Nietzsche foi um bom filósofo à medida que não escreveu nada “realista”. Seus livros contam uma grande história ficcional ou, melhor dizendo, eles formam capítulos de um enorme romance. Os personagens desse romance, como em toda narrativa ficcional, são criados a partir de traços de pessoas que conhecemos, mas não são cópias ou retratos de pessoas. São personagens mesmo, ficcionais. Completamente ficcionais. Em determinados momentos eles aparecem com nomes, e às vezes como membros de grupos – grupos que até possuem respaldo em grupos reais, mas que, também nesse caso, são ficcionais. E em geral, esses personagens aparecem como pares contrapostos.
Os pares podem ser assim dispostos: fraco-forte, doente-sadio, judeu-romano, plebeu-nobre, feminino-viril, escravo-senhor etc. Às vezes, para construir a face de um desses tipos, Nietzsche se desdobra na tarefa de montar uma tipologia dentro dessa tipologia inicial. Assim, para dizer o que é “o fraco” ou “o doente”, ele cita a mulher, a mulher doente, o escravo, o homem moderno, o cristão, a feminista, o socialista, o anarquista, o “homem do ressentimento”, o asceta, Sócrates, a vaca e por aí vai. Para falar do “forte” ou “sadio”, ele cita o cavaleiro nobre, o Renascentista, o filósofo pré-socrático, o lobo, o leão e por aí vai.
Muito cuidado aí: o ideal para Nietzsche não é a psicologia do “forte”. Muito menos Nietzsche se via como “forte”. Aliás, ele se via como, ao menos em parte, um homem de seu tempo, um decadente.
Esses personagens todos aparecem no seu romance para cumprir uma história ou, melhor, uma filosofia da história em que sempre “o fraco” vence “o forte”. Ou fraco moraliza tudo. O forte não. Mas o que prevalece na história são os modos morais de ver o mundo. A cada moralização, mais “os fortes” são corrompidos, adquirem má consciência por agirem como fortes, pois aceitam o que lhes traz a culpa, ou seja, a máxima dos “fracos”: o homem é livre – ele pode optar em ser bom ou ser mau.
Eis como a narrativa dos “fracos” se põe e é vencedora: caso o homem apareça como ruim, tecnicamente ruim, isso é uma mentira, pois sendo o homem o que ele é, homem, ele nunca pode ser ruim, ele tem de ser julgado moralmente, então, o melhor é dizer que ele é mau, não ruim. Eles insistem: uma cadeira pode ser ruim, mas um homem só deve ser bom ou mau, se dizemos que é ruim, não estamos falando dele, e sim de algumas de suas habilidades técnicas, como quem fala de uma cadeira. Agora, sendo homem e sendo mau, podia ter evitado isso, podia ter decidido ser bom. Ou seja, o homem é livre e pode agir como sujeito. Pode ter consciência de seu pensamento e responsabilidade pelos seus atos.
Se o “forte” acredita nisso, nessa narrativa do “fraco”, ele pode ficar culpado. Caso isso ocorra, ele se torna um “fraco”. Ele cai na armadilha do “fraco” e, então, “os fortes” vão desaparecendo, se transformando em “fracos”. É assim que o romance se desenvolve.
Mas, se tudo isso é assim desenvolvido, o que é que impulsiona a história? Avontade de potência. Para uns intérpretes, trata-se de um princípio metafísico – e então Nietzsche seria nada além de um “último metafísico” que, com ironia, combateu a metafísica. Para outros, entre os quais eu mesmo, ela seria vista, de modo mais útil, como uma força cosmológica, quase algo como um princípio daqueles que os pré-socráticos encontravam na Physis. Mas isso não deveria ser lido de modo realista e, sim, também como uma “narrativa a mais”, uma forma metafórica de falar, algo como que um arranjo da linguagem para dar consistência à sua narrativa, para ele ficar relativamente palatável como filosofia.
Para quê contar essa história, como Nietzsche fez? Em parte, para destronar a metafísica, principalmente a metafísica moderna. Esta, como sabemos, começa com Descartes, tendo como base o sujeito, o Cogito, como pedra fundamental da certeza, no plano epistemológico. Essa certeza é a certeza da existência, o que garante, também, um ponto ontológico. Ora, mas e se essa certeza não é certeza nenhuma? E se a figura do sujeito, que implica na liberdade (que, enfim, não existiria – pois ninguém comanda todo o jogo de forças da vontade de potência), não for senão uma mentira dos “fracos” para corromper os “fortes”, de modo a escapar da dor infringida por estes aos primeiros? Se assim for, então, não há sujeito algum e o Cogito, como pólo seguro, nada é senão um engodo. Ora, se assim é, pode-se então lançar no chão todo o pensamento metafísico moderno. Esse é o objetivo do romance nietzschiano. Sua obra toda é, em parte, exclusivamente isso. Ou digamos: isso é sua obra na parte em que ele limpa o terreno da filosofia.
O Assim falava Zarathustra é outra coisa, já se trata de uma parte positiva da filosofia de Nietzsche que, aos meus ouvidos, às vezes soa menos interessante. Talvez eu tenha menos interesse por utopias coletivas (Marx e Mill) e individuais (Nietzsche) por conta de que elas sempre atraem adeptos, e suportar gente assim é um tédio – ninguém agüenta um comunista e ninguém agüentaria um rapaz que fica perguntando como é o “além do homem”, o Übermench. Acho que prefiro utopias mais vagas, o que, em princípio, tende a evitar a criação dos militantes chatos e do “maluco de palestra”.
Em termos gerais, é isso. Com esse aviso aí acima em mente, esse recado, leiam Nietzsche. Caso sintam falta de um apoio para conhecer os grandes temas da filosofia e, assim, pegarem Nietzsche nesse contexto, leiam antes os dois volumes de A aventura da filosofia, da Manole, de minha autoria. Tá dado o recado.
© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ