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quinta-feira, 2 de abril de 2015

Jesus, um estrangeiro como caminho...


A passagem de Jesus nesta terra foi extremamente rápida do ponto de vista histórico, mas seus feitos e seus discursos, sermões, são um traço contínuo de sua presença eternizada pelos movimentos posteriores, sobretudo, pelo cristianismo. Certamente, sua pessoa ainda vive conosco tão forte é o seu legado. Temos a impressão de que os principais registros da vida de Jesus, os Evangelhos, dão conta e são fontes seguras do propósito de sua morte tão repentina. 
É interessante notar que Jesus, em meio a uma série de declarações feitas aos discípulos, expõe os motivos de sua vinda ao mundo. Diferente de nós, Jesus não busca seu lugar ao sol, não está atrás de um lugar no mundo, muito menos de se fixar em terra estrangeira. Ele não dá sequer importância aos atrativos deste mundo. Naquela época era muito comum desejar ser general de tropas militares, ansiar a cargos políticos também, ascender ao trono, lutar por algum lugar na elite da sociedade ou mesmo desejar ser um soldado romano, ir à guerra e aprender a ser um conquistador.
Antes mesmo de algum desses ideais povoar a mente de Jesus, havia um plano divino para ele, de modo que bem sabia a razão de estar aqui. “(...) eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância.”(Jo 10.10). Viver para ele implica encarar o cotidiano, os fatos deste mundo a partir do que lhe fora revelado pelo Pai, o conhecimento de sua vontade e o cumprimento das Escrituras. “E eu já não estou mais no mundo, mas eles estão no mundo, e eu vou para ti.”(Jo 17.11). Jesus desenvolve um modo de viver no mundo sem pertencer a este mundo. Como a sua palavra é a verdade que se opõe ao mundo, este acaba odiando aqueles que a seguem, assim muitos começam a construir um outro mundo diferente deste porque já não são do mundo, mas são agora do mesmo mundo de Jesus. Insiste: “Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como eu não sou do mundo.”(Jo 17.14).
Fato é que Jesus não é deste mundo, o que acarreta para ele uma identidade estrangeira. Passa por aqui como um estrangeiro em terra estranha, visto ser este mundo inteiramente contraditório aos seus planos, ao reino de seu Pai, realmente diferente do que ele diz ser a eternidade: “E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.”(Jo 17.3-4).
A sua mensagem, seus ensinamentos, mostra um homem desprendido deste mundo, desapegado dos valores terrenos, sem se embaraçar com nada. Sua oração, intimidade com o Pai, seu jeito seguro e verdadeiro para afirmar a existência de um outro reino eram convincentes. Com palavras cheias do que deve ser este mundo, semelhante ao seu reino, Jesus usava de repreensão aos que queriam menosprezar os pequeninos, habitantes de seu reino. Utiliza-se de uma criança. A imagem da criança revela a todos um outro mundo de que falava o mestre. Seu reino. Um mundo que ninguém podia tomar. Seu povo. Um povo que ninguém podia maltratar e herdeiro de um outro tipo de vida que não esta, a vida eterna.
Por isso, sua identidade estrangeira, na medida em que não se deixa dominar, abre passagem para os que buscam libertação, novo nascimento e salvação. Nem a morte fora capaz de dominá-lo. Jesus atravessa os limites de sua nacionalidade; os padrões de sua religiosidade, o judaísmo; desafia as autoridades políticas de seu tempo; supera as realidades temporais e espaciais para abrir uma relação definitiva de caminho para o seu reino. Um reino que não é deste mundo: “O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui.”(Jo 18. 36).
Estrangeiro porque não tem onde reclinar a cabeça, anuncia um reino eterno e fala de outras moradas, além disso, durante o tempo que passou conosco, se opôs a este mundo como se não fosse a sua casa, tampouco a nossa. “Na casa de meu Pai há muitas moradas (...). Vou preparar-vos lugar.”(Jo 14. 2). A propósito do caminho para este lugar, assim responde a Tomé: “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim.”(Jo 14. 6).

Prof. Jackislandy Meira de M. Silva, filósofo e teólogo


sexta-feira, 18 de abril de 2014

Nôach por Luiz Felipe Pondé


Os eleitos de Deus só têm problemas; a solidão os assola, o sofrimento os persegue

O Deus de Israel não gosta de covardes. Homem, mulher, criança, todos são chamados à coragem, à dor e a tomar decisões difíceis.

Noé (Nôach), foi um desses heróis. Erich Auerbach, no seu "Mímesis", afirma que Deus testa seus heróis e heroínas, levando-os ao limite do insuportável, para que, sobrevivendo ao teste, descubram por que foram eleitos. Deus funda, assim, a ideia de autoconhecimento na literatura ocidental.

"E os que vieram, macho e fêmea, de toda criatura vieram, como Deus lhe havia ordenado; e o Eterno o fechou para protegê-lo. E foi o dilúvio quarenta dias sobre a terra, e multiplicaram-se as águas, e alcançaram a arca, e levantou-se de sobre a terra" (Gênesis, 7; 16-17, edição hebraica).

O filme "Noé", de Darren Aronofsky, é sobre eleição. "Eleição" é um conceito, muitas vezes, pouco compreendido pelo mundo contemporâneo, maníaco por felicidade "projetos do self" e sucesso.

Os eleitos pelo Deus de Israel só têm problemas; a solidão os assola, o medo e o sofrimento os persegue. Erich Auerbach entende muito mais de "eleição" na literatura israelita do que muito rabino, pastor e padre por aí, obcecados por vender autoajuda espiritual. "Dificilmente, um deles não sofre, como Adão, a mais profunda humilhação...", afirma Auerbach.

O diretor do filme, faz licenças poéticas, e algumas delas (não tenho como saber o quão consciente ele estava quando as fez) muito sofisticadas, levando em conta a "dramaturgia" do Velho Testamento, como falam os cristãos quando se referem à Bíblia hebraica.

Uma delas, muito pontual, é o uso da pequena tira de couro que o pai de Noé, e depois o próprio, enrola no braço: uma referência direta ao "tefilin" (filactério). A palavra hebraica tem sua raiz em "tefilá", que significa prece. Hoje, ela "virou" um cordão de couro ligado a duas caixinhas que o judeu amarra daquele jeito e também na cabeça (é bem maior do que mostra o filme).

Uma das preces ali contidas é o famoso "Shemá Israel", a qual lembra aos judeus que Deus é um só: "Shemá Israel, Adonai eloheinu, Adonai echad" (Ouve Israel, Adonai é nosso D'us, Adonai é Um"), na tradução feita pelo movimento religioso judaico Chabab.

Outra liberdade de roteiro está na longa discussão acerca das mulheres e da infertilidade da personagem que casará com Sem, filho mais velho de Noé. Na narrativa bíblica sobre o dilúvio não existe esta controvérsia que domina o filme. Sem, Cam e Jafé, filhos de Noé, já entram na arca com suas mulheres.

Mas, se para o homem bíblico o drama é o coração reto que serve a Deus, para a mulher, o drama é a fertilidade. Muitos criticam esse enfoque porque entendem que o homem tem um drama moral acerca da liberdade da vontade (tema muito bem trabalhado no filme) e a mulher tem um drama "fisiológico", portanto, alheio à liberdade.

Mas, ao enfrentar o mal da infertilidade e ao ser objeto de milagre (como no filme e em vários casos na Bíblia), a mulher revela sua vocação de ser a (desesperada) terra (in)fértil onde Deus deixa sua marca.

O medo da infertilidade no mundo semítico antigo acompanha muitas heroínas, como Sara, mulher de Abraão, e Rachel, mulher preferida de Jacó (mais tarde, chamado Israel, pai das 12 tribos).

O profeta Isaías, 54:1-55:5, compara as agonias e posteriores alegrias da mulher infértil (ou desamparada ou solitária) às águas de Noé: "Canta, ó estéril que não deste à luz; rompe em cânticos, e clama com alegria, tu que não tiveste dores de parto; porque mais serão os filhos da mulher solitária do que os da casada, diz o Eterno".

Adiante, o profeta compara a promessa de Deus a Noé, de que não mais lançará águas sobre a face da terra, com a promessa feita à infeliz de que Ele não terá mais ira contra sua revolta nem a repreenderá.

Sabe-se que Deus escolhe Rachel como a que "amolece" Seu coração, quando Ele fica irritado com o povo israelita. Está aí o mistério da dor feminina que encanta até o Eterno.

Quando você ouvir alguém dizer que a Bíblia é um livro bobo, saiba que você está diante de um ignorante. Boa semana


Fonte: http://avaranda.blogspot.com.br/2014/04/noach-luiz-felipe-ponde.html

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Jesus, um homem da periferia


Diferente do que aponta radicalmente a tradição sobre a figura fascinante de Jesus; sem muita teologia; sem tantos adornos majestosos, fantásticos; entretanto, resgatar a referência de Jesus como um homem da periferia implica reter em sua história um contexto que lhe é próprio, modesto, mas que lhe fora negado por séculos. Somente agora nos últimos vinte ou trinta anos estamos reconstruindo um modo novo de revisitar os textos bíblicos à luz da historiografia em diálogo com a Arqueologia.
Trata-se, na verdade, de redescobrir em nossa vida o Jesus histórico. Do contrário, parece que legamos um cristianismo extremamente ideológico, moralista e autoritário sem abertura para o diferente de si, porém sistemático, fechado num esquema de autodefesa ortodoxa de algumas instituições religiosas que nos impedem de pensar um Jesus humano, trabalhador, atrelado à sua terra, aos seus valores e pronto a confrontar as estruturas econômicas, políticas, culturais e religiosas de sua época.
Os últimos estudos históricos de Jesus afirmam que era um homem do séc. I EC, um galileu situado numa região geograficamente delimitada na Palestina, sendo a Galileia este lugar no extremo norte dessa região, muito próxima às fronteiras explosivas de conflito em contato com outros impérios. É oportuno distinguir aqui um judeu nascido em Nazaré da Galileia de outro judeu nascido em Jerusalém da Judeia, visto serem duas regiões muito diferentes; de matrizes geográficas, econômicas, políticas e culturais muito diversas. Porque Nazaré encontra-se situada na periferia da Galileia e esta, por sua vez, na periferia da Palestina e do Império Romano, Jesus é historicamente um homem da periferia.
A partir dessa reflexão que ora fazemos, precisamos continuar avançando e reelaborando conceitos e valores. O que a tradição cristã elaborou sobre o Jesus “revelado” nos Evangelhos durante mais de dois mil anos se cristalizou em nossas cabeças pensantes, de tal modo que nos fez distanciar da tamanha riqueza de informações das origens de Jesus e do tipo de judaísmo que ele retinha. Ficamos refém de um discurso dogmático ou ortodoxo sobre Jesus por muito tempo, ao ponto de não nos interessarmos tanto por esse assunto.
Pressupondo que Jesus é basicamente um homem da periferia, mais precisamente um camponês de origens extremamente pobres, somando-se a isso o fato de ser carpinteiro, mas não um carpinteiro que tinha casa, um lugar para trabalhar, terras para cultivar, é possível pensá-lo de um contexto simples, concreto; de homens comuns. Embora a carpintaria na época fosse um ofício de “status” social, a de Jesus era diferente porque “as raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos; mas o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8.20). No caso de Jesus, o trabalho de carpinteiro era inferior ao do camponês, pois fazia ferramentas para a manutenção do campesinato. Não tendo nada, Jesus precisava andar, sair, migrar para outros lugares à procura de casas para construir. Provavelmente, devia ser um construtor em constante caminhar, pronto para trabalhar; um reino a desbravar.
Se nos deixarmos guiar por essa ideia catalisadora de um Jesus da periferia, veremos claramente seu projeto de salvação a caminho para a cruz e configurando-se como modelo para toda a humanidade. Ao pegarmos os movimentos, as ações e palavras de Jesus nos textos que nos alcançaram, certamente entenderemos a preocupação de Jesus com os mais pobres, doentes e excluídos. E somente quando recuperamos a figura histórica de Jesus como um camponês da periferia, carpinteiro ou artesão, de Nazaré da Galileia que andou e pregou para muita gente é que, de fato, conseguimos ver a autenticidade e a coerência de seu discurso político, econômico, ético, religioso e cultural.
Lembremos: “Mostrai-me um denário. De quem traz a imagem e a inscrição? Responderam: De César. Ele disse então: Devolvei, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus a Deus” (Lc 20. 24-25); “Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no Reino dos Céus. E vos digo ainda: é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mt 19. 23-24); “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7. 12); “Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei” (Jo 2. 19); “Uma mulher da Samaria chegou para tirar água. Jesus lhe disse: Dá-me de beber!(...) Diz-lhe então a Samaritana: Como, sendo judeu, tu me pedes de beber, a mim que sou samaritana?” (Jo 4. 7-8).
Especialmente nesta semana santa, possamos reconstruir uma imagem diferente e inovadora de um Jesus que experimenta a vasta onda do helenismo de seu tempo; um Jesus que coexiste com o judaísmo e com toda a cultura Greco-macedônica; um Jesus inserido em seu contexto histórico-cultural bastante diverso e plural; um Jesus que nasceu judeu, viveu judeu e morreu judeu. Mas tudo que conhecemos de Jesus está em grego, porém só falou aramaico, provavelmente não leria nada do que fora escrito sobre ele. Esse Jesus, fonte das pesquisas recentes da História, da Antropologia e da Arqueologia desconstrói toda aquela grandeza de um Jesus quase intocável, herdeiro de um discurso glorioso, mágico e fabuloso de algumas culturas religiosas.

Prof. Jackislandy Meira de M. Silva
Bel. e Licenciado em Filosofia, Bel. em Teologia, Esp. em Metafísica e em Estudos Clássicos



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O sono de Jonas



A impressão que se tem quando dormimos é que os sentidos e a razão perdem suas forças. A consciência e o corpo parecem descansar para recuperar suas energias. Talvez o sono seja a experiência humana mais próxima da suspensão da vida, um estado em que a existência do eu se evade, sai de si e se refugia no nada, no tédio ou na fadiga, de modo a percebermos que a verdadeira vida está ausente.
Nessa direção se abre uma chave de leitura para o episódio bíblico narrado no livro de Jonas, onde a personagem central que intitula o próprio livro desobedece ao seu Deus, achando ele que poderia fugir ou evadir-se da presença de Deus. Mal sabia Jonas o que estava para acontecer. Ao fugir para Társis, visto ser o lugar mais longe possível para a época, sobretudo aos olhos dos hebreus, Jonas tenta renunciar à sua missão: Ir a Nínive, a grande cidade, e anunciar contra ela sua maldade, pois está desagradando a Deus (Cf. Jn 1. 2, in Bíblia de Jerusalém, impressão de 1993).
Teimosamente e de modo muito rebelde, Jonas não vai aos ninivitas para fazer o que Deus lhe pedira, no entanto toma um navio e zarpa para Társis. Só que durante a viagem, algo de sombrio e extraordinário acontece. Deus lança sobre o mar uma terrível tempestade a ponto de a um só tempo, por consequência do vento violento, o navio naufragar e os marinheiros a gritar assustadoramente. Pelo tom dramático que o autor sagrado põe nessa história dá até para imaginar a cena de desespero dos marinheiros implorando, cada qual ao seu deus e ao seu modo, socorro e salvação.
Quanto tumulto, desespero, medo e gritaria nesse ambiente! Porém nada disso incomodava o sono de Jonas, que se encontrava no fundo do navio deitado e dormindo profundamente (Cf. Jn 1. 5). Nem mesmo o mar bravio conseguia acordar Jonas.
Até que, finalmente, o comandante do navio aproxima-se dele e diz: “Como podes dormir? Levanta-te, invoca o teu Deus! Talvez Deus se lembre de nós e não pereceremos”(Jn 1. 6).
Depois de lançarem a sorte e descobrirem que havia sido Jonas a causa daquela terrível tempestade, os marinheiros foram obrigados a jogar Jonas no mar para que o mar acalmasse a sua fúria. Daí segue-se o que mais se sabe da história de Jonas, Deus determina que um peixe grandioso engula Jonas e que ele permaneça nas entranhas do peixe três dias e três noites.
Somente quando Jonas reconhece que Deus é Deus através da sua oração com clamores e súplicas é que, de repente, o peixe o vomita sobre a terra.
Gostaria de chamar atenção para duas coisas nessa preciosa história. Primeira, o sono de Jonas não é como o sono de um justo trabalhador que, extenuado pela dura carga de trabalho, faz uma humilde pausa de recuperação de energias, contudo, é “manter-se no descumprimento do sono”(LEVINAS, Emmanuel. Da existência ao existente. In CINTRA, Benedito E. Leite. Pensar com Emmanuel Levinas. São Paulo: Paulus, 2009, p. 39-40). Segunda, ou o sono de Jonas quer significar a “epoché”, conforme a qual o homem procura renunciar à certeza, interromper seu juízo sobre as coisas e confrontar toda a afirmação a uma dúvida intensa (desgosto e rebeldia do profeta Jonas) ou nos permite dialogar com a forte ideia bem representada na obra do artista espanhol Francisco de Goya, O Sono da Razão Produz Monstros (1796-1797).
Não nos esqueçamos do final da história segundo a qual o profeta queria a todo o custo fazer justiça aos ninivitas pelos males cometidos, ao passo que Deus teve misericórdia do povo. Enquanto o homem leva até às últimas consequências o tribunal da razão, Deus e, somente Ele, quebra a lógica fria da razão com a doce ternura do amor.
      
Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Bel. em Teologia, Bel. e Licenciado em Filosofia, Esp. em Metafísica, Esp. em Estudos Clássicos.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Não passamos de pó e cinza



Se tem um tema que realmente demanda muita “metafísica” e nos joga para dentro do drama da existência humana, esse tema é a morte. Essa desconhecida costuma deixar cicatrizes profundas na história e mais ainda na consciência individual e coletiva de todos nós, mas também é capaz de produzir um intenso movimento a favor da vida, quando não, ao menos nos faz refletir e a parar diante dela.
Muitos acidentes de trânsito, tragédias difíceis de apagar, certamente levaram pessoas abnegadas a defender regras mais eficazes de promoção da segurança nas estradas. Assassinatos, homicídios, guerras e catástrofes acabam transformando nossas vidas e até mudando nossos comportamentos a cada momento. Tornamo-nos piores ou melhores, porém alguma coisa muda, alguma coisa sai de lugar com a morte. A morte dá uma guinada na vida da gente.
Por causa da morte do seringueiro Chico Mendes, defensor político dos interesses dos trabalhadores do Estado do Amazonas e contra a exploração irracional da floresta, muitos saíram de suas casas e levantaram a bandeira de luta social e política a favor do meio ambiente, a favor da vida e da desconstrução social. Não é tão diferente com o impacto causado pela morte de centenas de estudantes e trabalhadores cidadãos na época da ditadura militar perseguidos pela censura e pelo cerceamento dos direitos civis. Quem não lembra da revolução que a F1, campeonato de automobilismo, sofreu em virtude da morte de Ayrton Senna! Os EUA ainda não superaram o trauma criado pela morte das quase três mil pessoas, vítimas dos ataques às torres gêmeas em setembro de 2001!
Curioso, mas ainda hoje, depois de mais de sessenta e cinco anos não nos esquecemos da segunda guerra mundial, das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, dos campos de concentração, da morte em massa de mais de seis milhões de judeus. Ora, não sai de nossa memória, após 2013 anos, a morte cruel e brutal de um judeu, Jesus, o tradicional filho do carpinteiro, o Galileu. Como todas as outras, mas, sobretudo, com esta, temos muito o que aprender: Aceitar a morte, uma vez que é a nossa própria condição humana; além disso, vencê-la; atravessar e ser atravessado por ela, de modo a refletir uma vida justa, honesta e corajosa.    
O filósofo francês Jean Paul Sartre, em vida e mesmo após a sua morte, nos deixou um legado praticamente universal, por isso não menos existencial, de que somos condenados à liberdade. Na mesma proporção e talvez mais contundente ainda, essa condenação possa servir para o dado da morte. Somos também condenados à morte porque somos humanos. Parece óbvio, mas basta nascermos, basta estarmos vivos para morrermos.
Ao nos remetermos para o contexto da velhice do Rei Salomão, muitíssimo experimentado em anos, vemos uma corajosa forma de encarar a morte/vida, sacudindo de nós a poeira da vaidade, pois não passamos de pó e cinza. Pensar a morte é encarar a vida com tudo o que ela significa na visão do autor do livro bíblico do Eclesiastes, é saber-se insuficiente, impregnado de vitalidade, é transformar-se em um homem de verdade: “Não te apresses em abrir a boca; que teu coração não se apresse em proferir palavras diante de Deus, porque Deus está no céu, e tu na terra; que tuas palavras sejam, portanto, pouco numerosas. Porque as muitas ocupações geram sonhos, e a torrente de palavras faz nascer resoluções insensatas” (5.1-2).
Fica a pergunta: Sabendo que vamos morrer, e isso não nos escapa, ainda assim nos envaidecemos, como agiríamos, então, acaso não soubéssemos que morreríamos?
Vale aprender do koheleth, como é conhecido o livro do Eclesiastes em hebraico: “[Lembra-te do teu Criador] antes que se quebre a cadeia de prata, e se despedace o copo de ouro, e se despedace o cântaro junto à fonte, e se despedace a roda junto ao poço, e o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu” (12. 6,7).


Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Bel. em Teologia, Licenciado em Filosofia/UERN, Esp. em Metafísica/UFRN e Esp. em Estudos Clássicos UnB/Archai/Unesco.
www.twitter.com/filoflorania

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Um exemplo de hospitalidade filosófica






Obviamente que vivemos num mundo da “ecumene”, num mundo habitado, cujas fronteiras estão cada vez mais invisíveis e podemos até nos considerar cidadãos do mundo, quer pela realidade de uma aldeia global quer pela forma como tratamos o outro, o estrangeiro, os de outra pátria ou sem pátria, os andarilhos, forasteiros, enfim. No cenário atual, as discussões diplomáticas a respeito de atos virtuais de espionagem estão quentíssimas, deixando bastante conturbadas as relações éticas entre Brasil e EUA, o que prova o quanto o mundo virtual tornou inseguras nossas fronteiras; a impressão é que elas já não existem mais.
Ainda assim, mesmo com toda a facilidade do que fazemos aqui respingue ali instantaneamente, há recorrentes casos de extremo nacionalismo, acentuada xenofobia nos mais variados rincões. Os preconceitos com o diferente se sucedem em toda parte. Parece que sofremos de uma certa aversão ao diferente, ao que não é do nosso grupo, ao que não pensa como nós.
Só que surgirão os que não admitem ser preconceituosos, xenófobos ou coisa do gênero, etc., mas consideram ser sociáveis, sem problema algum com os outros, tolerantes. Contudo, a conversa muda no momento em que estas situações começam a interferir na minha vida. Desde que determinados problemas não me afetem tudo bem. Geralmente é assim, o tolerar tem limites e transparece superioridade por parte de quem tolera. Bom quem tolera, coitadinho quem é tolerado.
O interessante é que Emmanuel Lévinas, filósofo judeu, lituano, francês, que viveu o turbilhão das guerras do século passado, é um exemplo crucial não de tolerância, e sim de hospitalidade em seu pensamento. Isso é muito forte porque o exemplo de tolerância ainda traz consigo algo de superioridade, pois ao dizer que sou tolerante a você, a enunciação por si só já demonstra algo de superior. Enquanto superior, traduzo a minha bondade sobre você. Ele diz que há algo muito mais generoso, que é precisamente a hospitalidade, o acolher efetivamente o outro, a alteridade, o diferente, e fazer disso um diálogo rico e fértil sob vários aspectos.
Este diálogo se faz entre ideias, linguagens, temas e assim por diante, tal como essa acolhida, essa hospitalidade que ele concede a temas que vem dos apaixonados romances russos, sobretudo Dostoiévski, depois com a leitura da Bíblia e por fim com uma crítica profunda ao espírito do Totalitarismo presente no hitlerismo, por exemplo.
Nesse contexto, a palavra hospitalidade guarda a ideia de duas outras palavras: atenção e acolhimento, de modo que a hospitalidade expressa uma tensão em direção ao outro, intenção também atenta, atenção intencional ao outro. O primeiro movimento que acompanha o acontecimento da hospitalidade, para Lévinas, é o acolhimento: “A noção de rosto significa a anterioridade filosófica do sendo sobre o ser, uma exterioridade que não apela ao poder nem à posse, uma exterioridade que não se reduz, como em Platão, à interioridade da recordação, e que, contudo, protege o eu que o acolhe” (Totalidade e Infinito, p. 22).
Estamos diante de uma hospitalidade infinita e incondicional, aberta à ética, por isso não restrita simplesmente à ordem do político, mas que ultrapassa o pensamento meramente político, do espaço político. O alcance da hospitalidade, segundo Lévinas, está na afirmação de que “A intencionalidade é hospitalidade”. Vejamos o momento de acolhimento à palavra para a decisão divina: “Decisão do Eterno acolhendo a homenagem do Egito (O Eterno é hospedeiro [host] acolhendo o hóspede [guest] que lhe traz sua homenagem numa cena clássica de hospitalidade.). A Bíblia permite prevê-la no Deuteronômio 23. 8, versículo que o próprio Messias, apesar de sua justiça, deve ter esquecido. Pertence-se à ordem messiânica, quando se pode admitir o outro entre os seus. Que um povo aceite aqueles que vêm instalar-se no seu seio, por mais estranhos que sejam, com seus costumes e seus hábitos, com seu falar e seus odores, que ele lhe dê uma akhsania como um lugar de albergue e de que respirar e viver – é um canto de glória do Deus de Israel”(À l'heure des nations, p. 113).

Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Bel. em Teologia, Licenciado em Filosofia/UERN, Esp. em Metafísica/UFRN e Esp. em Estudos Clássicos UnB/Archai/Unesco.
        
        


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quinta-feira, 2 de abril de 2015

Jesus, um estrangeiro como caminho...


A passagem de Jesus nesta terra foi extremamente rápida do ponto de vista histórico, mas seus feitos e seus discursos, sermões, são um traço contínuo de sua presença eternizada pelos movimentos posteriores, sobretudo, pelo cristianismo. Certamente, sua pessoa ainda vive conosco tão forte é o seu legado. Temos a impressão de que os principais registros da vida de Jesus, os Evangelhos, dão conta e são fontes seguras do propósito de sua morte tão repentina. 
É interessante notar que Jesus, em meio a uma série de declarações feitas aos discípulos, expõe os motivos de sua vinda ao mundo. Diferente de nós, Jesus não busca seu lugar ao sol, não está atrás de um lugar no mundo, muito menos de se fixar em terra estrangeira. Ele não dá sequer importância aos atrativos deste mundo. Naquela época era muito comum desejar ser general de tropas militares, ansiar a cargos políticos também, ascender ao trono, lutar por algum lugar na elite da sociedade ou mesmo desejar ser um soldado romano, ir à guerra e aprender a ser um conquistador.
Antes mesmo de algum desses ideais povoar a mente de Jesus, havia um plano divino para ele, de modo que bem sabia a razão de estar aqui. “(...) eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância.”(Jo 10.10). Viver para ele implica encarar o cotidiano, os fatos deste mundo a partir do que lhe fora revelado pelo Pai, o conhecimento de sua vontade e o cumprimento das Escrituras. “E eu já não estou mais no mundo, mas eles estão no mundo, e eu vou para ti.”(Jo 17.11). Jesus desenvolve um modo de viver no mundo sem pertencer a este mundo. Como a sua palavra é a verdade que se opõe ao mundo, este acaba odiando aqueles que a seguem, assim muitos começam a construir um outro mundo diferente deste porque já não são do mundo, mas são agora do mesmo mundo de Jesus. Insiste: “Dei-lhes a tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como eu não sou do mundo.”(Jo 17.14).
Fato é que Jesus não é deste mundo, o que acarreta para ele uma identidade estrangeira. Passa por aqui como um estrangeiro em terra estranha, visto ser este mundo inteiramente contraditório aos seus planos, ao reino de seu Pai, realmente diferente do que ele diz ser a eternidade: “E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.”(Jo 17.3-4).
A sua mensagem, seus ensinamentos, mostra um homem desprendido deste mundo, desapegado dos valores terrenos, sem se embaraçar com nada. Sua oração, intimidade com o Pai, seu jeito seguro e verdadeiro para afirmar a existência de um outro reino eram convincentes. Com palavras cheias do que deve ser este mundo, semelhante ao seu reino, Jesus usava de repreensão aos que queriam menosprezar os pequeninos, habitantes de seu reino. Utiliza-se de uma criança. A imagem da criança revela a todos um outro mundo de que falava o mestre. Seu reino. Um mundo que ninguém podia tomar. Seu povo. Um povo que ninguém podia maltratar e herdeiro de um outro tipo de vida que não esta, a vida eterna.
Por isso, sua identidade estrangeira, na medida em que não se deixa dominar, abre passagem para os que buscam libertação, novo nascimento e salvação. Nem a morte fora capaz de dominá-lo. Jesus atravessa os limites de sua nacionalidade; os padrões de sua religiosidade, o judaísmo; desafia as autoridades políticas de seu tempo; supera as realidades temporais e espaciais para abrir uma relação definitiva de caminho para o seu reino. Um reino que não é deste mundo: “O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui.”(Jo 18. 36).
Estrangeiro porque não tem onde reclinar a cabeça, anuncia um reino eterno e fala de outras moradas, além disso, durante o tempo que passou conosco, se opôs a este mundo como se não fosse a sua casa, tampouco a nossa. “Na casa de meu Pai há muitas moradas (...). Vou preparar-vos lugar.”(Jo 14. 2). A propósito do caminho para este lugar, assim responde a Tomé: “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim.”(Jo 14. 6).

Prof. Jackislandy Meira de M. Silva, filósofo e teólogo


sexta-feira, 18 de abril de 2014

Nôach por Luiz Felipe Pondé


Os eleitos de Deus só têm problemas; a solidão os assola, o sofrimento os persegue

O Deus de Israel não gosta de covardes. Homem, mulher, criança, todos são chamados à coragem, à dor e a tomar decisões difíceis.

Noé (Nôach), foi um desses heróis. Erich Auerbach, no seu "Mímesis", afirma que Deus testa seus heróis e heroínas, levando-os ao limite do insuportável, para que, sobrevivendo ao teste, descubram por que foram eleitos. Deus funda, assim, a ideia de autoconhecimento na literatura ocidental.

"E os que vieram, macho e fêmea, de toda criatura vieram, como Deus lhe havia ordenado; e o Eterno o fechou para protegê-lo. E foi o dilúvio quarenta dias sobre a terra, e multiplicaram-se as águas, e alcançaram a arca, e levantou-se de sobre a terra" (Gênesis, 7; 16-17, edição hebraica).

O filme "Noé", de Darren Aronofsky, é sobre eleição. "Eleição" é um conceito, muitas vezes, pouco compreendido pelo mundo contemporâneo, maníaco por felicidade "projetos do self" e sucesso.

Os eleitos pelo Deus de Israel só têm problemas; a solidão os assola, o medo e o sofrimento os persegue. Erich Auerbach entende muito mais de "eleição" na literatura israelita do que muito rabino, pastor e padre por aí, obcecados por vender autoajuda espiritual. "Dificilmente, um deles não sofre, como Adão, a mais profunda humilhação...", afirma Auerbach.

O diretor do filme, faz licenças poéticas, e algumas delas (não tenho como saber o quão consciente ele estava quando as fez) muito sofisticadas, levando em conta a "dramaturgia" do Velho Testamento, como falam os cristãos quando se referem à Bíblia hebraica.

Uma delas, muito pontual, é o uso da pequena tira de couro que o pai de Noé, e depois o próprio, enrola no braço: uma referência direta ao "tefilin" (filactério). A palavra hebraica tem sua raiz em "tefilá", que significa prece. Hoje, ela "virou" um cordão de couro ligado a duas caixinhas que o judeu amarra daquele jeito e também na cabeça (é bem maior do que mostra o filme).

Uma das preces ali contidas é o famoso "Shemá Israel", a qual lembra aos judeus que Deus é um só: "Shemá Israel, Adonai eloheinu, Adonai echad" (Ouve Israel, Adonai é nosso D'us, Adonai é Um"), na tradução feita pelo movimento religioso judaico Chabab.

Outra liberdade de roteiro está na longa discussão acerca das mulheres e da infertilidade da personagem que casará com Sem, filho mais velho de Noé. Na narrativa bíblica sobre o dilúvio não existe esta controvérsia que domina o filme. Sem, Cam e Jafé, filhos de Noé, já entram na arca com suas mulheres.

Mas, se para o homem bíblico o drama é o coração reto que serve a Deus, para a mulher, o drama é a fertilidade. Muitos criticam esse enfoque porque entendem que o homem tem um drama moral acerca da liberdade da vontade (tema muito bem trabalhado no filme) e a mulher tem um drama "fisiológico", portanto, alheio à liberdade.

Mas, ao enfrentar o mal da infertilidade e ao ser objeto de milagre (como no filme e em vários casos na Bíblia), a mulher revela sua vocação de ser a (desesperada) terra (in)fértil onde Deus deixa sua marca.

O medo da infertilidade no mundo semítico antigo acompanha muitas heroínas, como Sara, mulher de Abraão, e Rachel, mulher preferida de Jacó (mais tarde, chamado Israel, pai das 12 tribos).

O profeta Isaías, 54:1-55:5, compara as agonias e posteriores alegrias da mulher infértil (ou desamparada ou solitária) às águas de Noé: "Canta, ó estéril que não deste à luz; rompe em cânticos, e clama com alegria, tu que não tiveste dores de parto; porque mais serão os filhos da mulher solitária do que os da casada, diz o Eterno".

Adiante, o profeta compara a promessa de Deus a Noé, de que não mais lançará águas sobre a face da terra, com a promessa feita à infeliz de que Ele não terá mais ira contra sua revolta nem a repreenderá.

Sabe-se que Deus escolhe Rachel como a que "amolece" Seu coração, quando Ele fica irritado com o povo israelita. Está aí o mistério da dor feminina que encanta até o Eterno.

Quando você ouvir alguém dizer que a Bíblia é um livro bobo, saiba que você está diante de um ignorante. Boa semana


Fonte: http://avaranda.blogspot.com.br/2014/04/noach-luiz-felipe-ponde.html

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Jesus, um homem da periferia


Diferente do que aponta radicalmente a tradição sobre a figura fascinante de Jesus; sem muita teologia; sem tantos adornos majestosos, fantásticos; entretanto, resgatar a referência de Jesus como um homem da periferia implica reter em sua história um contexto que lhe é próprio, modesto, mas que lhe fora negado por séculos. Somente agora nos últimos vinte ou trinta anos estamos reconstruindo um modo novo de revisitar os textos bíblicos à luz da historiografia em diálogo com a Arqueologia.
Trata-se, na verdade, de redescobrir em nossa vida o Jesus histórico. Do contrário, parece que legamos um cristianismo extremamente ideológico, moralista e autoritário sem abertura para o diferente de si, porém sistemático, fechado num esquema de autodefesa ortodoxa de algumas instituições religiosas que nos impedem de pensar um Jesus humano, trabalhador, atrelado à sua terra, aos seus valores e pronto a confrontar as estruturas econômicas, políticas, culturais e religiosas de sua época.
Os últimos estudos históricos de Jesus afirmam que era um homem do séc. I EC, um galileu situado numa região geograficamente delimitada na Palestina, sendo a Galileia este lugar no extremo norte dessa região, muito próxima às fronteiras explosivas de conflito em contato com outros impérios. É oportuno distinguir aqui um judeu nascido em Nazaré da Galileia de outro judeu nascido em Jerusalém da Judeia, visto serem duas regiões muito diferentes; de matrizes geográficas, econômicas, políticas e culturais muito diversas. Porque Nazaré encontra-se situada na periferia da Galileia e esta, por sua vez, na periferia da Palestina e do Império Romano, Jesus é historicamente um homem da periferia.
A partir dessa reflexão que ora fazemos, precisamos continuar avançando e reelaborando conceitos e valores. O que a tradição cristã elaborou sobre o Jesus “revelado” nos Evangelhos durante mais de dois mil anos se cristalizou em nossas cabeças pensantes, de tal modo que nos fez distanciar da tamanha riqueza de informações das origens de Jesus e do tipo de judaísmo que ele retinha. Ficamos refém de um discurso dogmático ou ortodoxo sobre Jesus por muito tempo, ao ponto de não nos interessarmos tanto por esse assunto.
Pressupondo que Jesus é basicamente um homem da periferia, mais precisamente um camponês de origens extremamente pobres, somando-se a isso o fato de ser carpinteiro, mas não um carpinteiro que tinha casa, um lugar para trabalhar, terras para cultivar, é possível pensá-lo de um contexto simples, concreto; de homens comuns. Embora a carpintaria na época fosse um ofício de “status” social, a de Jesus era diferente porque “as raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos; mas o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8.20). No caso de Jesus, o trabalho de carpinteiro era inferior ao do camponês, pois fazia ferramentas para a manutenção do campesinato. Não tendo nada, Jesus precisava andar, sair, migrar para outros lugares à procura de casas para construir. Provavelmente, devia ser um construtor em constante caminhar, pronto para trabalhar; um reino a desbravar.
Se nos deixarmos guiar por essa ideia catalisadora de um Jesus da periferia, veremos claramente seu projeto de salvação a caminho para a cruz e configurando-se como modelo para toda a humanidade. Ao pegarmos os movimentos, as ações e palavras de Jesus nos textos que nos alcançaram, certamente entenderemos a preocupação de Jesus com os mais pobres, doentes e excluídos. E somente quando recuperamos a figura histórica de Jesus como um camponês da periferia, carpinteiro ou artesão, de Nazaré da Galileia que andou e pregou para muita gente é que, de fato, conseguimos ver a autenticidade e a coerência de seu discurso político, econômico, ético, religioso e cultural.
Lembremos: “Mostrai-me um denário. De quem traz a imagem e a inscrição? Responderam: De César. Ele disse então: Devolvei, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus a Deus” (Lc 20. 24-25); “Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no Reino dos Céus. E vos digo ainda: é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mt 19. 23-24); “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7. 12); “Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei” (Jo 2. 19); “Uma mulher da Samaria chegou para tirar água. Jesus lhe disse: Dá-me de beber!(...) Diz-lhe então a Samaritana: Como, sendo judeu, tu me pedes de beber, a mim que sou samaritana?” (Jo 4. 7-8).
Especialmente nesta semana santa, possamos reconstruir uma imagem diferente e inovadora de um Jesus que experimenta a vasta onda do helenismo de seu tempo; um Jesus que coexiste com o judaísmo e com toda a cultura Greco-macedônica; um Jesus inserido em seu contexto histórico-cultural bastante diverso e plural; um Jesus que nasceu judeu, viveu judeu e morreu judeu. Mas tudo que conhecemos de Jesus está em grego, porém só falou aramaico, provavelmente não leria nada do que fora escrito sobre ele. Esse Jesus, fonte das pesquisas recentes da História, da Antropologia e da Arqueologia desconstrói toda aquela grandeza de um Jesus quase intocável, herdeiro de um discurso glorioso, mágico e fabuloso de algumas culturas religiosas.

Prof. Jackislandy Meira de M. Silva
Bel. e Licenciado em Filosofia, Bel. em Teologia, Esp. em Metafísica e em Estudos Clássicos



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O sono de Jonas



A impressão que se tem quando dormimos é que os sentidos e a razão perdem suas forças. A consciência e o corpo parecem descansar para recuperar suas energias. Talvez o sono seja a experiência humana mais próxima da suspensão da vida, um estado em que a existência do eu se evade, sai de si e se refugia no nada, no tédio ou na fadiga, de modo a percebermos que a verdadeira vida está ausente.
Nessa direção se abre uma chave de leitura para o episódio bíblico narrado no livro de Jonas, onde a personagem central que intitula o próprio livro desobedece ao seu Deus, achando ele que poderia fugir ou evadir-se da presença de Deus. Mal sabia Jonas o que estava para acontecer. Ao fugir para Társis, visto ser o lugar mais longe possível para a época, sobretudo aos olhos dos hebreus, Jonas tenta renunciar à sua missão: Ir a Nínive, a grande cidade, e anunciar contra ela sua maldade, pois está desagradando a Deus (Cf. Jn 1. 2, in Bíblia de Jerusalém, impressão de 1993).
Teimosamente e de modo muito rebelde, Jonas não vai aos ninivitas para fazer o que Deus lhe pedira, no entanto toma um navio e zarpa para Társis. Só que durante a viagem, algo de sombrio e extraordinário acontece. Deus lança sobre o mar uma terrível tempestade a ponto de a um só tempo, por consequência do vento violento, o navio naufragar e os marinheiros a gritar assustadoramente. Pelo tom dramático que o autor sagrado põe nessa história dá até para imaginar a cena de desespero dos marinheiros implorando, cada qual ao seu deus e ao seu modo, socorro e salvação.
Quanto tumulto, desespero, medo e gritaria nesse ambiente! Porém nada disso incomodava o sono de Jonas, que se encontrava no fundo do navio deitado e dormindo profundamente (Cf. Jn 1. 5). Nem mesmo o mar bravio conseguia acordar Jonas.
Até que, finalmente, o comandante do navio aproxima-se dele e diz: “Como podes dormir? Levanta-te, invoca o teu Deus! Talvez Deus se lembre de nós e não pereceremos”(Jn 1. 6).
Depois de lançarem a sorte e descobrirem que havia sido Jonas a causa daquela terrível tempestade, os marinheiros foram obrigados a jogar Jonas no mar para que o mar acalmasse a sua fúria. Daí segue-se o que mais se sabe da história de Jonas, Deus determina que um peixe grandioso engula Jonas e que ele permaneça nas entranhas do peixe três dias e três noites.
Somente quando Jonas reconhece que Deus é Deus através da sua oração com clamores e súplicas é que, de repente, o peixe o vomita sobre a terra.
Gostaria de chamar atenção para duas coisas nessa preciosa história. Primeira, o sono de Jonas não é como o sono de um justo trabalhador que, extenuado pela dura carga de trabalho, faz uma humilde pausa de recuperação de energias, contudo, é “manter-se no descumprimento do sono”(LEVINAS, Emmanuel. Da existência ao existente. In CINTRA, Benedito E. Leite. Pensar com Emmanuel Levinas. São Paulo: Paulus, 2009, p. 39-40). Segunda, ou o sono de Jonas quer significar a “epoché”, conforme a qual o homem procura renunciar à certeza, interromper seu juízo sobre as coisas e confrontar toda a afirmação a uma dúvida intensa (desgosto e rebeldia do profeta Jonas) ou nos permite dialogar com a forte ideia bem representada na obra do artista espanhol Francisco de Goya, O Sono da Razão Produz Monstros (1796-1797).
Não nos esqueçamos do final da história segundo a qual o profeta queria a todo o custo fazer justiça aos ninivitas pelos males cometidos, ao passo que Deus teve misericórdia do povo. Enquanto o homem leva até às últimas consequências o tribunal da razão, Deus e, somente Ele, quebra a lógica fria da razão com a doce ternura do amor.
      
Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Bel. em Teologia, Bel. e Licenciado em Filosofia, Esp. em Metafísica, Esp. em Estudos Clássicos.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Não passamos de pó e cinza



Se tem um tema que realmente demanda muita “metafísica” e nos joga para dentro do drama da existência humana, esse tema é a morte. Essa desconhecida costuma deixar cicatrizes profundas na história e mais ainda na consciência individual e coletiva de todos nós, mas também é capaz de produzir um intenso movimento a favor da vida, quando não, ao menos nos faz refletir e a parar diante dela.
Muitos acidentes de trânsito, tragédias difíceis de apagar, certamente levaram pessoas abnegadas a defender regras mais eficazes de promoção da segurança nas estradas. Assassinatos, homicídios, guerras e catástrofes acabam transformando nossas vidas e até mudando nossos comportamentos a cada momento. Tornamo-nos piores ou melhores, porém alguma coisa muda, alguma coisa sai de lugar com a morte. A morte dá uma guinada na vida da gente.
Por causa da morte do seringueiro Chico Mendes, defensor político dos interesses dos trabalhadores do Estado do Amazonas e contra a exploração irracional da floresta, muitos saíram de suas casas e levantaram a bandeira de luta social e política a favor do meio ambiente, a favor da vida e da desconstrução social. Não é tão diferente com o impacto causado pela morte de centenas de estudantes e trabalhadores cidadãos na época da ditadura militar perseguidos pela censura e pelo cerceamento dos direitos civis. Quem não lembra da revolução que a F1, campeonato de automobilismo, sofreu em virtude da morte de Ayrton Senna! Os EUA ainda não superaram o trauma criado pela morte das quase três mil pessoas, vítimas dos ataques às torres gêmeas em setembro de 2001!
Curioso, mas ainda hoje, depois de mais de sessenta e cinco anos não nos esquecemos da segunda guerra mundial, das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, dos campos de concentração, da morte em massa de mais de seis milhões de judeus. Ora, não sai de nossa memória, após 2013 anos, a morte cruel e brutal de um judeu, Jesus, o tradicional filho do carpinteiro, o Galileu. Como todas as outras, mas, sobretudo, com esta, temos muito o que aprender: Aceitar a morte, uma vez que é a nossa própria condição humana; além disso, vencê-la; atravessar e ser atravessado por ela, de modo a refletir uma vida justa, honesta e corajosa.    
O filósofo francês Jean Paul Sartre, em vida e mesmo após a sua morte, nos deixou um legado praticamente universal, por isso não menos existencial, de que somos condenados à liberdade. Na mesma proporção e talvez mais contundente ainda, essa condenação possa servir para o dado da morte. Somos também condenados à morte porque somos humanos. Parece óbvio, mas basta nascermos, basta estarmos vivos para morrermos.
Ao nos remetermos para o contexto da velhice do Rei Salomão, muitíssimo experimentado em anos, vemos uma corajosa forma de encarar a morte/vida, sacudindo de nós a poeira da vaidade, pois não passamos de pó e cinza. Pensar a morte é encarar a vida com tudo o que ela significa na visão do autor do livro bíblico do Eclesiastes, é saber-se insuficiente, impregnado de vitalidade, é transformar-se em um homem de verdade: “Não te apresses em abrir a boca; que teu coração não se apresse em proferir palavras diante de Deus, porque Deus está no céu, e tu na terra; que tuas palavras sejam, portanto, pouco numerosas. Porque as muitas ocupações geram sonhos, e a torrente de palavras faz nascer resoluções insensatas” (5.1-2).
Fica a pergunta: Sabendo que vamos morrer, e isso não nos escapa, ainda assim nos envaidecemos, como agiríamos, então, acaso não soubéssemos que morreríamos?
Vale aprender do koheleth, como é conhecido o livro do Eclesiastes em hebraico: “[Lembra-te do teu Criador] antes que se quebre a cadeia de prata, e se despedace o copo de ouro, e se despedace o cântaro junto à fonte, e se despedace a roda junto ao poço, e o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu” (12. 6,7).


Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Bel. em Teologia, Licenciado em Filosofia/UERN, Esp. em Metafísica/UFRN e Esp. em Estudos Clássicos UnB/Archai/Unesco.
www.twitter.com/filoflorania

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Um exemplo de hospitalidade filosófica






Obviamente que vivemos num mundo da “ecumene”, num mundo habitado, cujas fronteiras estão cada vez mais invisíveis e podemos até nos considerar cidadãos do mundo, quer pela realidade de uma aldeia global quer pela forma como tratamos o outro, o estrangeiro, os de outra pátria ou sem pátria, os andarilhos, forasteiros, enfim. No cenário atual, as discussões diplomáticas a respeito de atos virtuais de espionagem estão quentíssimas, deixando bastante conturbadas as relações éticas entre Brasil e EUA, o que prova o quanto o mundo virtual tornou inseguras nossas fronteiras; a impressão é que elas já não existem mais.
Ainda assim, mesmo com toda a facilidade do que fazemos aqui respingue ali instantaneamente, há recorrentes casos de extremo nacionalismo, acentuada xenofobia nos mais variados rincões. Os preconceitos com o diferente se sucedem em toda parte. Parece que sofremos de uma certa aversão ao diferente, ao que não é do nosso grupo, ao que não pensa como nós.
Só que surgirão os que não admitem ser preconceituosos, xenófobos ou coisa do gênero, etc., mas consideram ser sociáveis, sem problema algum com os outros, tolerantes. Contudo, a conversa muda no momento em que estas situações começam a interferir na minha vida. Desde que determinados problemas não me afetem tudo bem. Geralmente é assim, o tolerar tem limites e transparece superioridade por parte de quem tolera. Bom quem tolera, coitadinho quem é tolerado.
O interessante é que Emmanuel Lévinas, filósofo judeu, lituano, francês, que viveu o turbilhão das guerras do século passado, é um exemplo crucial não de tolerância, e sim de hospitalidade em seu pensamento. Isso é muito forte porque o exemplo de tolerância ainda traz consigo algo de superioridade, pois ao dizer que sou tolerante a você, a enunciação por si só já demonstra algo de superior. Enquanto superior, traduzo a minha bondade sobre você. Ele diz que há algo muito mais generoso, que é precisamente a hospitalidade, o acolher efetivamente o outro, a alteridade, o diferente, e fazer disso um diálogo rico e fértil sob vários aspectos.
Este diálogo se faz entre ideias, linguagens, temas e assim por diante, tal como essa acolhida, essa hospitalidade que ele concede a temas que vem dos apaixonados romances russos, sobretudo Dostoiévski, depois com a leitura da Bíblia e por fim com uma crítica profunda ao espírito do Totalitarismo presente no hitlerismo, por exemplo.
Nesse contexto, a palavra hospitalidade guarda a ideia de duas outras palavras: atenção e acolhimento, de modo que a hospitalidade expressa uma tensão em direção ao outro, intenção também atenta, atenção intencional ao outro. O primeiro movimento que acompanha o acontecimento da hospitalidade, para Lévinas, é o acolhimento: “A noção de rosto significa a anterioridade filosófica do sendo sobre o ser, uma exterioridade que não apela ao poder nem à posse, uma exterioridade que não se reduz, como em Platão, à interioridade da recordação, e que, contudo, protege o eu que o acolhe” (Totalidade e Infinito, p. 22).
Estamos diante de uma hospitalidade infinita e incondicional, aberta à ética, por isso não restrita simplesmente à ordem do político, mas que ultrapassa o pensamento meramente político, do espaço político. O alcance da hospitalidade, segundo Lévinas, está na afirmação de que “A intencionalidade é hospitalidade”. Vejamos o momento de acolhimento à palavra para a decisão divina: “Decisão do Eterno acolhendo a homenagem do Egito (O Eterno é hospedeiro [host] acolhendo o hóspede [guest] que lhe traz sua homenagem numa cena clássica de hospitalidade.). A Bíblia permite prevê-la no Deuteronômio 23. 8, versículo que o próprio Messias, apesar de sua justiça, deve ter esquecido. Pertence-se à ordem messiânica, quando se pode admitir o outro entre os seus. Que um povo aceite aqueles que vêm instalar-se no seu seio, por mais estranhos que sejam, com seus costumes e seus hábitos, com seu falar e seus odores, que ele lhe dê uma akhsania como um lugar de albergue e de que respirar e viver – é um canto de glória do Deus de Israel”(À l'heure des nations, p. 113).

Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Bel. em Teologia, Licenciado em Filosofia/UERN, Esp. em Metafísica/UFRN e Esp. em Estudos Clássicos UnB/Archai/Unesco.
        
        


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