sábado, 14 de março de 2015

VERGONHA


Convivemos com tanta exposição hoje em dia que, ao escolhermos uma vida simples e cada vez menos exibicionista, a vergonha passa a ser o contraponto daqueles que agem correntemente de acordo com a “sociedade do espetáculo”, expressão cunhada por Guy Debord em obra de sua autoria. Por “sociedade do espetáculo” se entende uma vida pautada na exterioridade, segundo a qual as máscaras são colocadas e as cortinas abertas para o encantado show das pseudoindividualidades ou falsas individualidades nos mais variados lugares de convivência social; dos jantares de confraternização às passagens pelo mercado, lojas e shoppings. As ruas também são espaços onde desfilam as mais diversas formas de vida; daquelas mais superficiais às mais verdadeiras.
A grande praça a que somos convidados a frenquentar expõe tipos inusitados de representações. A impressão que se tem é que a sociedade é um enorme palco de representações. Por conta disso é que nos envergonhamos, sobretudo quando confrontamos o exterior com o nosso interior. Justamente aí nasce a indignação e a sensação de vergonha. “A vergonha é o sentimento daquele que, inadequado no cenário do espetáculo, ainda preserva o interior contra a lei da superfície e do uso da máscara que a todos encanta”(TIBURI, Márcia. Filosofia Prática: ética, vida cotidiana, vida virtual. Rio de Janeiro: Record, 2014, p. 146). Passamos a ver o exterior não mais como ele é, mas como ele poderia não ser. Tal sensação de estranhamento é a própria vergonha, porque é uma experiência que se estabelece com a verdade. Quando nos deparamos com a verdade significa que nos deparamos com a vergonha. Tiramos as máscaras e desencantamos as falsas individualidades.
Muitos não querem sentir vergonha. É um “direito”, mesmo preferindo permanecer oprimido pelo exterior e pela diminuição de liberdade. Um “direito” de não ter “direito”, na medida em que a vergonha é o efeito ou a consequência da liberdade. Nesse sentido a vergonha é praticamente inevitável. Geralmente nos envergonhamos de sentir vergonha, como se a vergonha não fosse própria da natureza humana. Assim o é com a angústia, a revolta, a indignação. A capacidade de se indignar ou de se envergonhar não deve ser uma vanglória da moral, mas um afeto de alguma coisa inadequada, de que algo realmente importa.
O sentimento de vergonha é sinal de que algo ainda importa. Importar-se é, a propósito, tantas vezes, o nome próprio da inadequação. Inadequado é quem, por um motivo ou outro, começou a pensar. 'Adequado' é, neste sentido, o sem-vergonha. Seria aquele que se entrega à prática abstratamente, aquela prática sem pensamento na qual o outro não é considerado”(idem, p. 147).
Dessa maneira, o fingimento, a mentira pela mentira, a informação pela informação e a exposição da intimidade em redes sociais são experiências insuportáveis para o inadequado que, movido pela vergonha, subverte o status quo de uma realidade conformada com seus vícios sociais e políticos, além disso, gera nele mesmo uma indignação muito pessoal e subjetiva de se perguntar, ressentir, inquietar-se.
Muito interessante perceber que a vergonha é um sentimento que acontece quando mais nos envolvemos com as demandas do mundo, onde quer que estejamos, ou em casa no quarto sozinho, no trabalho quando há ausência de profissionalismo ou nas ruas em manifestações ordeiras reclamando direitos sociais, preservação das instituições e da democracia, pedindo urgentemente reformas de ordem política e etc. Às vezes, basta uma notícia de violência, agressão ou mais uma de escândalos de corrupção política para nos envergonhar interiormente.
Portanto, o viés político estimulado pelo sentimento de vergonha é algo que não podemos perder, justo numa sociedade cada vez mais insensível aos exercícios de cidadania e participação democrática. Se não pelo ativismo, pela práxis, ao menos pelo sentimento de vergonha a política mexa conosco.

Prof. Jackislandy Meira de M. Silva, filósofo e teólogo
 


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sábado, 14 de março de 2015

VERGONHA


Convivemos com tanta exposição hoje em dia que, ao escolhermos uma vida simples e cada vez menos exibicionista, a vergonha passa a ser o contraponto daqueles que agem correntemente de acordo com a “sociedade do espetáculo”, expressão cunhada por Guy Debord em obra de sua autoria. Por “sociedade do espetáculo” se entende uma vida pautada na exterioridade, segundo a qual as máscaras são colocadas e as cortinas abertas para o encantado show das pseudoindividualidades ou falsas individualidades nos mais variados lugares de convivência social; dos jantares de confraternização às passagens pelo mercado, lojas e shoppings. As ruas também são espaços onde desfilam as mais diversas formas de vida; daquelas mais superficiais às mais verdadeiras.
A grande praça a que somos convidados a frenquentar expõe tipos inusitados de representações. A impressão que se tem é que a sociedade é um enorme palco de representações. Por conta disso é que nos envergonhamos, sobretudo quando confrontamos o exterior com o nosso interior. Justamente aí nasce a indignação e a sensação de vergonha. “A vergonha é o sentimento daquele que, inadequado no cenário do espetáculo, ainda preserva o interior contra a lei da superfície e do uso da máscara que a todos encanta”(TIBURI, Márcia. Filosofia Prática: ética, vida cotidiana, vida virtual. Rio de Janeiro: Record, 2014, p. 146). Passamos a ver o exterior não mais como ele é, mas como ele poderia não ser. Tal sensação de estranhamento é a própria vergonha, porque é uma experiência que se estabelece com a verdade. Quando nos deparamos com a verdade significa que nos deparamos com a vergonha. Tiramos as máscaras e desencantamos as falsas individualidades.
Muitos não querem sentir vergonha. É um “direito”, mesmo preferindo permanecer oprimido pelo exterior e pela diminuição de liberdade. Um “direito” de não ter “direito”, na medida em que a vergonha é o efeito ou a consequência da liberdade. Nesse sentido a vergonha é praticamente inevitável. Geralmente nos envergonhamos de sentir vergonha, como se a vergonha não fosse própria da natureza humana. Assim o é com a angústia, a revolta, a indignação. A capacidade de se indignar ou de se envergonhar não deve ser uma vanglória da moral, mas um afeto de alguma coisa inadequada, de que algo realmente importa.
O sentimento de vergonha é sinal de que algo ainda importa. Importar-se é, a propósito, tantas vezes, o nome próprio da inadequação. Inadequado é quem, por um motivo ou outro, começou a pensar. 'Adequado' é, neste sentido, o sem-vergonha. Seria aquele que se entrega à prática abstratamente, aquela prática sem pensamento na qual o outro não é considerado”(idem, p. 147).
Dessa maneira, o fingimento, a mentira pela mentira, a informação pela informação e a exposição da intimidade em redes sociais são experiências insuportáveis para o inadequado que, movido pela vergonha, subverte o status quo de uma realidade conformada com seus vícios sociais e políticos, além disso, gera nele mesmo uma indignação muito pessoal e subjetiva de se perguntar, ressentir, inquietar-se.
Muito interessante perceber que a vergonha é um sentimento que acontece quando mais nos envolvemos com as demandas do mundo, onde quer que estejamos, ou em casa no quarto sozinho, no trabalho quando há ausência de profissionalismo ou nas ruas em manifestações ordeiras reclamando direitos sociais, preservação das instituições e da democracia, pedindo urgentemente reformas de ordem política e etc. Às vezes, basta uma notícia de violência, agressão ou mais uma de escândalos de corrupção política para nos envergonhar interiormente.
Portanto, o viés político estimulado pelo sentimento de vergonha é algo que não podemos perder, justo numa sociedade cada vez mais insensível aos exercícios de cidadania e participação democrática. Se não pelo ativismo, pela práxis, ao menos pelo sentimento de vergonha a política mexa conosco.

Prof. Jackislandy Meira de M. Silva, filósofo e teólogo
 


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