANAS

Daqui a 45 dias, a Copa do Mundo vai começar no Brasil. Brasil é aquele país da América Latina onde os estádios demoram a ficar prontos, em que quase tudo fica mais caro do que o previsto, onde lutamos contra a corrupção há 500 anos... mas em que ninguém é branco. Ou não deveria ser. Ninguém é preto - ou não deveria ser. Ninguém é azul, amarelo, verde ou vermelho. Temos todas as cores. Ou deveríamos ter.
E hoje... todos nos chamamos Daniel Alves. Todos temos pele mulata, olhos claros e cabelo pixaim. Todos nascemos na Bahia - com sangue negro, branco e índio a correr pelas veias. E todos comemos a banana metafórica lançada no chão.
Essa banana é o Brasil viajando no tempo e no espaço. Comer o racismo e metaforicamente descomê-lo com a melhor das ironias - é esse o Brasil moleque, o Brasil bailarino - capaz de driblar num espaço de guardanapo, de sambar na cara do velho mundo, capaz de superfaturar estádios, metrôs e refinarias, de produzir mensalões e mensalinhos... mas incapaz... ou quase sempre incapaz de aceitar a intolerância.
A intolerância nos agride mais que a corrupção. No Brasil se fala português com açúcar - escreveu Eça de Queiroz. Somos dóceis, somos ternos - e preferimos ser. Nossos pecados são disfarçados - e é bom que assim seja. Desprezamos o alcagüete mais do que o criminoso. Precisamos de leis para impedir que existam elevadores sociais e de serviço - mas não admitimos a humilhação pública. Não admitimos o lançamento de banana.
Podemos ser a PM subindo o morro, podemos ser o tráfico atirando pra baixo... mas, quase sempre, somos o beijinho no ombro, a mão que afaga aqui e afana ali - mas não a que apedreja.
Vamos comer essa banana como Oswald de Andrade. Comê-la, digeri-la e transformá-la. Hoje somos todos macacos. Eu, você, o Neymar, o político, a presidente, o ministro, o empresário, o trabalhador, o senhor, a senhora, o presidiário, o ator, o ladrão, o policial, o bombeiro, o deputado de direita, o vereador de esquerda, o padeiro, o gari, o motorista, o preto, o branco, o azul, o cor-de-rosa.
Somos todos hélios de la peña - temos olhos azuis e pele negra. Somos todos marcos palmeira, mestiços de olhos castanhos e cabelo enrolado Somos todos preta gil, tais araújo, lázaro ramos. Somos todos giovanna antonelli, fernandas lima, tammy gretchen. A pele que nos habita ou a pele que habitamos não tem paradoxo.
Yes, Braguinha, nós temos banana. E hoje, o que importa é pegar essa banana no chão. E comê-la em vez de lançá-la de volta. É nesse pequeno momento em que dá pra acreditar naquela musiquinha de arquibancada - sou brasileiro... com muito orgulho... com muito amor. Porque é o humor que nos separa - é a alegria que nos permite encarar tudo-isso-que-aí-sempre-esteve.
Daqui a 45 dias, o mundo vem ao Brasil - que por causa de um monte de pretos e brancos e índios e mestiços chegou a 2014 como o país do futebol. Do futebol, do samba, da caipirinha, de praias lindíssimas e políticos nem tão belos... da corrupção, dos conchavos e doleiros e KKKKs.
E é esse nosso dilema. Com muito orgulho, com muito amor, o brasileiro segue sendo o narciso às avessas, capaz de cuspir em sua própria imagem com propriedade e de se entender com outro brasileiro em apenas uma frase:
- Brasil, né?
É - Brasil... terra onde em se plantando... tudo dá - menos intolerância. De todas as vilezas do mundo, o preconceito é aquele tipo de inimigo fácil de identificar e difícil de derrotar. O rei mais conhecido deste mundo é preto, atende por Édson e nasceu em Minas Gerais. É no altar dele que deposito meu voto e digo aos lançadores de banana:
Mandem mais.
Mandem mais banana.
Mandem que a gente mata no peito e transforma em bananaço. Numa bem-humorada e coletiva banana para todos aqueles que acreditam nessa bobagem de que cor da pele faz diferença.
Em suma - esta república federativa das bananas orgulhosamente agradece. E orgulhosamente reconhece: sim - essa terra tem mil problemas. Mas alguma coisa - alguma coisa a gente tem pra ensinar pra vocês - e não é futebol.
Muito obrigado pela lembrança.

Bem-vindos ao Brasil.

domingo, 6 de abril de 2014

Oh, o outro!



Às vezes até mesmo os filósofos cedem à facilidade. Quando estão totalmente perdidos, quando não sabem mais como imperar e se fazer ouvir, sacam suas formulazinhas mágicas. A mais “hype”, nos dias de hoje, é tão simples quanto “bom dia” ou “obrigado”; é “o Outro” ou ainda “Outrem”. Nosso filósofo, que no início da noite se apresentou modestamente como fenomenólogo, não fará uso dela senão com prudência. Aliás, o fenomenólogo é por natureza um sujeito circunspecto: é o cara que sabe que, sob o mapa rodoviário, há florestas, lagos, rios, em suma, que olha para a estrada e não confia exclusivamente no GPS. Eis por que ele saberá evitar pronunciar “o Outro” com demasiada ênfase, pois, se vocalizarmos pesadamente o O maiúsculo, a palavra fica ridícula. Mas tampouco a lançará com a displicência dos que dizem “o Outro” como se falassem dos “outros”, das “pessoas”, do “povo” ou dos “burgueses”, pois seu território é a terra escarpada da ética e não a sala de espera da banalidade social. Imporá a fórmula sem “pathos” e sem despudor. Apresentá-la no momento oportuno é fundamental. Cedo demais, o filósofo seria tomado por laborioso charlatão. Tarde demais, quando cada um só pensa em si, ninguém irá ouvi-lo. “O Outro” casa perfeitamente com uma salada, quando já comemos o suficiente para ansiar por um pouco de transcendência. Ele pode começara afirmando: “Temos que saber respeitar a alteridade do outro”(durante uma conversa sobre assimilação dos imigrantes); “O mais bonito é encontrar o Outro”(sobre férias na Tailândia); “Precisamos sair da ditadura do Mesmo e conseguir pensar no Outro” (sobre geopolítica); ou ainda: “É impossível apreender plenamente a alteridade do Outro” (sobre um caso de adultério). Que azar, nosso herói esbarra com uma dificuldade: um beócio fanático por fenomenologia transcendental. O qual está se lixando para a inobstante respeitável alteridade do Outro e rebate num tom de gangue de rua: “Oh, o outro!” O fenomenólogo não se desarma e aceita o diálogo (o que, em linguagem filosófica, significa o monólogo): “O que é o Outro? Nada. Porque não é uma coisa.” E abram alas! “Claro, podemos reificar o Outro homem, o outro eu, o alter ego, fazer dele um mero objeto, de prazer ou de ódio. É tão mais simples assimilar o outro a um papel social... Mas então você reduz um sujeito humano ao cognoscível. Ora, o Outro me escapa por princípio.” Se o intrometido não responder nada, é porque está desestabilizado. O fenomenólogo pode então pronunciar o nome do grande pensador do Outro sem temor de desencadear a hilaridade geral: Levinas, prenome Emmanuel, filósofo do século XX nascido na Lituânia (daí seu sobrenome esquisito) e naturalizado francês em 1930. “Para Levinas”, continua o alterófilo, “a ética não é uma seção entre outras da Filosofia, mas seu eixo principal. Por quê? Porque a ética não é fruto de uma reflexão abstrata sobre os nossos atos, mas da experiência perceptiva do Outro homem, de Outrem. Quem é o Outro? É alguém que possui todas as minhas características, um outro eu, com suas percepções, seus sentimentos, seus pensamentos. Mas que todavia escapa à inspeção geral promovida pelo Outro. Na experiência mais simples, o Outro me desafia. Descrever o que se passa permite, então, descobrir tesouros éticos. O Outro apresenta-se normalmente sob o aspecto de um rosto. Esse rosto não é uma coisa a ser analisada, mas um Outro encontrar. Claro, tenta-se frequentemente mascarar essa indigência do rosto conferindo-lhe conteúdo. Mas o rosto é a oferenda de uma vulnerabilidade essencial. Não são as religiões que fundam a moral, mas é a percepção do rosto do Outro que decreta regras, de maneira imanente: ‘O rosto é o que não podemos matar, ou pelo menos aquilo cujo sentido consiste em dizer: Não matarás’, escreve Levinas.” Se o chato não pagar uma penitência depois dessa bela tirada e continuar sem compreender a beleza do Outro, só resta ao nosso filósofo consolar-se dizendo que, decididamente, os Outros são sempre os Mesmos.

In ORTOLI, Sven. Pequeno Manual para Sobreviver a um Papo-cabeça. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 89-92

quarta-feira, 5 de março de 2014

A filosofia da diferença a partir do EU SOU TREZENTOS de Mário de Andrade

Mário de Andrade

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as melhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

Fonte: www.geocities.com

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Infinito particular de Marisa Monte

Essa canção nos sugere dialogar com a ideia de infinito em Emmanuel Levinas e ainda nos permite interagir com nossa alteridade.

Eis o melhor e o pior de mim
O meu termômetro, o meu quilate
Vem, cara, me retrate
Não é impossível
Eu não sou difícil de ler
Faça sua parte
Eu sou daqui, eu não sou de Marte
Vem, cara, me repara
Não vê, tá na cara, sou porta bandeira de mim
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular
Em alguns instantes
Sou pequenina e também gigante
Vem, cara, se declara
O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder
Olha minha cara
É só mistério, não tem segredo
Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A gratuidade do sair-de-si-para-o-outro, texto de Emmanuel Lévinas

Eis que surge, na vida vivida pelo humano, e é aí que, a falar com propriedade, o humano começa, pura eventualidade, mas desde logo eventualidade pura e santa - do devotar-se ao outro. Na economia geral do ser e da sua tensão sobre si, eis que surge uma preocupação pelo outro até o sacrifício, até a possibilidade de morrer por ele: uma responsabilidade por outrem. De modo diferente que ser! É essa ruptura da indiferença - indiferença que pode ser estatisticamente dominante - a possibilidade de um-para-o-outro, um para o outro, que é o acontecimento ético. Na existência humana que interrompe e supera seu esforço de ser - seu conatus essendi espinosista - a vocação de um existir-para-outrem mais forte que a ameaça da morte: a aventura existencial do próximo importa ao eu antes que a sua própria, colocando o eu diretamente como responsável pelo ser de outrem. [...] Tudo se passa como se o surgimento do humano na economia do ser provocasse uma virada no sentido, na intriga e na classe filosófica da ontologia. O em-si do ser persistente-em-ser supera-se na gratuidade do sair-de-si-para-o-outro.


LÉVINAS, E. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino Stefano Pivatto (coord.). Petrópolis: Vozes, 2005, pp. 18-9.


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Um exemplo de hospitalidade filosófica






Obviamente que vivemos num mundo da “ecumene”, num mundo habitado, cujas fronteiras estão cada vez mais invisíveis e podemos até nos considerar cidadãos do mundo, quer pela realidade de uma aldeia global quer pela forma como tratamos o outro, o estrangeiro, os de outra pátria ou sem pátria, os andarilhos, forasteiros, enfim. No cenário atual, as discussões diplomáticas a respeito de atos virtuais de espionagem estão quentíssimas, deixando bastante conturbadas as relações éticas entre Brasil e EUA, o que prova o quanto o mundo virtual tornou inseguras nossas fronteiras; a impressão é que elas já não existem mais.
Ainda assim, mesmo com toda a facilidade do que fazemos aqui respingue ali instantaneamente, há recorrentes casos de extremo nacionalismo, acentuada xenofobia nos mais variados rincões. Os preconceitos com o diferente se sucedem em toda parte. Parece que sofremos de uma certa aversão ao diferente, ao que não é do nosso grupo, ao que não pensa como nós.
Só que surgirão os que não admitem ser preconceituosos, xenófobos ou coisa do gênero, etc., mas consideram ser sociáveis, sem problema algum com os outros, tolerantes. Contudo, a conversa muda no momento em que estas situações começam a interferir na minha vida. Desde que determinados problemas não me afetem tudo bem. Geralmente é assim, o tolerar tem limites e transparece superioridade por parte de quem tolera. Bom quem tolera, coitadinho quem é tolerado.
O interessante é que Emmanuel Lévinas, filósofo judeu, lituano, francês, que viveu o turbilhão das guerras do século passado, é um exemplo crucial não de tolerância, e sim de hospitalidade em seu pensamento. Isso é muito forte porque o exemplo de tolerância ainda traz consigo algo de superioridade, pois ao dizer que sou tolerante a você, a enunciação por si só já demonstra algo de superior. Enquanto superior, traduzo a minha bondade sobre você. Ele diz que há algo muito mais generoso, que é precisamente a hospitalidade, o acolher efetivamente o outro, a alteridade, o diferente, e fazer disso um diálogo rico e fértil sob vários aspectos.
Este diálogo se faz entre ideias, linguagens, temas e assim por diante, tal como essa acolhida, essa hospitalidade que ele concede a temas que vem dos apaixonados romances russos, sobretudo Dostoiévski, depois com a leitura da Bíblia e por fim com uma crítica profunda ao espírito do Totalitarismo presente no hitlerismo, por exemplo.
Nesse contexto, a palavra hospitalidade guarda a ideia de duas outras palavras: atenção e acolhimento, de modo que a hospitalidade expressa uma tensão em direção ao outro, intenção também atenta, atenção intencional ao outro. O primeiro movimento que acompanha o acontecimento da hospitalidade, para Lévinas, é o acolhimento: “A noção de rosto significa a anterioridade filosófica do sendo sobre o ser, uma exterioridade que não apela ao poder nem à posse, uma exterioridade que não se reduz, como em Platão, à interioridade da recordação, e que, contudo, protege o eu que o acolhe” (Totalidade e Infinito, p. 22).
Estamos diante de uma hospitalidade infinita e incondicional, aberta à ética, por isso não restrita simplesmente à ordem do político, mas que ultrapassa o pensamento meramente político, do espaço político. O alcance da hospitalidade, segundo Lévinas, está na afirmação de que “A intencionalidade é hospitalidade”. Vejamos o momento de acolhimento à palavra para a decisão divina: “Decisão do Eterno acolhendo a homenagem do Egito (O Eterno é hospedeiro [host] acolhendo o hóspede [guest] que lhe traz sua homenagem numa cena clássica de hospitalidade.). A Bíblia permite prevê-la no Deuteronômio 23. 8, versículo que o próprio Messias, apesar de sua justiça, deve ter esquecido. Pertence-se à ordem messiânica, quando se pode admitir o outro entre os seus. Que um povo aceite aqueles que vêm instalar-se no seu seio, por mais estranhos que sejam, com seus costumes e seus hábitos, com seu falar e seus odores, que ele lhe dê uma akhsania como um lugar de albergue e de que respirar e viver – é um canto de glória do Deus de Israel”(À l'heure des nations, p. 113).

Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Bel. em Teologia, Licenciado em Filosofia/UERN, Esp. em Metafísica/UFRN e Esp. em Estudos Clássicos UnB/Archai/Unesco.
        
        


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sábado, 6 de dezembro de 2014

Casa aberta





Mais do que em todos os dias e em grandes momentos do ano, as festividades natalinas e as ligadas ao Réveillon causam em nós uma sensação diferente. E o mais interessante é que não apenas representamos ou idealizamos estes eventos, mas os concretizamos, fazemos acontecer momentos de inteira generosidade, gratidão a Deus e às pessoas com as quais convivemos. Expressões de paz, amor, bondade, alegria e esperança nos conectam uns aos outros de uma forma tão objetiva que somos movidos para gestos de exuberância humana: Trocamos presentes; organizamos jantares beneficentes; sorteamos cestas natalinas; realizamos passeios ou viagens com quem amamos; abrimos a casa, etc. Sem contar as centenas de beijos e abraços muito comuns desta época do ano.
Essa sensação extremamente humana nos faz lembrar de como deve ser um lar. Não, às vezes, de como ele é, sujo, violento, insuportável, detestável, mas de como deveria ser, limpo, pacífico, agradável, seguro, acolhedor. A casa da gente precisa ser bem tratada, principalmente em tempos de festa, quando recebemos pessoas queridas que não víamos há anos. É preciso olhar mais para casa, onde as distâncias diminuem e tudo fica mais próximo. É exatamente o que acontece agora, no devido instante em que somos arrancados de nosso próprio mundo, de um mundo fechado, totalitário, racionalista, egoísta para nos relacionarmos com o que há para além de nós mesmos, alcançando assim uma abertura para a alteridade, uma abertura infinita.
Emmanuel Levinas, filósofo, leitor da Bíblia e de Dostoievski, entendia a casa como um ponto de referência, segundo a qual o eu vai em direção à exterioridade do mundo. “O papel privilegiado da casa não consiste em ser o fim da atividade humana, mas em ser a condição e, nesse sentido, o seu começo” (Totalidade e Infinito, p. 144). A casa que sou eu e a casa que é o mundo vivem agora uma conexão tão intensa a ponto de um querer humanizar o outro e vice-versa. “Simultaneamente fora e dentro, vai para fora a partir de uma intimidade. Por outro lado, a intimidade abre-se dentro de uma casa, que se situa nesse fora” (idem, p. 145).  
A ilustração da casa, sugerida por Levinas, para demonstrar a pertinência de nossas relações com os excluídos, com as minorias desfavorecidas, os pobres, a viúva, o órfão e o estrangeiro é cada vez mais significativa e atual. A recorrente imagem da “casa aberta”, neste período do ano, tal como deve ser em toda a vida, receptiva ao outro, é muito viva na música de Arnaldo Antunes, “a casa é sua”:
Não me falta cadeira/ Não me falta sofá /Só falta você/ sentada na sala/ Só falta você estar
Não me falta parede/ E nela uma porta pra você entrar/ Não me falta tapete/ Só falta o seu pé descalço pra pisar
Não me falta cama/ Só falta você deitar/ Não me falta o sol da manhã/ Só falta você acordar
Pras janelas se abrirem pra mim/ E o vento brincar no quintal/ Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal
A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio
Não me falta banheiro, quarto/ Abajur, sala de jantar/ Não me falta cozinha/ Só falta a campainha tocar
Não me falta cachorro/ Uivando só porque você não está/ Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar
Não me falta casa/ Só falta ela ser um lar/ Não me falta o tempo que passa/ Só não dá mais para tanto esperar
Para os pássaros voltarem a cantar/ E a nuvem desenhar um coração flechado/ Para o chão voltar a se deitar/ E a chuva batucar no telhado
Numa sociedade imensamente carente de referências, a casa cheia de gente, onde as famílias se encontram e se transformam a cada encontro, é a realização de qualquer Natal e passagem de ano para alguém, na medida em que simboliza recomeço, renovo, revitalização. Também é uma oportunidade de resgate das referências familiares, a partir das quais ressignificamos nosso mundo, nossa casa, nosso lugar no mundo e passamos a ser mais humanos com respeito, amor, tolerância, bondade, justiça e paz.
Enquanto escrevia esse texto, duas figuras clássicas da literatura não me saíam da cabeça, a do filho pródigo usada por Jesus Cristo e a de Ulisses usada por Homero. As duas falam desse regresso ao lar e, curiosamente, a casa estava aberta, no sentido de mostrar uma nova maneira de reaprender a ver o mundo.

Jackislandy Meira de M. Silva, professor, filósofo e teólogo.




segunda-feira, 28 de abril de 2014

YES, QUEREMOS BANANAS

Daqui a 45 dias, a Copa do Mundo vai começar no Brasil. Brasil é aquele país da América Latina onde os estádios demoram a ficar prontos, em que quase tudo fica mais caro do que o previsto, onde lutamos contra a corrupção há 500 anos... mas em que ninguém é branco. Ou não deveria ser. Ninguém é preto - ou não deveria ser. Ninguém é azul, amarelo, verde ou vermelho. Temos todas as cores. Ou deveríamos ter.
E hoje... todos nos chamamos Daniel Alves. Todos temos pele mulata, olhos claros e cabelo pixaim. Todos nascemos na Bahia - com sangue negro, branco e índio a correr pelas veias. E todos comemos a banana metafórica lançada no chão.
Essa banana é o Brasil viajando no tempo e no espaço. Comer o racismo e metaforicamente descomê-lo com a melhor das ironias - é esse o Brasil moleque, o Brasil bailarino - capaz de driblar num espaço de guardanapo, de sambar na cara do velho mundo, capaz de superfaturar estádios, metrôs e refinarias, de produzir mensalões e mensalinhos... mas incapaz... ou quase sempre incapaz de aceitar a intolerância.
A intolerância nos agride mais que a corrupção. No Brasil se fala português com açúcar - escreveu Eça de Queiroz. Somos dóceis, somos ternos - e preferimos ser. Nossos pecados são disfarçados - e é bom que assim seja. Desprezamos o alcagüete mais do que o criminoso. Precisamos de leis para impedir que existam elevadores sociais e de serviço - mas não admitimos a humilhação pública. Não admitimos o lançamento de banana.
Podemos ser a PM subindo o morro, podemos ser o tráfico atirando pra baixo... mas, quase sempre, somos o beijinho no ombro, a mão que afaga aqui e afana ali - mas não a que apedreja.
Vamos comer essa banana como Oswald de Andrade. Comê-la, digeri-la e transformá-la. Hoje somos todos macacos. Eu, você, o Neymar, o político, a presidente, o ministro, o empresário, o trabalhador, o senhor, a senhora, o presidiário, o ator, o ladrão, o policial, o bombeiro, o deputado de direita, o vereador de esquerda, o padeiro, o gari, o motorista, o preto, o branco, o azul, o cor-de-rosa.
Somos todos hélios de la peña - temos olhos azuis e pele negra. Somos todos marcos palmeira, mestiços de olhos castanhos e cabelo enrolado Somos todos preta gil, tais araújo, lázaro ramos. Somos todos giovanna antonelli, fernandas lima, tammy gretchen. A pele que nos habita ou a pele que habitamos não tem paradoxo.
Yes, Braguinha, nós temos banana. E hoje, o que importa é pegar essa banana no chão. E comê-la em vez de lançá-la de volta. É nesse pequeno momento em que dá pra acreditar naquela musiquinha de arquibancada - sou brasileiro... com muito orgulho... com muito amor. Porque é o humor que nos separa - é a alegria que nos permite encarar tudo-isso-que-aí-sempre-esteve.
Daqui a 45 dias, o mundo vem ao Brasil - que por causa de um monte de pretos e brancos e índios e mestiços chegou a 2014 como o país do futebol. Do futebol, do samba, da caipirinha, de praias lindíssimas e políticos nem tão belos... da corrupção, dos conchavos e doleiros e KKKKs.
E é esse nosso dilema. Com muito orgulho, com muito amor, o brasileiro segue sendo o narciso às avessas, capaz de cuspir em sua própria imagem com propriedade e de se entender com outro brasileiro em apenas uma frase:
- Brasil, né?
É - Brasil... terra onde em se plantando... tudo dá - menos intolerância. De todas as vilezas do mundo, o preconceito é aquele tipo de inimigo fácil de identificar e difícil de derrotar. O rei mais conhecido deste mundo é preto, atende por Édson e nasceu em Minas Gerais. É no altar dele que deposito meu voto e digo aos lançadores de banana:
Mandem mais.
Mandem mais banana.
Mandem que a gente mata no peito e transforma em bananaço. Numa bem-humorada e coletiva banana para todos aqueles que acreditam nessa bobagem de que cor da pele faz diferença.
Em suma - esta república federativa das bananas orgulhosamente agradece. E orgulhosamente reconhece: sim - essa terra tem mil problemas. Mas alguma coisa - alguma coisa a gente tem pra ensinar pra vocês - e não é futebol.
Muito obrigado pela lembrança.

Bem-vindos ao Brasil.

domingo, 6 de abril de 2014

Oh, o outro!



Às vezes até mesmo os filósofos cedem à facilidade. Quando estão totalmente perdidos, quando não sabem mais como imperar e se fazer ouvir, sacam suas formulazinhas mágicas. A mais “hype”, nos dias de hoje, é tão simples quanto “bom dia” ou “obrigado”; é “o Outro” ou ainda “Outrem”. Nosso filósofo, que no início da noite se apresentou modestamente como fenomenólogo, não fará uso dela senão com prudência. Aliás, o fenomenólogo é por natureza um sujeito circunspecto: é o cara que sabe que, sob o mapa rodoviário, há florestas, lagos, rios, em suma, que olha para a estrada e não confia exclusivamente no GPS. Eis por que ele saberá evitar pronunciar “o Outro” com demasiada ênfase, pois, se vocalizarmos pesadamente o O maiúsculo, a palavra fica ridícula. Mas tampouco a lançará com a displicência dos que dizem “o Outro” como se falassem dos “outros”, das “pessoas”, do “povo” ou dos “burgueses”, pois seu território é a terra escarpada da ética e não a sala de espera da banalidade social. Imporá a fórmula sem “pathos” e sem despudor. Apresentá-la no momento oportuno é fundamental. Cedo demais, o filósofo seria tomado por laborioso charlatão. Tarde demais, quando cada um só pensa em si, ninguém irá ouvi-lo. “O Outro” casa perfeitamente com uma salada, quando já comemos o suficiente para ansiar por um pouco de transcendência. Ele pode começara afirmando: “Temos que saber respeitar a alteridade do outro”(durante uma conversa sobre assimilação dos imigrantes); “O mais bonito é encontrar o Outro”(sobre férias na Tailândia); “Precisamos sair da ditadura do Mesmo e conseguir pensar no Outro” (sobre geopolítica); ou ainda: “É impossível apreender plenamente a alteridade do Outro” (sobre um caso de adultério). Que azar, nosso herói esbarra com uma dificuldade: um beócio fanático por fenomenologia transcendental. O qual está se lixando para a inobstante respeitável alteridade do Outro e rebate num tom de gangue de rua: “Oh, o outro!” O fenomenólogo não se desarma e aceita o diálogo (o que, em linguagem filosófica, significa o monólogo): “O que é o Outro? Nada. Porque não é uma coisa.” E abram alas! “Claro, podemos reificar o Outro homem, o outro eu, o alter ego, fazer dele um mero objeto, de prazer ou de ódio. É tão mais simples assimilar o outro a um papel social... Mas então você reduz um sujeito humano ao cognoscível. Ora, o Outro me escapa por princípio.” Se o intrometido não responder nada, é porque está desestabilizado. O fenomenólogo pode então pronunciar o nome do grande pensador do Outro sem temor de desencadear a hilaridade geral: Levinas, prenome Emmanuel, filósofo do século XX nascido na Lituânia (daí seu sobrenome esquisito) e naturalizado francês em 1930. “Para Levinas”, continua o alterófilo, “a ética não é uma seção entre outras da Filosofia, mas seu eixo principal. Por quê? Porque a ética não é fruto de uma reflexão abstrata sobre os nossos atos, mas da experiência perceptiva do Outro homem, de Outrem. Quem é o Outro? É alguém que possui todas as minhas características, um outro eu, com suas percepções, seus sentimentos, seus pensamentos. Mas que todavia escapa à inspeção geral promovida pelo Outro. Na experiência mais simples, o Outro me desafia. Descrever o que se passa permite, então, descobrir tesouros éticos. O Outro apresenta-se normalmente sob o aspecto de um rosto. Esse rosto não é uma coisa a ser analisada, mas um Outro encontrar. Claro, tenta-se frequentemente mascarar essa indigência do rosto conferindo-lhe conteúdo. Mas o rosto é a oferenda de uma vulnerabilidade essencial. Não são as religiões que fundam a moral, mas é a percepção do rosto do Outro que decreta regras, de maneira imanente: ‘O rosto é o que não podemos matar, ou pelo menos aquilo cujo sentido consiste em dizer: Não matarás’, escreve Levinas.” Se o chato não pagar uma penitência depois dessa bela tirada e continuar sem compreender a beleza do Outro, só resta ao nosso filósofo consolar-se dizendo que, decididamente, os Outros são sempre os Mesmos.

In ORTOLI, Sven. Pequeno Manual para Sobreviver a um Papo-cabeça. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 89-92

quarta-feira, 5 de março de 2014

A filosofia da diferença a partir do EU SOU TREZENTOS de Mário de Andrade

Mário de Andrade

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as melhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinqüenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

Fonte: www.geocities.com

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Infinito particular de Marisa Monte

Essa canção nos sugere dialogar com a ideia de infinito em Emmanuel Levinas e ainda nos permite interagir com nossa alteridade.

Eis o melhor e o pior de mim
O meu termômetro, o meu quilate
Vem, cara, me retrate
Não é impossível
Eu não sou difícil de ler
Faça sua parte
Eu sou daqui, eu não sou de Marte
Vem, cara, me repara
Não vê, tá na cara, sou porta bandeira de mim
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular
Em alguns instantes
Sou pequenina e também gigante
Vem, cara, se declara
O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder
Olha minha cara
É só mistério, não tem segredo
Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber
Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A gratuidade do sair-de-si-para-o-outro, texto de Emmanuel Lévinas

Eis que surge, na vida vivida pelo humano, e é aí que, a falar com propriedade, o humano começa, pura eventualidade, mas desde logo eventualidade pura e santa - do devotar-se ao outro. Na economia geral do ser e da sua tensão sobre si, eis que surge uma preocupação pelo outro até o sacrifício, até a possibilidade de morrer por ele: uma responsabilidade por outrem. De modo diferente que ser! É essa ruptura da indiferença - indiferença que pode ser estatisticamente dominante - a possibilidade de um-para-o-outro, um para o outro, que é o acontecimento ético. Na existência humana que interrompe e supera seu esforço de ser - seu conatus essendi espinosista - a vocação de um existir-para-outrem mais forte que a ameaça da morte: a aventura existencial do próximo importa ao eu antes que a sua própria, colocando o eu diretamente como responsável pelo ser de outrem. [...] Tudo se passa como se o surgimento do humano na economia do ser provocasse uma virada no sentido, na intriga e na classe filosófica da ontologia. O em-si do ser persistente-em-ser supera-se na gratuidade do sair-de-si-para-o-outro.


LÉVINAS, E. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Trad. Pergentino Stefano Pivatto (coord.). Petrópolis: Vozes, 2005, pp. 18-9.


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Um exemplo de hospitalidade filosófica






Obviamente que vivemos num mundo da “ecumene”, num mundo habitado, cujas fronteiras estão cada vez mais invisíveis e podemos até nos considerar cidadãos do mundo, quer pela realidade de uma aldeia global quer pela forma como tratamos o outro, o estrangeiro, os de outra pátria ou sem pátria, os andarilhos, forasteiros, enfim. No cenário atual, as discussões diplomáticas a respeito de atos virtuais de espionagem estão quentíssimas, deixando bastante conturbadas as relações éticas entre Brasil e EUA, o que prova o quanto o mundo virtual tornou inseguras nossas fronteiras; a impressão é que elas já não existem mais.
Ainda assim, mesmo com toda a facilidade do que fazemos aqui respingue ali instantaneamente, há recorrentes casos de extremo nacionalismo, acentuada xenofobia nos mais variados rincões. Os preconceitos com o diferente se sucedem em toda parte. Parece que sofremos de uma certa aversão ao diferente, ao que não é do nosso grupo, ao que não pensa como nós.
Só que surgirão os que não admitem ser preconceituosos, xenófobos ou coisa do gênero, etc., mas consideram ser sociáveis, sem problema algum com os outros, tolerantes. Contudo, a conversa muda no momento em que estas situações começam a interferir na minha vida. Desde que determinados problemas não me afetem tudo bem. Geralmente é assim, o tolerar tem limites e transparece superioridade por parte de quem tolera. Bom quem tolera, coitadinho quem é tolerado.
O interessante é que Emmanuel Lévinas, filósofo judeu, lituano, francês, que viveu o turbilhão das guerras do século passado, é um exemplo crucial não de tolerância, e sim de hospitalidade em seu pensamento. Isso é muito forte porque o exemplo de tolerância ainda traz consigo algo de superioridade, pois ao dizer que sou tolerante a você, a enunciação por si só já demonstra algo de superior. Enquanto superior, traduzo a minha bondade sobre você. Ele diz que há algo muito mais generoso, que é precisamente a hospitalidade, o acolher efetivamente o outro, a alteridade, o diferente, e fazer disso um diálogo rico e fértil sob vários aspectos.
Este diálogo se faz entre ideias, linguagens, temas e assim por diante, tal como essa acolhida, essa hospitalidade que ele concede a temas que vem dos apaixonados romances russos, sobretudo Dostoiévski, depois com a leitura da Bíblia e por fim com uma crítica profunda ao espírito do Totalitarismo presente no hitlerismo, por exemplo.
Nesse contexto, a palavra hospitalidade guarda a ideia de duas outras palavras: atenção e acolhimento, de modo que a hospitalidade expressa uma tensão em direção ao outro, intenção também atenta, atenção intencional ao outro. O primeiro movimento que acompanha o acontecimento da hospitalidade, para Lévinas, é o acolhimento: “A noção de rosto significa a anterioridade filosófica do sendo sobre o ser, uma exterioridade que não apela ao poder nem à posse, uma exterioridade que não se reduz, como em Platão, à interioridade da recordação, e que, contudo, protege o eu que o acolhe” (Totalidade e Infinito, p. 22).
Estamos diante de uma hospitalidade infinita e incondicional, aberta à ética, por isso não restrita simplesmente à ordem do político, mas que ultrapassa o pensamento meramente político, do espaço político. O alcance da hospitalidade, segundo Lévinas, está na afirmação de que “A intencionalidade é hospitalidade”. Vejamos o momento de acolhimento à palavra para a decisão divina: “Decisão do Eterno acolhendo a homenagem do Egito (O Eterno é hospedeiro [host] acolhendo o hóspede [guest] que lhe traz sua homenagem numa cena clássica de hospitalidade.). A Bíblia permite prevê-la no Deuteronômio 23. 8, versículo que o próprio Messias, apesar de sua justiça, deve ter esquecido. Pertence-se à ordem messiânica, quando se pode admitir o outro entre os seus. Que um povo aceite aqueles que vêm instalar-se no seu seio, por mais estranhos que sejam, com seus costumes e seus hábitos, com seu falar e seus odores, que ele lhe dê uma akhsania como um lugar de albergue e de que respirar e viver – é um canto de glória do Deus de Israel”(À l'heure des nations, p. 113).

Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Bel. em Teologia, Licenciado em Filosofia/UERN, Esp. em Metafísica/UFRN e Esp. em Estudos Clássicos UnB/Archai/Unesco.
        
        


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