quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O político e o idiota (polites e idiotes)

(Porto de Pireus - Grécia)
 

Diferentemente da compreensão que temos de cidade hoje em dia, a polis era uma complexa unidade local composta de campos de cultivo, zonas de pastoreio, aspectos urbanos muito peculiares, além de uma estrutura social e política que garantia a autonomia ou a autosustentação dos cidadãos. Estes respeitavam os princípios de isonomia perante as leis; de isegoria ao exprimir suas opiniões em público; e de isocracia ao ascender ao poder. A vida que se depreendia da pólis era aquela que, por natureza, correspondesse melhor a realização da atividade humana, isto é, uma vida em comunidade e em plena ágora(praça) que se permitisse intervir na esfera militar; gerir financeiramente a polis; e envolver-se intensamente com os interesses políticos.
O polites, cidadão em grego, reúne todos esses atributos ao ponto de construir para si um estatuto de cidadania, uma vez que se envolvia tremendamente com os destinos de sua cidade. Este estatuto exige de cada polites um envolvimento direto na condução coletiva dos assuntos do estado. Rezam nesse estatuto os interesses expressos de coletividade, igualdade, participação e democracia.
Infelizmente, o pulsante modelo cívico grego de política com vistas à coletividade teve sua hora para ruir. Se o que vigorou muito bem nos períodos Arcaico e Clássico de sua história, já não mais vigorará nos tempos vindouros. O modelo denso e tradicional do polites nas pólis gregas começa a entrar drasticamente em crise por causa da vasta expansão do Império de Alexandre, o grande, onde não mais se valorizará tanto o local, mas o global, não mais o polites, mas o cosmopolites, em que o mundo de então passa a viver uma fusão étnica e cultural, de unidade e pacificação.
Entra em cena, então, nossa relação entre polites e idiotes. Só para contribuir um pouco nesse espaço de discussão, o livro de Mário Sérgio Cortella e Renato Janine Ribeiro, Política: para não ser idiota, nos faz pensar em como era a realidade da pólis grega e em suas atividades ligadas ao polites e ao idiotes, ação e contemplação, intimamente imbricadas e orientadas para o desenvolvimento da democracia que, a meu ver, condiz com a autonomia do cidadão ateniense.
Segundo Cortella, idiotes, em grego, não traduz muito o ranço negativo que a palavra assumiu nos últimos séculos, talvez devido ao crescente individualismo e extrema valorização das liberdades pessoais no mundo moderno, que levaram o indivíduo a se afastar da esfera coletiva e a se apegar muito mais à esfera privada. Para Cortella, idiotes aparece com frequência em comentários indignados no Brasil, como “política é coisa de idiota”. Esta é a noção invertida do conceito, pois antigamente significava aquele que só vive a vida privada, que recusa a política, que diz não à política. Sua expressão generalizada é: “Não me meto em política”(Cf. CORTELLA, Mário Sérgio. Política: para não ser idiota. São Paulo, Campinas: Papirus 7 Mares, 2010, p. 7).
Aos que tentam justificar sua “idiotice” afastando-se da vida pública com outro modo de fazer política, defendendo seus interesses de liberdade individual, afirma Cortella: “Vale lembrar que, para a própria sociedade grega – nossa mãe antiga, idosa, agora um pouco desprezada – , não haveria liberdade fora da política. Quer dizer, o idiota não é livre porque toma conta do próprio nariz, pois só é livre aquele que se envolve na vida pública, na vida coletiva”(idem, p. 9).
Atenas era uma cidade próspera economicamente, desenvolvia sobretudo as atividades do artesanato e do comércio. Seu porto, o Pireu, era um porto cosmopolita ao qual chegavam e do qual partiam todos os produtos do mundo conhecido. Toda essa atividade promovia ou facilitava ainda mais o encontro de uns com os outros, o embate do eu com os outros eus, bem como a discussão de problemas relativos à cidade, produzindo, com isso, uma certa autonomia no indivíduo por que participava intensamente dos principais assuntos da pólis.
Na minha opinião, leitores, - e opinião era o que os gregos mais tinham sobre a coisa pública - nenhum texto responde melhor sobre a identidade política do cidadão ateniense quanto este transcrito por Tucídides, de modo a ser revelador para nós o convívio sadio das duas formas reais e necessárias de se viver na cidade: ação e contemplação, polites e idiotes.
Gostaria de destacar dois fragmentos do texto de Tucídides que esboçam a distinção entre polites e idiotes assim:
"Nossa constituição nada tem a invejar dos outros: é modelo e não imita. Chama-se democracia porque age para o maior número e não para uma minoria. Todos participam igualmente das leis concernentes aos assuntos públicos; é apenas a excelência de cada um que institui distinções e as honras são feitas ao mérito e não à riqueza. Nem a pobreza nem a obscuridade impedem um cidadão capaz de servir à cidade. Livres no que respeita à vida pública, livres também o somos nas relações cotidianas. Cada um pode dedicar-se ao que lhe dá prazer sem incorrer em censura, desde que não cause danos. Apesar dessa tolerância na vida privada, nós nos esforçamos para nada fazer contra a lei em nossa vida pública. Permanecemos submetidos aos magistrados e às leis, sobretudo àquelas que protegem contra a injustiça e às que, por não serem escritas, nem por isso trazem menos vergonha aos que transgridem"(Tucídides, II, 37).
"[...] para nós, a palavra não é nociva à ação; o que é nocivo é não informar-se pela palavra antes de se lançar à ação[...] Digo que nossa cidade, no seu todo, é a escola de toda Hélade"(Tucídides, II, 40). Ver CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia. Vol I. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 135).

Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Especialista em Metafísica, Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Pós-graduando em Estudos Clássicos pela UnB em parceria com Archai Unesco.

Nenhum comentário:

Fotos no Facebook

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O político e o idiota (polites e idiotes)

(Porto de Pireus - Grécia)
 

Diferentemente da compreensão que temos de cidade hoje em dia, a polis era uma complexa unidade local composta de campos de cultivo, zonas de pastoreio, aspectos urbanos muito peculiares, além de uma estrutura social e política que garantia a autonomia ou a autosustentação dos cidadãos. Estes respeitavam os princípios de isonomia perante as leis; de isegoria ao exprimir suas opiniões em público; e de isocracia ao ascender ao poder. A vida que se depreendia da pólis era aquela que, por natureza, correspondesse melhor a realização da atividade humana, isto é, uma vida em comunidade e em plena ágora(praça) que se permitisse intervir na esfera militar; gerir financeiramente a polis; e envolver-se intensamente com os interesses políticos.
O polites, cidadão em grego, reúne todos esses atributos ao ponto de construir para si um estatuto de cidadania, uma vez que se envolvia tremendamente com os destinos de sua cidade. Este estatuto exige de cada polites um envolvimento direto na condução coletiva dos assuntos do estado. Rezam nesse estatuto os interesses expressos de coletividade, igualdade, participação e democracia.
Infelizmente, o pulsante modelo cívico grego de política com vistas à coletividade teve sua hora para ruir. Se o que vigorou muito bem nos períodos Arcaico e Clássico de sua história, já não mais vigorará nos tempos vindouros. O modelo denso e tradicional do polites nas pólis gregas começa a entrar drasticamente em crise por causa da vasta expansão do Império de Alexandre, o grande, onde não mais se valorizará tanto o local, mas o global, não mais o polites, mas o cosmopolites, em que o mundo de então passa a viver uma fusão étnica e cultural, de unidade e pacificação.
Entra em cena, então, nossa relação entre polites e idiotes. Só para contribuir um pouco nesse espaço de discussão, o livro de Mário Sérgio Cortella e Renato Janine Ribeiro, Política: para não ser idiota, nos faz pensar em como era a realidade da pólis grega e em suas atividades ligadas ao polites e ao idiotes, ação e contemplação, intimamente imbricadas e orientadas para o desenvolvimento da democracia que, a meu ver, condiz com a autonomia do cidadão ateniense.
Segundo Cortella, idiotes, em grego, não traduz muito o ranço negativo que a palavra assumiu nos últimos séculos, talvez devido ao crescente individualismo e extrema valorização das liberdades pessoais no mundo moderno, que levaram o indivíduo a se afastar da esfera coletiva e a se apegar muito mais à esfera privada. Para Cortella, idiotes aparece com frequência em comentários indignados no Brasil, como “política é coisa de idiota”. Esta é a noção invertida do conceito, pois antigamente significava aquele que só vive a vida privada, que recusa a política, que diz não à política. Sua expressão generalizada é: “Não me meto em política”(Cf. CORTELLA, Mário Sérgio. Política: para não ser idiota. São Paulo, Campinas: Papirus 7 Mares, 2010, p. 7).
Aos que tentam justificar sua “idiotice” afastando-se da vida pública com outro modo de fazer política, defendendo seus interesses de liberdade individual, afirma Cortella: “Vale lembrar que, para a própria sociedade grega – nossa mãe antiga, idosa, agora um pouco desprezada – , não haveria liberdade fora da política. Quer dizer, o idiota não é livre porque toma conta do próprio nariz, pois só é livre aquele que se envolve na vida pública, na vida coletiva”(idem, p. 9).
Atenas era uma cidade próspera economicamente, desenvolvia sobretudo as atividades do artesanato e do comércio. Seu porto, o Pireu, era um porto cosmopolita ao qual chegavam e do qual partiam todos os produtos do mundo conhecido. Toda essa atividade promovia ou facilitava ainda mais o encontro de uns com os outros, o embate do eu com os outros eus, bem como a discussão de problemas relativos à cidade, produzindo, com isso, uma certa autonomia no indivíduo por que participava intensamente dos principais assuntos da pólis.
Na minha opinião, leitores, - e opinião era o que os gregos mais tinham sobre a coisa pública - nenhum texto responde melhor sobre a identidade política do cidadão ateniense quanto este transcrito por Tucídides, de modo a ser revelador para nós o convívio sadio das duas formas reais e necessárias de se viver na cidade: ação e contemplação, polites e idiotes.
Gostaria de destacar dois fragmentos do texto de Tucídides que esboçam a distinção entre polites e idiotes assim:
"Nossa constituição nada tem a invejar dos outros: é modelo e não imita. Chama-se democracia porque age para o maior número e não para uma minoria. Todos participam igualmente das leis concernentes aos assuntos públicos; é apenas a excelência de cada um que institui distinções e as honras são feitas ao mérito e não à riqueza. Nem a pobreza nem a obscuridade impedem um cidadão capaz de servir à cidade. Livres no que respeita à vida pública, livres também o somos nas relações cotidianas. Cada um pode dedicar-se ao que lhe dá prazer sem incorrer em censura, desde que não cause danos. Apesar dessa tolerância na vida privada, nós nos esforçamos para nada fazer contra a lei em nossa vida pública. Permanecemos submetidos aos magistrados e às leis, sobretudo àquelas que protegem contra a injustiça e às que, por não serem escritas, nem por isso trazem menos vergonha aos que transgridem"(Tucídides, II, 37).
"[...] para nós, a palavra não é nociva à ação; o que é nocivo é não informar-se pela palavra antes de se lançar à ação[...] Digo que nossa cidade, no seu todo, é a escola de toda Hélade"(Tucídides, II, 40). Ver CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia. Vol I. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 135).

Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Especialista em Metafísica, Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia e Pós-graduando em Estudos Clássicos pela UnB em parceria com Archai Unesco.

Nenhum comentário:

Atividade no Facebook

Mais vistas: