(obra de arte de Salvador Dalí
– Metamorfose de Narciso - 1937)
Pasmem. Mas o estrangeiro acrescenta e muito ao nosso
“território” cultural, ao nosso eu cultural. Acrescenta em
diálogo, em conhecimento e em aprendizagem. Sem muito esforço,
conseguimos, logo de cara, perceber que se trata de alguém bastante
diferente de nós.
Nesse ponto, não há como não evocar e provocar Lévinas, filósofo
lituano, que nos diz algo mais ou menos assim: “Com o
estrangeiro nos permitimos sair do mesmo em direção ao outro”.
Se no pensamento de Lévinas é sempre o outro quem tem autonomia, o
que dizer então do estrangeiro?!
Na cultura greco-romana, o estrangeiro era, de certo modo,
repudiado, visto como inimigo, pronto para guerrear, sua presença
era uma ameaça ao poder estabelecido naquele território. O império
romano não tolerava os bárbaros, os excluía e os ameaçava a
qualquer custo. Os bárbaros não representavam nada para os que
detinham a hegemonia cultural. No entanto, cabe a pergunta: O que
representava o Império Romano para os bárbaros?
Seguindo uma direção contrária à expansão dominadora e
usurpadora do Império Romano, os cristãos são orientados por Jesus
a amar o estrangeiro, bem como a viúva e o órfão, de modo a
colocá-lo no centro do seu discurso, no episódio da cura dos dez
leprosos: “Não houve quem voltasse para dar glória a Deus,
senão este estrangeiro? E disse-lhe: Levanta-te e vai; a tua fé te
salvou”(Lc 17.18-19).
Mesmo sendo de outro mundo, falando uma língua diferente, de
aparência, às vezes, diferente, de costumes diferentes, de uma
visão de mundo estranhamente contrária à nossa, o estrangeiro cria
uma atmosfera inteiramente curiosa nos ambientes onde chega e com
quem conversa. Quem não lembra da chegada avassaladora do
Estrangeiro de Eléia no diálogo platônico Sofista em que
Sócrates parece ironizar com ele ao sentir-se bem à vontade no meio
deles?! A impressão que se tem é que o Estrangeiro causa um certo
“frisson” ao chegar no meio da conversa de Sócrates com seus
discípulos. Sem ser um deles, o estrangeiro se faz um deles!
Não sei se essa sensação hoje em dia estaria um pouco minimizada
devido ao grande processo de globalização por que passamos. Vivemos
tempos de uma enorme aproximação dos mundos, das distâncias e
etc. No entanto, não queremos abandonar nossos territórios,
nossas coisas, nossas ideias, nossos apegos... Apegamo-nos a nós
mesmos. Apegamo-nos muitíssimo às nossas vaidades pessoais. A
verdade é que, enquanto nos prendemos a nós mesmos e aos nossos
hábitos ao ponto de divinizá-los; um outro ser fascinante chama e
continua a chamar por nós pedindo relacionamento, querendo
aproximação e descoberta.
Ao revisitar um livro que guarda Grandes Indagações
Filosóficas, Café Philo, deparei-me mais uma vez com o texto
dialógico entre Paul Ricoeur e Jean Daniel sobre A estranheza
do estrangeiro que me impressionou bastante, sobretudo porque
trata o estrangeiro com fascinação, mas que poderia ser visto
também com aversão. Aproprio-me aqui de um aspecto da sua
fascinação, em que o estrangeiro, admite Paul Ricoeur, “é uma
espécie de lugar vazio. Sabemos a que pertencemos, mas não sabemos
quem são os outros em suas terras. Só por uma espécie de reação
é que nos sentimos nós mesmos estrangeiros, conforme o modelo da
estranheza do estrangeiro. A consciência disso é que nos põe num
caminho de reconhecimento mútuo, na via da hospitalidade em suas
dimensões morais e políticas, e permite assim tratar positivamente
a pluralidade humana como algo insuperável”(pág. 13).
Mais adiante, numa certa altura das
intervenções, Ricoeur reconhece ainda mais nossa condição humana
de sermos estrangeiros de nós mesmos. “Acreditamos saber
quem somos, ou mais exatamente acreditamos saber a que pertencemos,
ali onde estamos instalados: a uma classe, a uma família, a uma
nação etc. O estrangeiro é um desconhecido. Ao procurarmos num
dicionário a palavra 'estrangeiro', encontramos:
aquele que não é de nosso lugar, que é de outra nação, que é de
outro país; é, pois, um lugar vazio. É por isso que acho que
devemos começar por descobrir nossa própria estranheza nos
'desinstalando' de algum modo. Eu estava pensando um pouco na
proposição do Levítico: 'Fostes estrangeiros no Egito...' Se não
tivermos sido estrangeiros alhures, temos que descobrir
nosso Egito. Nossa 'estrangeireza' simbólica. Ser estrangeiro
simbolicamente”(pág. 16).
Reconhecer o estrangeiro na sua
singularidade especial, como o fez Jesus, o próprio Lévinas, bem
como Paul Ricoeur e Jean Daniel, significa superar a nós mesmos,
partir de nosso “status quo”, de nossa zona de conforto e
ir migrar, senão visitar ou até mesmo morar em outros mundos, em
outras pessoas, em outras experiências. Que se trave, portanto, uma
relação amistosa de hospitalidade com o outro, em que ambos se
recebam mutuamente, de modo que nada os impeça de ampliar ainda mais
suas diferenças culturais.
Prof. Jackislandy Meira de M. Silva
Bacharel em Teologia, Licenciado em
Filosofia e Especialista em Metafísica
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