(Porto de Pireus - Grécia)
Diferentemente da compreensão que temos de
cidade hoje em dia, a polis
era
uma complexa unidade local composta de campos de cultivo, zonas de
pastoreio, aspectos urbanos muito peculiares, além de uma estrutura
social e política que garantia
a autonomia ou a autosustentação dos cidadãos. Estes respeitavam
os princípios de isonomia
perante as leis; de isegoria
ao exprimir suas opiniões em público; e de isocracia
ao ascender ao poder. A vida que se depreendia
da pólis
era
aquela que, por natureza, correspondesse
melhor a realização da atividade humana, isto é, uma vida em
comunidade e em plena ágora(praça)
que se permitisse
intervir na esfera militar; gerir financeiramente a polis;
e envolver-se intensamente com os interesses políticos.
O polites,
cidadão em grego, reúne todos esses atributos ao ponto de construir
para si um estatuto de cidadania, uma vez que se envolvia
tremendamente com os destinos de sua cidade. Este estatuto exige de
cada polites
um envolvimento direto na condução coletiva dos assuntos do estado.
Rezam nesse estatuto os interesses expressos de coletividade,
igualdade, participação e democracia.
Infelizmente, o pulsante modelo cívico
grego de política com vistas à coletividade teve
sua hora para ruir. Se o que vigorou
muito bem nos períodos Arcaico e Clássico de sua história, já não
mais vigorará nos
tempos vindouros. O modelo denso e tradicional do polites
nas pólis
gregas começa a entrar drasticamente em crise por causa da vasta
expansão do Império de Alexandre, o grande, onde não mais se
valorizará tanto o local, mas o global, não mais o polites,
mas o cosmopolites, em
que o mundo de então passa a viver uma fusão étnica e cultural, de
unidade e pacificação.
Entra em cena, então, nossa relação
entre polites
e idiotes.
Só para contribuir um pouco nesse espaço de discussão,
o livro de Mário Sérgio Cortella e
Renato Janine Ribeiro, Política:
para não ser idiota, nos
faz pensar em como era a realidade da pólis
grega e em suas atividades ligadas ao polites
e ao idiotes,
ação e contemplação, intimamente imbricadas e orientadas para o
desenvolvimento da democracia que, a meu ver, condiz com a autonomia
do cidadão ateniense.
Segundo Cortella, idiotes,
em grego, não traduz muito o ranço negativo que a palavra assumiu
nos últimos séculos, talvez devido ao crescente individualismo e
extrema valorização das liberdades pessoais no
mundo moderno,
que levaram o indivíduo a se afastar da
esfera
coletiva
e a se apegar muito mais à
esfera
privada.
Para Cortella, idiotes
aparece com frequência em comentários indignados no Brasil, como
“política é coisa de idiota”. Esta é a noção invertida do
conceito, pois antigamente significava aquele que só vive a vida
privada, que recusa a política, que diz não à política. Sua
expressão generalizada é: “Não me meto em política”(Cf.
CORTELLA, Mário Sérgio. Política: para não ser idiota. São
Paulo, Campinas: Papirus 7 Mares, 2010, p. 7).
Aos
que tentam justificar sua “idiotice” afastando-se da vida pública
com outro modo de fazer política, defendendo
seus interesses de liberdade individual, afirma Cortella: “Vale
lembrar que, para a própria sociedade grega – nossa mãe antiga,
idosa, agora um pouco desprezada – , não haveria liberdade fora da
política. Quer dizer, o idiota não é livre porque toma conta do
próprio nariz, pois só é livre aquele que se envolve na vida
pública, na vida coletiva”(idem, p. 9).
Atenas era uma cidade próspera
economicamente, desenvolvia sobretudo as atividades do artesanato e
do comércio. Seu porto, o Pireu, era um porto cosmopolita ao qual
chegavam e do qual partiam todos os produtos do mundo conhecido. Toda
essa atividade promovia ou facilitava ainda mais o encontro de uns
com os outros, o embate do eu com os outros eus, bem como a discussão
de problemas relativos à cidade, produzindo, com isso, uma certa
autonomia no indivíduo por que participava intensamente dos
principais assuntos da pólis.
Na minha opinião, leitores, - e opinião
era o que os gregos mais tinham sobre a coisa pública - nenhum texto
responde melhor sobre a identidade política do cidadão ateniense
quanto este transcrito por Tucídides, de modo a ser revelador para
nós o convívio sadio das duas formas reais e necessárias de se
viver na cidade: ação e contemplação, polites
e idiotes.
Gostaria de destacar dois
fragmentos do texto de Tucídides
que esboçam a distinção entre
polites
e idiotes
assim:
"Nossa constituição nada tem a
invejar dos outros: é modelo e não imita. Chama-se democracia
porque age para o maior número e não para uma minoria. Todos
participam igualmente das leis concernentes aos assuntos públicos; é
apenas a excelência de cada um que institui distinções e as honras
são feitas ao mérito e não à riqueza. Nem a pobreza nem a
obscuridade impedem um cidadão capaz de servir à cidade. Livres no
que respeita à vida pública, livres também o somos nas relações
cotidianas. Cada um pode dedicar-se ao que lhe dá prazer sem
incorrer em censura, desde que não cause danos. Apesar dessa
tolerância na vida privada, nós nos esforçamos para nada fazer
contra a lei em nossa vida pública. Permanecemos submetidos aos
magistrados e às leis, sobretudo àquelas que protegem contra a
injustiça e às que, por não serem escritas, nem por isso trazem
menos vergonha aos que transgridem"(Tucídides, II, 37).
"[...] para nós, a palavra não é
nociva à ação; o que é nocivo é não informar-se pela palavra
antes de se lançar à ação[...] Digo que nossa cidade, no seu
todo, é a escola de toda Hélade"(Tucídides, II, 40).
Ver CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia. Vol I.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 135).
Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Especialista em Metafísica, Licenciado em
Filosofia, Bacharel em Teologia e Pós-graduando em Estudos Clássicos
pela UnB em parceria com Archai Unesco.
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