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sábado, 14 de março de 2015

VERGONHA


Convivemos com tanta exposição hoje em dia que, ao escolhermos uma vida simples e cada vez menos exibicionista, a vergonha passa a ser o contraponto daqueles que agem correntemente de acordo com a “sociedade do espetáculo”, expressão cunhada por Guy Debord em obra de sua autoria. Por “sociedade do espetáculo” se entende uma vida pautada na exterioridade, segundo a qual as máscaras são colocadas e as cortinas abertas para o encantado show das pseudoindividualidades ou falsas individualidades nos mais variados lugares de convivência social; dos jantares de confraternização às passagens pelo mercado, lojas e shoppings. As ruas também são espaços onde desfilam as mais diversas formas de vida; daquelas mais superficiais às mais verdadeiras.
A grande praça a que somos convidados a frenquentar expõe tipos inusitados de representações. A impressão que se tem é que a sociedade é um enorme palco de representações. Por conta disso é que nos envergonhamos, sobretudo quando confrontamos o exterior com o nosso interior. Justamente aí nasce a indignação e a sensação de vergonha. “A vergonha é o sentimento daquele que, inadequado no cenário do espetáculo, ainda preserva o interior contra a lei da superfície e do uso da máscara que a todos encanta”(TIBURI, Márcia. Filosofia Prática: ética, vida cotidiana, vida virtual. Rio de Janeiro: Record, 2014, p. 146). Passamos a ver o exterior não mais como ele é, mas como ele poderia não ser. Tal sensação de estranhamento é a própria vergonha, porque é uma experiência que se estabelece com a verdade. Quando nos deparamos com a verdade significa que nos deparamos com a vergonha. Tiramos as máscaras e desencantamos as falsas individualidades.
Muitos não querem sentir vergonha. É um “direito”, mesmo preferindo permanecer oprimido pelo exterior e pela diminuição de liberdade. Um “direito” de não ter “direito”, na medida em que a vergonha é o efeito ou a consequência da liberdade. Nesse sentido a vergonha é praticamente inevitável. Geralmente nos envergonhamos de sentir vergonha, como se a vergonha não fosse própria da natureza humana. Assim o é com a angústia, a revolta, a indignação. A capacidade de se indignar ou de se envergonhar não deve ser uma vanglória da moral, mas um afeto de alguma coisa inadequada, de que algo realmente importa.
O sentimento de vergonha é sinal de que algo ainda importa. Importar-se é, a propósito, tantas vezes, o nome próprio da inadequação. Inadequado é quem, por um motivo ou outro, começou a pensar. 'Adequado' é, neste sentido, o sem-vergonha. Seria aquele que se entrega à prática abstratamente, aquela prática sem pensamento na qual o outro não é considerado”(idem, p. 147).
Dessa maneira, o fingimento, a mentira pela mentira, a informação pela informação e a exposição da intimidade em redes sociais são experiências insuportáveis para o inadequado que, movido pela vergonha, subverte o status quo de uma realidade conformada com seus vícios sociais e políticos, além disso, gera nele mesmo uma indignação muito pessoal e subjetiva de se perguntar, ressentir, inquietar-se.
Muito interessante perceber que a vergonha é um sentimento que acontece quando mais nos envolvemos com as demandas do mundo, onde quer que estejamos, ou em casa no quarto sozinho, no trabalho quando há ausência de profissionalismo ou nas ruas em manifestações ordeiras reclamando direitos sociais, preservação das instituições e da democracia, pedindo urgentemente reformas de ordem política e etc. Às vezes, basta uma notícia de violência, agressão ou mais uma de escândalos de corrupção política para nos envergonhar interiormente.
Portanto, o viés político estimulado pelo sentimento de vergonha é algo que não podemos perder, justo numa sociedade cada vez mais insensível aos exercícios de cidadania e participação democrática. Se não pelo ativismo, pela práxis, ao menos pelo sentimento de vergonha a política mexa conosco.

Prof. Jackislandy Meira de M. Silva, filósofo e teólogo
 


domingo, 22 de fevereiro de 2015

Locke (1632-1704), Da importância do governo para os indivíduos em sociedade

"Se o homem no estado de natureza é tão livre, conforme dissemos, se é senhor absoluto da sua própria pessoa e posses, igual ao maior e a ninguém sujeito, por que abrirá ele mão dessa liberdade, por que abandonará o seu império e sujeitar-se-á ao domínio e controle de qualquer outro poder? Ao que é óbvio responder que, embora no estado de natureza tenha tal direito, a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente exposta à invasão de terceiros porque, sendo todos reis tanto quanto ele, todo homem é igual a ele, e na maior parte pouco observadores da equidade e da justiça, a fruição da propriedade que possui nesse estado é muito insegura, muito arriscada. Estas circunstâncias obrigam-no a abandonar uma condição que, embora livre, está cheia de temores e perigos constantes; e não é sem razão que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com outros que estão já unidos, ou pretendem unir-se, para a mútua conservação da vida, da liberdade e dos bens a que chamo de 'propriedade'."

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro: Abril Cultural, 1978, cap. IX, p. 82 (Coleção "Os Pensadores").


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Filmaço: "LEVIATÃ"

Com características inspiradas na criatividade russa, "Leviatã" deve ser um filme interessante do ponto de vista filosófico porque explora a condição humana no mundo e lembra basicamente a obra de Thomas Hobbes. Programação para as férias. "Leviatã", filme inspirado também no livro de Jó. Daí sua relevante ênfase na condição humana. Vale a pena. Muito bom.

LAÇOS HUMANOS


Quase sempre somos flagrados de cabeças baixas com os dedos subindo e descendo pela tela de um tablet ou celular. O constrangimento é imediato, até porque devíamos nos cumprimentar ou nos relacionar com pessoas, ao invés de grudar os olhos em nossas máquinas. Lembro-me que uma vez, espantada, uma senhora bastante idosa me perguntou: "Jackis, por que as pessoas estão tão enfiadas com a cara nessas coisas?" Ao que respondi: "Estão conversando com outras pessoas, pesquisando, ouvindo música, assistindo vídeos ou fazendo qualquer outra coisa. Tentei justificar que esses aparelhos oferecem muitas opções". Fingindo ter entendido, a senhora fez um sinal negativo com a cabeça, e mudou de assunto.
Por incrível que pareça, ainda há muita gente que está fora desse processo de inclusão tecnológica, ou por que simplesmente não quer ou não tem oportunidades ou se sente mais feliz sem essas supermáquinas.
Dados do IBGE apontam que 130,8 milhões de pessoas de 10 anos ou mais de idade tinham telefone móvel celular para uso pessoal já em 2013.
Só pra termos uma ideia, segundo fonte da http://www1.folha.uol.com.br/…/1476690-numero-de-brasileiro…, o número de brasileiros que acessa a internet por telefone celular atingiu 52,5 milhões em 2013.
O impacto desses números nas relações humanas é muito forte, produzindo assim uma massa bem significativa de gente que está mudando o comportamento em função do virtual.
"Entrevistado a respeito da crescente popularidade do namoro pela Internet, em detrimento dos bares para solteiros e das seções especializadas dos jornais e revistas, um jovem de 28 anos da Universidade de Bath apontou uma vantagem decisiva da relação eletrônica: 'Sempre se pode apertar a tecla de deletar'" (BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p. 13.).
Crianças, jovens, adultos e até mesmo idosos ostentam em suas redes sociais uma lista interminável de milhares de amigos, porém, esquecem que são relações virtuais, muito fáceis de entrar e sair, de serem desmanchadas. Num clique podemos bloquear ou desbloquear alguém, ao ponto de manipularmos as relações como se fossem um simples jogo. Quanta fragilidade! Apenas um clique pode nos deixar sem nem um amigo.
Laços humanos, não tão duradouros quanto antes, se desfazem rapidamente na liquidez de nossa modernidade, no dizer do sociólogo alemão Bauman. Para ele, as pessoas se comportam como se estivessem sobre uma fina camada de gelo. Se não passarem velozmente por ela correm o risco de afundarem no lago. Eis a ambivalência: segurança e liberdade.
Bauman afirma que a nova modalidade de amizade proposta pelo Facebook, por exemplo, é atrativa porque oferece para nós uma forma fácil de entrar e sair de uma relação em rede. Diferente da concepção de rede, os laços humanos geram infinitas discussões, sentimentos de culpa, mentiras, consequências traumáticas para serem possivelmente desfeitos.
Conectar e desconectar uma pessoa de sua vida virtual parece ser bem mais fácil, agora fazer e desfazer laços humanos nos moldes da vida real e de suas implicações é muito mais difícil.
O problema é que tem muita gente misturando uma relação em rede (forjando uma outra espécie de amizade) com a concepção de laços humanos, o tradicional modelo de amizade.

Jackislandy Meira de M. Silva. Professor, filósofo e teólogo.
www.umasreflexoes.blogspot.com.br / www.chegadootempo.blogspot.com.br

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Bom humor

De Kundera, mais bom humor.
"Ah, o bom humor! Você nunca leu Hegel? Claro que não. Você nem sabe quem ele é. Mas nosso professor que nos inventou me forçou a estudá-lo noutros tempos. Em sua reflexão sobre o cômico, Hegel disse que o verdadeiro humor é impensável sem o infinito bom humor, ouça bem, é o que ele diz com todas as letras: 'infinito bom humor'. Nada de zombaria, nada de sátira, nada de sarcasmo. Somente das alturas do infinito bom humor é que você pode observar abaixo de si a eterna tolice dos homens e rir dela." (in A festa da insignificância, p. 90).
"Como encontrar o bom humor?" (idem).

A beleza da insignificância

"(...) Queria lhe falar então Quaquelique. Meu grande amigo. Você não o conhece. Eu sei. Pois bem. Agora, a insignificância me aparece sob um ponto de vista totalmente diferente de então, sob uma luz mais forte, mais reveladora. A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre. Ela está presente mesmo ali onde ninguém quer vê-la: nos horrores, nas lutas sangrentas, nas piores desgraças. Isso exige muitas vezes coragem para reconhecê-la em condições tão dramáticas e para chamá-la pelo nome. Mas não se trata apenas de reconhecê-la, é preciso amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la. Aqui, neste parque, diante de nós, olhe, meu amigo, ela está presente com toda sua evidência, com toda sua inocência, com toda sua beleza. Sim, sua beleza. Como você mesmo disse: a animação perfeita... e completamente inútil, as crianças rindo... sem saber por quê, não é lindo? Respire, D'Ardelo, meu amigo, respire essa insignificância que nos cerca, ela é a chave da sabedoria, ela é a chave do bom humor..." (KUNDERA, Milan. A festa da insignificância. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 132).
Simplesmente maravilhoso. De uma graça e bom humor impecáveis. Um texto gostoso de ler.

Novo longa do Pequeno Príncipe

Trailer do novo longa de "O pequeno príncipe" é lançado, mas o filme chegará mesmo aos cinemas apenas em outubro de 2015. Segue o Trailer.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Walter Benjamim e a "Angelus Novus" de Klee


De Gershom Scholem, poema sobre a "Saudação do Angelus", escrito a partir do quadro de Paul Klee, "Angelus Novus" e que foi enviado para o filósofo Walter Benjamin no dia de seu aniversário em 15 de julho de 1921.
"Aqui da parede, nobre, / não pouso o olhar em ninguém, / venho do céu que vos cobre / sou homem-anjo do Além // No meu reino o homem é bom / mas não é nele seu aposto / recebo do Alto o dom / e não preciso de rosto // A região de onde vim / tem medida e luz sem fundo: / o que me faz ser assim / é prodígio do vosso mundo // Dentro de mim está a urbe / para onde Deus me mandou / o anjo com este selo / nunca ela o deslumbrou // Minha asa está pronta para o voo altivo: / se pudesse, voltaria / pois ainda que ficasse tempo vivo / pouca sorte teria // Os meus olhos são negros e fundos / e nunca se esvazia o meu olhar / sei muita coisa deste mundo / sei o que venho anunciar // Não sou simbólico nem trágico /significo o que sou, é tudo / em vão giras o anel mágico / pois em mim não há sentido". (in BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Trad. de João Barreto. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 14, [N.T.])

sábado, 6 de dezembro de 2014

Casa aberta





Mais do que em todos os dias e em grandes momentos do ano, as festividades natalinas e as ligadas ao Réveillon causam em nós uma sensação diferente. E o mais interessante é que não apenas representamos ou idealizamos estes eventos, mas os concretizamos, fazemos acontecer momentos de inteira generosidade, gratidão a Deus e às pessoas com as quais convivemos. Expressões de paz, amor, bondade, alegria e esperança nos conectam uns aos outros de uma forma tão objetiva que somos movidos para gestos de exuberância humana: Trocamos presentes; organizamos jantares beneficentes; sorteamos cestas natalinas; realizamos passeios ou viagens com quem amamos; abrimos a casa, etc. Sem contar as centenas de beijos e abraços muito comuns desta época do ano.
Essa sensação extremamente humana nos faz lembrar de como deve ser um lar. Não, às vezes, de como ele é, sujo, violento, insuportável, detestável, mas de como deveria ser, limpo, pacífico, agradável, seguro, acolhedor. A casa da gente precisa ser bem tratada, principalmente em tempos de festa, quando recebemos pessoas queridas que não víamos há anos. É preciso olhar mais para casa, onde as distâncias diminuem e tudo fica mais próximo. É exatamente o que acontece agora, no devido instante em que somos arrancados de nosso próprio mundo, de um mundo fechado, totalitário, racionalista, egoísta para nos relacionarmos com o que há para além de nós mesmos, alcançando assim uma abertura para a alteridade, uma abertura infinita.
Emmanuel Levinas, filósofo, leitor da Bíblia e de Dostoievski, entendia a casa como um ponto de referência, segundo a qual o eu vai em direção à exterioridade do mundo. “O papel privilegiado da casa não consiste em ser o fim da atividade humana, mas em ser a condição e, nesse sentido, o seu começo” (Totalidade e Infinito, p. 144). A casa que sou eu e a casa que é o mundo vivem agora uma conexão tão intensa a ponto de um querer humanizar o outro e vice-versa. “Simultaneamente fora e dentro, vai para fora a partir de uma intimidade. Por outro lado, a intimidade abre-se dentro de uma casa, que se situa nesse fora” (idem, p. 145).  
A ilustração da casa, sugerida por Levinas, para demonstrar a pertinência de nossas relações com os excluídos, com as minorias desfavorecidas, os pobres, a viúva, o órfão e o estrangeiro é cada vez mais significativa e atual. A recorrente imagem da “casa aberta”, neste período do ano, tal como deve ser em toda a vida, receptiva ao outro, é muito viva na música de Arnaldo Antunes, “a casa é sua”:
Não me falta cadeira/ Não me falta sofá /Só falta você/ sentada na sala/ Só falta você estar
Não me falta parede/ E nela uma porta pra você entrar/ Não me falta tapete/ Só falta o seu pé descalço pra pisar
Não me falta cama/ Só falta você deitar/ Não me falta o sol da manhã/ Só falta você acordar
Pras janelas se abrirem pra mim/ E o vento brincar no quintal/ Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal
A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio
Não me falta banheiro, quarto/ Abajur, sala de jantar/ Não me falta cozinha/ Só falta a campainha tocar
Não me falta cachorro/ Uivando só porque você não está/ Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar
Não me falta casa/ Só falta ela ser um lar/ Não me falta o tempo que passa/ Só não dá mais para tanto esperar
Para os pássaros voltarem a cantar/ E a nuvem desenhar um coração flechado/ Para o chão voltar a se deitar/ E a chuva batucar no telhado
Numa sociedade imensamente carente de referências, a casa cheia de gente, onde as famílias se encontram e se transformam a cada encontro, é a realização de qualquer Natal e passagem de ano para alguém, na medida em que simboliza recomeço, renovo, revitalização. Também é uma oportunidade de resgate das referências familiares, a partir das quais ressignificamos nosso mundo, nossa casa, nosso lugar no mundo e passamos a ser mais humanos com respeito, amor, tolerância, bondade, justiça e paz.
Enquanto escrevia esse texto, duas figuras clássicas da literatura não me saíam da cabeça, a do filho pródigo usada por Jesus Cristo e a de Ulisses usada por Homero. As duas falam desse regresso ao lar e, curiosamente, a casa estava aberta, no sentido de mostrar uma nova maneira de reaprender a ver o mundo.

Jackislandy Meira de M. Silva, professor, filósofo e teólogo.




domingo, 9 de novembro de 2014

Sociedade de Eu com outrem - linguagem e bondade.

É preciso inverter os termos. Para a tradição filosófica, os conflitos entre o Mesmo e o Outro resolvem-se pela teoria em que o Outro se reduz ao Mesmo ou, concretamente, pela comunidade do Estado em que sob o poder anônimo, ainda que inteligível, o Eu reencontra a guerra na opressão tirânica que sofre da parte da totalidade. A Ética, em que o Mesmo tem em conta o irredutível Outrem, dependeria da opinião. O esforço deste livro vai no sentido de captar no discurso uma relação não alérgica com a alteridade, descobrir nele o Desejo - onde o poder, por essência assassino do Outro, se torna, em face do Outro e "contra todo o bom senso", impossibilidade do assassínio, consideração do Outro na justiça. O nosso esforço consiste concretamente em manter, na comunidade anônima, a sociedade de Eu com outrem - linguagem e bondade. Esta relação não é pré-filosófica, porque não violenta o eu, não lhe é imposta brutalmente de fora, contra a sua vontade, ou com o seu desconhecimento como opinião; mais exatamente, é-lhe imposta, para além de toda a violência, de uma violência que o põe inteiramente em questão. A relação ética, oposta à filosofia primeira da identificação da liberdade e do poder, não é contra a verdade, dirige-se ao ser na sua exterioridade absoluta e cumpre a própria intenção que anima a caminhada para a verdade.

LEVINÁS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. 3ª ed. Portugal, Lisboa: Edições 70, 2008, p. 34

terça-feira, 4 de novembro de 2014

A caçada do filósofo



O costume de caçar nos acompanha desde que começamos a perceber o quanto precisamos da natureza para sobreviver. Os primeiros homens faziam da caça um meio racional de subsistência. Os índios ainda hoje, pelo que se sabe, retiram apenas o necessário da natureza para se alimentarem e se protegerem.
Com o passar do tempo, alguns povos e grupos cultivaram a caça como uma espécie de “hobby”, de entretenimento e também como exploração predatória à natureza. Além disso, muitos povos se tornavam hábeis caçadores porque ainda precisavam se defender de animais perigosos.
Todo mundo sabe que a caça é uma das principais causas de extinção de animais raros no meio ambiente. De alguns anos para cá, a legislação brasileira vem tomando medidas severas aos que infringem os rigores legais quanto a este tipo de atividade.
Porém, o que nos interessa aqui é a atitude do caçador. O faro aguçado de quem caça é semelhante ao faro do filósofo à procura de novos conceitos; outros problemas que estão ali, mas quase ninguém vê, escondidos.
O filósofo e o caçador têm em comum a gana da busca, da procura. São inúmeros os caçadores de antiguidades, tesouros, cidades perdidas. Arqueólogos e viajantes aventureiros se dedicam a isso. O filósofo, por sua vez, procura pessoas, ideias, definições, conceitos que, ao encontrá-los, não consegue satisfazer a sede de uma busca incessante, uma vez que sua busca continua mais viva e impetuosa do que nunca. O filósofo seria uma espécie de caçador do infinito ou como diria o poeta Milton Nascimento: “Nada a temer senão o correr da luta/ Nada a fazer senão esquecer o medo/ Abrir o peito a força, numa procura/ Fugir às armadilhas da mata escura/

Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
O que me faz sentir
Eu,
caçador de mim”
 
Tem um diálogo de Platão, conhecido como Sofista, no qual aparece a figura do sofista, com interesse para ensinar em troca de pagamento, assumindo o papel de caçador de jovens ricos e promissores (Cf. Sofista, 223b). Nele, é possível observar que de caçador, o sofista, passa a ser a presa principal para um outro tipo bem mais "desinteressado" de caçador, o filósofo, treinado na arte de parir ideias e na persuasão, a exemplo de Sócrates, procura o sofista para desembaraçar seus sofismas e destruir suas falsas aparências(Cf. Sofista, 235c).
Nesse contexto, o filósofo como caçador de tipo socrático procura com luta, esforço e coragem algo na realidade que se corresponda ao máximo com o que ele pensa. Seu esforço é procurar a verdade. Uma verdade que seja ética: viver o que pensa e pensar o que vive.
Repare o que diz o estrangeiro de Eléia no diálogo: "Estamos, meu caro amigo (Teeteto), realmente empenhados numa investigação muito difícil, pois a matéria de aparecer e parecer, mas não ser, e de dizer coisas, mas não verdadeiras - tudo isso é agora, como o foi sempre, motivo de muita perplexidade" (Sofista, 236e).

Jackislandy Meira de M. Silva, professor e filósofo.

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sábado, 14 de março de 2015

VERGONHA


Convivemos com tanta exposição hoje em dia que, ao escolhermos uma vida simples e cada vez menos exibicionista, a vergonha passa a ser o contraponto daqueles que agem correntemente de acordo com a “sociedade do espetáculo”, expressão cunhada por Guy Debord em obra de sua autoria. Por “sociedade do espetáculo” se entende uma vida pautada na exterioridade, segundo a qual as máscaras são colocadas e as cortinas abertas para o encantado show das pseudoindividualidades ou falsas individualidades nos mais variados lugares de convivência social; dos jantares de confraternização às passagens pelo mercado, lojas e shoppings. As ruas também são espaços onde desfilam as mais diversas formas de vida; daquelas mais superficiais às mais verdadeiras.
A grande praça a que somos convidados a frenquentar expõe tipos inusitados de representações. A impressão que se tem é que a sociedade é um enorme palco de representações. Por conta disso é que nos envergonhamos, sobretudo quando confrontamos o exterior com o nosso interior. Justamente aí nasce a indignação e a sensação de vergonha. “A vergonha é o sentimento daquele que, inadequado no cenário do espetáculo, ainda preserva o interior contra a lei da superfície e do uso da máscara que a todos encanta”(TIBURI, Márcia. Filosofia Prática: ética, vida cotidiana, vida virtual. Rio de Janeiro: Record, 2014, p. 146). Passamos a ver o exterior não mais como ele é, mas como ele poderia não ser. Tal sensação de estranhamento é a própria vergonha, porque é uma experiência que se estabelece com a verdade. Quando nos deparamos com a verdade significa que nos deparamos com a vergonha. Tiramos as máscaras e desencantamos as falsas individualidades.
Muitos não querem sentir vergonha. É um “direito”, mesmo preferindo permanecer oprimido pelo exterior e pela diminuição de liberdade. Um “direito” de não ter “direito”, na medida em que a vergonha é o efeito ou a consequência da liberdade. Nesse sentido a vergonha é praticamente inevitável. Geralmente nos envergonhamos de sentir vergonha, como se a vergonha não fosse própria da natureza humana. Assim o é com a angústia, a revolta, a indignação. A capacidade de se indignar ou de se envergonhar não deve ser uma vanglória da moral, mas um afeto de alguma coisa inadequada, de que algo realmente importa.
O sentimento de vergonha é sinal de que algo ainda importa. Importar-se é, a propósito, tantas vezes, o nome próprio da inadequação. Inadequado é quem, por um motivo ou outro, começou a pensar. 'Adequado' é, neste sentido, o sem-vergonha. Seria aquele que se entrega à prática abstratamente, aquela prática sem pensamento na qual o outro não é considerado”(idem, p. 147).
Dessa maneira, o fingimento, a mentira pela mentira, a informação pela informação e a exposição da intimidade em redes sociais são experiências insuportáveis para o inadequado que, movido pela vergonha, subverte o status quo de uma realidade conformada com seus vícios sociais e políticos, além disso, gera nele mesmo uma indignação muito pessoal e subjetiva de se perguntar, ressentir, inquietar-se.
Muito interessante perceber que a vergonha é um sentimento que acontece quando mais nos envolvemos com as demandas do mundo, onde quer que estejamos, ou em casa no quarto sozinho, no trabalho quando há ausência de profissionalismo ou nas ruas em manifestações ordeiras reclamando direitos sociais, preservação das instituições e da democracia, pedindo urgentemente reformas de ordem política e etc. Às vezes, basta uma notícia de violência, agressão ou mais uma de escândalos de corrupção política para nos envergonhar interiormente.
Portanto, o viés político estimulado pelo sentimento de vergonha é algo que não podemos perder, justo numa sociedade cada vez mais insensível aos exercícios de cidadania e participação democrática. Se não pelo ativismo, pela práxis, ao menos pelo sentimento de vergonha a política mexa conosco.

Prof. Jackislandy Meira de M. Silva, filósofo e teólogo
 


domingo, 22 de fevereiro de 2015

Locke (1632-1704), Da importância do governo para os indivíduos em sociedade

"Se o homem no estado de natureza é tão livre, conforme dissemos, se é senhor absoluto da sua própria pessoa e posses, igual ao maior e a ninguém sujeito, por que abrirá ele mão dessa liberdade, por que abandonará o seu império e sujeitar-se-á ao domínio e controle de qualquer outro poder? Ao que é óbvio responder que, embora no estado de natureza tenha tal direito, a fruição do mesmo é muito incerta e está constantemente exposta à invasão de terceiros porque, sendo todos reis tanto quanto ele, todo homem é igual a ele, e na maior parte pouco observadores da equidade e da justiça, a fruição da propriedade que possui nesse estado é muito insegura, muito arriscada. Estas circunstâncias obrigam-no a abandonar uma condição que, embora livre, está cheia de temores e perigos constantes; e não é sem razão que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com outros que estão já unidos, ou pretendem unir-se, para a mútua conservação da vida, da liberdade e dos bens a que chamo de 'propriedade'."

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro: Abril Cultural, 1978, cap. IX, p. 82 (Coleção "Os Pensadores").


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Filmaço: "LEVIATÃ"

Com características inspiradas na criatividade russa, "Leviatã" deve ser um filme interessante do ponto de vista filosófico porque explora a condição humana no mundo e lembra basicamente a obra de Thomas Hobbes. Programação para as férias. "Leviatã", filme inspirado também no livro de Jó. Daí sua relevante ênfase na condição humana. Vale a pena. Muito bom.

LAÇOS HUMANOS


Quase sempre somos flagrados de cabeças baixas com os dedos subindo e descendo pela tela de um tablet ou celular. O constrangimento é imediato, até porque devíamos nos cumprimentar ou nos relacionar com pessoas, ao invés de grudar os olhos em nossas máquinas. Lembro-me que uma vez, espantada, uma senhora bastante idosa me perguntou: "Jackis, por que as pessoas estão tão enfiadas com a cara nessas coisas?" Ao que respondi: "Estão conversando com outras pessoas, pesquisando, ouvindo música, assistindo vídeos ou fazendo qualquer outra coisa. Tentei justificar que esses aparelhos oferecem muitas opções". Fingindo ter entendido, a senhora fez um sinal negativo com a cabeça, e mudou de assunto.
Por incrível que pareça, ainda há muita gente que está fora desse processo de inclusão tecnológica, ou por que simplesmente não quer ou não tem oportunidades ou se sente mais feliz sem essas supermáquinas.
Dados do IBGE apontam que 130,8 milhões de pessoas de 10 anos ou mais de idade tinham telefone móvel celular para uso pessoal já em 2013.
Só pra termos uma ideia, segundo fonte da http://www1.folha.uol.com.br/…/1476690-numero-de-brasileiro…, o número de brasileiros que acessa a internet por telefone celular atingiu 52,5 milhões em 2013.
O impacto desses números nas relações humanas é muito forte, produzindo assim uma massa bem significativa de gente que está mudando o comportamento em função do virtual.
"Entrevistado a respeito da crescente popularidade do namoro pela Internet, em detrimento dos bares para solteiros e das seções especializadas dos jornais e revistas, um jovem de 28 anos da Universidade de Bath apontou uma vantagem decisiva da relação eletrônica: 'Sempre se pode apertar a tecla de deletar'" (BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. p. 13.).
Crianças, jovens, adultos e até mesmo idosos ostentam em suas redes sociais uma lista interminável de milhares de amigos, porém, esquecem que são relações virtuais, muito fáceis de entrar e sair, de serem desmanchadas. Num clique podemos bloquear ou desbloquear alguém, ao ponto de manipularmos as relações como se fossem um simples jogo. Quanta fragilidade! Apenas um clique pode nos deixar sem nem um amigo.
Laços humanos, não tão duradouros quanto antes, se desfazem rapidamente na liquidez de nossa modernidade, no dizer do sociólogo alemão Bauman. Para ele, as pessoas se comportam como se estivessem sobre uma fina camada de gelo. Se não passarem velozmente por ela correm o risco de afundarem no lago. Eis a ambivalência: segurança e liberdade.
Bauman afirma que a nova modalidade de amizade proposta pelo Facebook, por exemplo, é atrativa porque oferece para nós uma forma fácil de entrar e sair de uma relação em rede. Diferente da concepção de rede, os laços humanos geram infinitas discussões, sentimentos de culpa, mentiras, consequências traumáticas para serem possivelmente desfeitos.
Conectar e desconectar uma pessoa de sua vida virtual parece ser bem mais fácil, agora fazer e desfazer laços humanos nos moldes da vida real e de suas implicações é muito mais difícil.
O problema é que tem muita gente misturando uma relação em rede (forjando uma outra espécie de amizade) com a concepção de laços humanos, o tradicional modelo de amizade.

Jackislandy Meira de M. Silva. Professor, filósofo e teólogo.
www.umasreflexoes.blogspot.com.br / www.chegadootempo.blogspot.com.br

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Bom humor

De Kundera, mais bom humor.
"Ah, o bom humor! Você nunca leu Hegel? Claro que não. Você nem sabe quem ele é. Mas nosso professor que nos inventou me forçou a estudá-lo noutros tempos. Em sua reflexão sobre o cômico, Hegel disse que o verdadeiro humor é impensável sem o infinito bom humor, ouça bem, é o que ele diz com todas as letras: 'infinito bom humor'. Nada de zombaria, nada de sátira, nada de sarcasmo. Somente das alturas do infinito bom humor é que você pode observar abaixo de si a eterna tolice dos homens e rir dela." (in A festa da insignificância, p. 90).
"Como encontrar o bom humor?" (idem).

A beleza da insignificância

"(...) Queria lhe falar então Quaquelique. Meu grande amigo. Você não o conhece. Eu sei. Pois bem. Agora, a insignificância me aparece sob um ponto de vista totalmente diferente de então, sob uma luz mais forte, mais reveladora. A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre. Ela está presente mesmo ali onde ninguém quer vê-la: nos horrores, nas lutas sangrentas, nas piores desgraças. Isso exige muitas vezes coragem para reconhecê-la em condições tão dramáticas e para chamá-la pelo nome. Mas não se trata apenas de reconhecê-la, é preciso amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la. Aqui, neste parque, diante de nós, olhe, meu amigo, ela está presente com toda sua evidência, com toda sua inocência, com toda sua beleza. Sim, sua beleza. Como você mesmo disse: a animação perfeita... e completamente inútil, as crianças rindo... sem saber por quê, não é lindo? Respire, D'Ardelo, meu amigo, respire essa insignificância que nos cerca, ela é a chave da sabedoria, ela é a chave do bom humor..." (KUNDERA, Milan. A festa da insignificância. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 132).
Simplesmente maravilhoso. De uma graça e bom humor impecáveis. Um texto gostoso de ler.

Novo longa do Pequeno Príncipe

Trailer do novo longa de "O pequeno príncipe" é lançado, mas o filme chegará mesmo aos cinemas apenas em outubro de 2015. Segue o Trailer.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Walter Benjamim e a "Angelus Novus" de Klee


De Gershom Scholem, poema sobre a "Saudação do Angelus", escrito a partir do quadro de Paul Klee, "Angelus Novus" e que foi enviado para o filósofo Walter Benjamin no dia de seu aniversário em 15 de julho de 1921.
"Aqui da parede, nobre, / não pouso o olhar em ninguém, / venho do céu que vos cobre / sou homem-anjo do Além // No meu reino o homem é bom / mas não é nele seu aposto / recebo do Alto o dom / e não preciso de rosto // A região de onde vim / tem medida e luz sem fundo: / o que me faz ser assim / é prodígio do vosso mundo // Dentro de mim está a urbe / para onde Deus me mandou / o anjo com este selo / nunca ela o deslumbrou // Minha asa está pronta para o voo altivo: / se pudesse, voltaria / pois ainda que ficasse tempo vivo / pouca sorte teria // Os meus olhos são negros e fundos / e nunca se esvazia o meu olhar / sei muita coisa deste mundo / sei o que venho anunciar // Não sou simbólico nem trágico /significo o que sou, é tudo / em vão giras o anel mágico / pois em mim não há sentido". (in BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Trad. de João Barreto. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 14, [N.T.])

sábado, 6 de dezembro de 2014

Casa aberta





Mais do que em todos os dias e em grandes momentos do ano, as festividades natalinas e as ligadas ao Réveillon causam em nós uma sensação diferente. E o mais interessante é que não apenas representamos ou idealizamos estes eventos, mas os concretizamos, fazemos acontecer momentos de inteira generosidade, gratidão a Deus e às pessoas com as quais convivemos. Expressões de paz, amor, bondade, alegria e esperança nos conectam uns aos outros de uma forma tão objetiva que somos movidos para gestos de exuberância humana: Trocamos presentes; organizamos jantares beneficentes; sorteamos cestas natalinas; realizamos passeios ou viagens com quem amamos; abrimos a casa, etc. Sem contar as centenas de beijos e abraços muito comuns desta época do ano.
Essa sensação extremamente humana nos faz lembrar de como deve ser um lar. Não, às vezes, de como ele é, sujo, violento, insuportável, detestável, mas de como deveria ser, limpo, pacífico, agradável, seguro, acolhedor. A casa da gente precisa ser bem tratada, principalmente em tempos de festa, quando recebemos pessoas queridas que não víamos há anos. É preciso olhar mais para casa, onde as distâncias diminuem e tudo fica mais próximo. É exatamente o que acontece agora, no devido instante em que somos arrancados de nosso próprio mundo, de um mundo fechado, totalitário, racionalista, egoísta para nos relacionarmos com o que há para além de nós mesmos, alcançando assim uma abertura para a alteridade, uma abertura infinita.
Emmanuel Levinas, filósofo, leitor da Bíblia e de Dostoievski, entendia a casa como um ponto de referência, segundo a qual o eu vai em direção à exterioridade do mundo. “O papel privilegiado da casa não consiste em ser o fim da atividade humana, mas em ser a condição e, nesse sentido, o seu começo” (Totalidade e Infinito, p. 144). A casa que sou eu e a casa que é o mundo vivem agora uma conexão tão intensa a ponto de um querer humanizar o outro e vice-versa. “Simultaneamente fora e dentro, vai para fora a partir de uma intimidade. Por outro lado, a intimidade abre-se dentro de uma casa, que se situa nesse fora” (idem, p. 145).  
A ilustração da casa, sugerida por Levinas, para demonstrar a pertinência de nossas relações com os excluídos, com as minorias desfavorecidas, os pobres, a viúva, o órfão e o estrangeiro é cada vez mais significativa e atual. A recorrente imagem da “casa aberta”, neste período do ano, tal como deve ser em toda a vida, receptiva ao outro, é muito viva na música de Arnaldo Antunes, “a casa é sua”:
Não me falta cadeira/ Não me falta sofá /Só falta você/ sentada na sala/ Só falta você estar
Não me falta parede/ E nela uma porta pra você entrar/ Não me falta tapete/ Só falta o seu pé descalço pra pisar
Não me falta cama/ Só falta você deitar/ Não me falta o sol da manhã/ Só falta você acordar
Pras janelas se abrirem pra mim/ E o vento brincar no quintal/ Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal
A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio
Não me falta banheiro, quarto/ Abajur, sala de jantar/ Não me falta cozinha/ Só falta a campainha tocar
Não me falta cachorro/ Uivando só porque você não está/ Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar
Não me falta casa/ Só falta ela ser um lar/ Não me falta o tempo que passa/ Só não dá mais para tanto esperar
Para os pássaros voltarem a cantar/ E a nuvem desenhar um coração flechado/ Para o chão voltar a se deitar/ E a chuva batucar no telhado
Numa sociedade imensamente carente de referências, a casa cheia de gente, onde as famílias se encontram e se transformam a cada encontro, é a realização de qualquer Natal e passagem de ano para alguém, na medida em que simboliza recomeço, renovo, revitalização. Também é uma oportunidade de resgate das referências familiares, a partir das quais ressignificamos nosso mundo, nossa casa, nosso lugar no mundo e passamos a ser mais humanos com respeito, amor, tolerância, bondade, justiça e paz.
Enquanto escrevia esse texto, duas figuras clássicas da literatura não me saíam da cabeça, a do filho pródigo usada por Jesus Cristo e a de Ulisses usada por Homero. As duas falam desse regresso ao lar e, curiosamente, a casa estava aberta, no sentido de mostrar uma nova maneira de reaprender a ver o mundo.

Jackislandy Meira de M. Silva, professor, filósofo e teólogo.




domingo, 9 de novembro de 2014

Sociedade de Eu com outrem - linguagem e bondade.

É preciso inverter os termos. Para a tradição filosófica, os conflitos entre o Mesmo e o Outro resolvem-se pela teoria em que o Outro se reduz ao Mesmo ou, concretamente, pela comunidade do Estado em que sob o poder anônimo, ainda que inteligível, o Eu reencontra a guerra na opressão tirânica que sofre da parte da totalidade. A Ética, em que o Mesmo tem em conta o irredutível Outrem, dependeria da opinião. O esforço deste livro vai no sentido de captar no discurso uma relação não alérgica com a alteridade, descobrir nele o Desejo - onde o poder, por essência assassino do Outro, se torna, em face do Outro e "contra todo o bom senso", impossibilidade do assassínio, consideração do Outro na justiça. O nosso esforço consiste concretamente em manter, na comunidade anônima, a sociedade de Eu com outrem - linguagem e bondade. Esta relação não é pré-filosófica, porque não violenta o eu, não lhe é imposta brutalmente de fora, contra a sua vontade, ou com o seu desconhecimento como opinião; mais exatamente, é-lhe imposta, para além de toda a violência, de uma violência que o põe inteiramente em questão. A relação ética, oposta à filosofia primeira da identificação da liberdade e do poder, não é contra a verdade, dirige-se ao ser na sua exterioridade absoluta e cumpre a própria intenção que anima a caminhada para a verdade.

LEVINÁS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. 3ª ed. Portugal, Lisboa: Edições 70, 2008, p. 34

terça-feira, 4 de novembro de 2014

A caçada do filósofo



O costume de caçar nos acompanha desde que começamos a perceber o quanto precisamos da natureza para sobreviver. Os primeiros homens faziam da caça um meio racional de subsistência. Os índios ainda hoje, pelo que se sabe, retiram apenas o necessário da natureza para se alimentarem e se protegerem.
Com o passar do tempo, alguns povos e grupos cultivaram a caça como uma espécie de “hobby”, de entretenimento e também como exploração predatória à natureza. Além disso, muitos povos se tornavam hábeis caçadores porque ainda precisavam se defender de animais perigosos.
Todo mundo sabe que a caça é uma das principais causas de extinção de animais raros no meio ambiente. De alguns anos para cá, a legislação brasileira vem tomando medidas severas aos que infringem os rigores legais quanto a este tipo de atividade.
Porém, o que nos interessa aqui é a atitude do caçador. O faro aguçado de quem caça é semelhante ao faro do filósofo à procura de novos conceitos; outros problemas que estão ali, mas quase ninguém vê, escondidos.
O filósofo e o caçador têm em comum a gana da busca, da procura. São inúmeros os caçadores de antiguidades, tesouros, cidades perdidas. Arqueólogos e viajantes aventureiros se dedicam a isso. O filósofo, por sua vez, procura pessoas, ideias, definições, conceitos que, ao encontrá-los, não consegue satisfazer a sede de uma busca incessante, uma vez que sua busca continua mais viva e impetuosa do que nunca. O filósofo seria uma espécie de caçador do infinito ou como diria o poeta Milton Nascimento: “Nada a temer senão o correr da luta/ Nada a fazer senão esquecer o medo/ Abrir o peito a força, numa procura/ Fugir às armadilhas da mata escura/

Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
O que me faz sentir
Eu,
caçador de mim”
 
Tem um diálogo de Platão, conhecido como Sofista, no qual aparece a figura do sofista, com interesse para ensinar em troca de pagamento, assumindo o papel de caçador de jovens ricos e promissores (Cf. Sofista, 223b). Nele, é possível observar que de caçador, o sofista, passa a ser a presa principal para um outro tipo bem mais "desinteressado" de caçador, o filósofo, treinado na arte de parir ideias e na persuasão, a exemplo de Sócrates, procura o sofista para desembaraçar seus sofismas e destruir suas falsas aparências(Cf. Sofista, 235c).
Nesse contexto, o filósofo como caçador de tipo socrático procura com luta, esforço e coragem algo na realidade que se corresponda ao máximo com o que ele pensa. Seu esforço é procurar a verdade. Uma verdade que seja ética: viver o que pensa e pensar o que vive.
Repare o que diz o estrangeiro de Eléia no diálogo: "Estamos, meu caro amigo (Teeteto), realmente empenhados numa investigação muito difícil, pois a matéria de aparecer e parecer, mas não ser, e de dizer coisas, mas não verdadeiras - tudo isso é agora, como o foi sempre, motivo de muita perplexidade" (Sofista, 236e).

Jackislandy Meira de M. Silva, professor e filósofo.

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