Às vezes até mesmo os
filósofos cedem à facilidade. Quando estão totalmente perdidos, quando não
sabem mais como imperar e se fazer ouvir, sacam suas formulazinhas mágicas. A
mais “hype”, nos dias de hoje, é tão simples quanto “bom dia” ou “obrigado”; é “o
Outro” ou ainda “Outrem”. Nosso filósofo, que no início da noite se apresentou
modestamente como fenomenólogo, não fará uso dela senão com prudência. Aliás, o
fenomenólogo é por natureza um sujeito circunspecto: é o cara que sabe que, sob
o mapa rodoviário, há florestas, lagos, rios, em suma, que olha para a estrada
e não confia exclusivamente no GPS. Eis por que ele saberá evitar pronunciar “o
Outro” com demasiada ênfase, pois, se vocalizarmos pesadamente o O maiúsculo, a
palavra fica ridícula. Mas tampouco a lançará com a displicência dos que dizem
“o Outro” como se falassem dos “outros”, das “pessoas”, do “povo” ou dos
“burgueses”, pois seu território é a terra escarpada da ética e não a sala de
espera da banalidade social. Imporá a fórmula sem “pathos” e sem despudor.
Apresentá-la no momento oportuno é fundamental. Cedo demais, o filósofo seria
tomado por laborioso charlatão. Tarde demais, quando cada um só pensa em si,
ninguém irá ouvi-lo. “O Outro” casa perfeitamente com uma salada, quando já
comemos o suficiente para ansiar por um pouco de transcendência. Ele pode
começara afirmando: “Temos que saber respeitar a alteridade do outro”(durante
uma conversa sobre assimilação dos imigrantes); “O mais bonito é encontrar o
Outro”(sobre férias na Tailândia); “Precisamos sair da ditadura do Mesmo e
conseguir pensar no Outro” (sobre geopolítica); ou ainda: “É impossível
apreender plenamente a alteridade do Outro” (sobre um caso de adultério). Que
azar, nosso herói esbarra com uma dificuldade: um beócio fanático por
fenomenologia transcendental. O qual está se lixando para a inobstante
respeitável alteridade do Outro e rebate num tom de gangue de rua: “Oh, o
outro!” O fenomenólogo não se desarma e aceita o diálogo (o que, em linguagem
filosófica, significa o monólogo): “O que é o Outro? Nada. Porque não é uma
coisa.” E abram alas! “Claro, podemos reificar o Outro homem, o outro eu, o alter ego, fazer dele um mero objeto, de
prazer ou de ódio. É tão mais simples assimilar o outro a um papel social...
Mas então você reduz um sujeito humano ao cognoscível. Ora, o Outro me escapa
por princípio.” Se o intrometido não responder nada, é porque está
desestabilizado. O fenomenólogo pode então pronunciar o nome do grande pensador
do Outro sem temor de desencadear a hilaridade geral: Levinas, prenome
Emmanuel, filósofo do século XX nascido na Lituânia (daí seu sobrenome
esquisito) e naturalizado francês em 1930. “Para Levinas”, continua o
alterófilo, “a ética não é uma seção entre outras da Filosofia, mas seu eixo
principal. Por quê? Porque a ética não é fruto de uma reflexão abstrata sobre
os nossos atos, mas da experiência perceptiva do Outro homem, de Outrem. Quem é
o Outro? É alguém que possui todas as minhas características, um outro eu, com
suas percepções, seus sentimentos, seus pensamentos. Mas que todavia escapa à
inspeção geral promovida pelo Outro. Na experiência mais simples, o Outro me
desafia. Descrever o que se passa permite, então, descobrir tesouros éticos. O
Outro apresenta-se normalmente sob o aspecto de um rosto. Esse rosto não é uma
coisa a ser analisada, mas um Outro encontrar. Claro, tenta-se frequentemente
mascarar essa indigência do rosto conferindo-lhe conteúdo. Mas o rosto é a
oferenda de uma vulnerabilidade essencial. Não são as religiões que fundam a moral,
mas é a percepção do rosto do Outro que decreta regras, de maneira imanente: ‘O
rosto é o que não podemos matar, ou pelo menos aquilo cujo sentido consiste em
dizer: Não matarás’, escreve Levinas.” Se o chato não pagar uma penitência
depois dessa bela tirada e continuar sem compreender a beleza do Outro, só
resta ao nosso filósofo consolar-se dizendo que, decididamente, os Outros são
sempre os Mesmos.
In ORTOLI, Sven. Pequeno Manual para Sobreviver a um
Papo-cabeça. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 89-92
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