Convivemos com tanta
exposição hoje em dia que, ao escolhermos uma vida simples e cada
vez menos exibicionista, a vergonha passa a ser o contraponto
daqueles que agem correntemente de acordo com a “sociedade do
espetáculo”, expressão cunhada por Guy Debord em obra de sua
autoria. Por “sociedade do espetáculo” se entende uma
vida pautada na exterioridade, segundo a qual as máscaras são
colocadas e as cortinas abertas para o encantado show das
pseudoindividualidades ou falsas individualidades nos mais variados
lugares de convivência social; dos jantares de confraternização às
passagens pelo mercado, lojas e shoppings. As ruas também são
espaços onde desfilam as mais diversas formas de vida; daquelas mais
superficiais às mais verdadeiras.
A grande praça a
que somos convidados a frenquentar expõe tipos inusitados de
representações. A impressão que se tem é que a sociedade é um
enorme palco de representações. Por conta disso é que nos
envergonhamos, sobretudo quando confrontamos o exterior com o nosso
interior. Justamente aí nasce a indignação e a sensação de
vergonha. “A vergonha é o sentimento daquele que, inadequado no
cenário do espetáculo, ainda preserva o interior contra a lei da
superfície e do uso da máscara que a todos encanta”(TIBURI,
Márcia. Filosofia Prática: ética, vida cotidiana, vida virtual.
Rio de Janeiro: Record, 2014, p. 146). Passamos a ver o exterior
não mais como ele é, mas como ele poderia não ser. Tal sensação
de estranhamento é a própria vergonha, porque é uma experiência
que se estabelece com a verdade. Quando nos deparamos com a verdade
significa que nos deparamos com a vergonha. Tiramos as máscaras e
desencantamos as falsas individualidades.
Muitos não querem
sentir vergonha. É um “direito”, mesmo preferindo permanecer
oprimido pelo exterior e pela diminuição de liberdade. Um “direito”
de não ter “direito”, na medida em que a vergonha é o efeito ou
a consequência da liberdade. Nesse sentido a vergonha é
praticamente inevitável. Geralmente nos envergonhamos de sentir
vergonha, como se a vergonha não fosse própria da natureza humana.
Assim o é com a angústia, a revolta, a indignação. A capacidade
de se indignar ou de se envergonhar não deve ser uma vanglória da
moral, mas um afeto de alguma coisa inadequada, de que algo realmente
importa.
“O
sentimento de vergonha é sinal de que algo ainda importa.
Importar-se é, a propósito, tantas vezes, o nome próprio da
inadequação. Inadequado é quem, por um motivo ou outro, começou a
pensar. 'Adequado' é, neste sentido, o sem-vergonha. Seria aquele
que se entrega à prática abstratamente, aquela prática sem
pensamento na qual o outro não é considerado”(idem, p. 147).
Dessa
maneira, o fingimento, a mentira pela mentira, a informação pela
informação e a exposição da intimidade em redes sociais são
experiências insuportáveis para o inadequado que, movido pela
vergonha, subverte o status quo
de uma realidade conformada com seus vícios sociais e políticos,
além disso, gera nele mesmo uma indignação muito pessoal e
subjetiva de se perguntar, ressentir, inquietar-se.
Muito
interessante perceber que a
vergonha é um sentimento que acontece quando mais nos envolvemos com
as demandas do mundo, onde quer que estejamos, ou em casa no quarto
sozinho, no trabalho quando
há ausência de profissionalismo
ou nas
ruas
em manifestações ordeiras reclamando direitos sociais, preservação
das instituições e da democracia, pedindo urgentemente reformas de
ordem política e etc.
Às vezes, basta uma notícia
de violência, agressão ou mais uma de escândalos de corrupção
política para nos envergonhar interiormente.
Portanto,
o viés político estimulado pelo sentimento de vergonha é algo que
não podemos perder, justo numa sociedade cada vez mais insensível
aos exercícios de cidadania e participação democrática. Se não
pelo ativismo, pela práxis, ao menos pelo sentimento de vergonha
a política mexa conosco.
Prof. Jackislandy Meira de M. Silva, filósofo e teólogo