Os 100 anos de Nelson Rodrigues estão sendo celebrados por muita 
gente que o criticou em vida e hoje o glorifica. Tanto as depreciações 
quanto alguns louvores são descabidos - ele não era nem pornográfico nem
 um escritor aspirando à condição de estátua. Nelson adorava elogios, 
mas odiava os "medalhões".
NR é importante como inventor de linguagem. A importância de sua obra
 está onde ela parece 'não ter' importância. Onde ela é menos "profunda"
 - ali é que se encontra uma qualidade rara. Era fácil (e justo) 
considerar 'gênios' homens como Guimarães Rosa ou Graciliano, mas Nelson
 nunca coube nos pressupostos canônicos. Sua obra é um armazém, um 
botequim geral, uma quitanda de Brasil.
Formado nas delegacias sórdidas, vendo cadáveres de negros 'plásticos
 e ornamentais', metido no cotidiano marrom do jornal do pai, Nelson 
flagrou verdades imortais que estavam ali, no meio da rua, na nossa 
cara, e que ninguém via.
Uma vez ele me disse: "Se Deus perguntar para mim se eu fiz alguma 
coisa que preste na vida, eu responderei a Deus: 'Sim, Senhor, eu 
inventei o óbvio!'"
Filho do jornalismo policial, Nelson desconstruía o pedantismo tão comum entre nossos escritores.
Uma vez ele me disse ao telefone que o "problema da literatura 
nacional é que nenhum escritor sabe bater um escanteio": ensolarada 
imagem esportiva para definir literatos folgados. Até hoje, muita gente 
não entendeu que sua grandeza está justamente na observação dos detritos
 do cotidiano. A faxina que Nelson fez no teatro e depois na prosa é 
semelhante à que João Cabral fez na poesia. Nelson baniu as metáforas a 
pontapés "como ratazanas grávidas" e criou antimetáforas feitas de 
banalidades condensadas. "A poesia está nos fatos", como escreveu Oswald
 no 
Pau Brasil. Pois é, Nelson também odiava metáforas 
gosmentas. Suas imagens não aspiravam ao "sublime". Exemplos: "O 
torcedor rubro-negro sangra como um César apunhalado", "a mulher dava 
gargalhadas de bruxa de disco infantil", "seu ódio era tanto que ele 
dava arrancos de cachorro atropelado", "a bola seguia Didi com a 
fidelidade de uma cadelinha ao seu dono", "o juiz correu como um 
cavalinho de carrossel", "o sujeito vive roendo a própria solidão como 
uma rapadura", "somos uns Narcisos às avessas que cuspimos na própria 
imagem", "vivemos amarrados no pé da mesa bebendo água numa cuia de 
queijo Palmira", "hoje o brasileiro é inibido até para chupar um Chica 
Bon".
Visto por ele, tudo boiava no mistério: os ovos coloridos de 
botequim, as falas dos 'barnabés', as moscas de velório no nariz do 
morto. Nelson fazia a vida brasileira ficar universal, não por grandes 
gestos, mas pelo minimalismo suburbano que ele praticava. E o sublime 
aparecia na empada, na sardinha frita ou no torcedor desdentado.
Sua obra é um desfile de tipinhos anônimos, insignificantes - nisso 
aparecia sua grandeza desprezada. São prostitutas bondosas, cafajestes 
poéticos, canalhas reluzentes, vagabundos épicos, sobrenaturais de 
almeida, adúlteras heroicas e veados enforcados. Ele me dizia: "O que 
estraga a arte é a unidade..."
Ele dava lições de arte e literatura: "Enquanto o Fluminense foi 
perfeito, não fez gol nenhum. A partir do momento em que deixou de ser 
tão Flaubert, os gols começaram a jorrar aos borbotões, pois a 
obra-prima no futebol e na arte tem de ser imperfeita." Existe coisa 
mais 'contemporânea'?
Gilberto Freyre sacou sua "superficialidade profunda", assim como 
André Maurois entendeu que a genialidade de Proust era "a épica das 
irrelevâncias..." E isto é muito saudável, num país onde ninguém escreve
 um bilhete sem buscar a eternidade.
Nunca deixava a literatura prevalecer sobre a magia dos fatos. Sempre
 um detalhe inesperado caricaturava os dramas. No meio da tragédia, 
vinha a gíria; no suicídio - o guaraná com formicida; no assassinato - a
 navalhada no botequim; na viuvez - o egoísmo; nos enterros - a piada.
Uma vez, me contou que viu uma família esperando num hospital a 
notícia sobre um filho atropelado. Morreu ou não? Afligiam-se todos, 
vistos pelo Nelson através do vidro do corredor. Viu o médico chegar e 
dizer que o menino tinha morrido. "Eu vi pelo vidro. Não ouvi um som. A 
família começou a se contorcer em desespero. Pai, mãe, tios gritavam e, 
através do vidro, pareciam dançar. Pareciam dançar um mambo. Daí, eu 
concluí a verdade brutal: a grande dor dança mambo!..."
Nelson recusava teorias. Contou-me um episódio hilário: uma vez o 
Oduvaldo Viana Filho e Ruy Guerra, grandes artistas, chamaram-no para 
escrever um roteiro de filme sobre uma mulher adúltera. Nelson foi 
trabalhar com eles, mas desistiu e me disse: "Parei, porque eles queriam
 que a adúltera fosse para a cama do amante e traísse o marido movida 
apenas pelas 'relações de produção'...."
Ele intuiu na época que a vulgata do marxismo era o ópio dos 
intelectuais. Foi chamado de fascista porque puxava o saco do Médici, 
para ver se soltava o filho preso havia anos. Eu mesmo sofri por causa 
dele; em 1973 ousei filmar 
Toda Nudez Será Castigada e dei uma 
entrevista na Veja em que disse que "fascismo é amplo: existe fascista 
de direita e de esquerda também". Pra quê? Mandaram um manifesto à 
revista onde me esculhambavam indiretamente, dizendo que o sucesso 
imenso que o filme fazia "não era a missão do cinema novo". Foi das 
grandes dores que senti, pois até amigos assinaram o maldito texto, que 
só não foi publicado porque, um dia antes, os generais tiraram o filme 
de cartaz, com soldados de metralhadora, levando as cópias dos cinemas. 
Aí, meus amigos comunas tiraram o texto, "para não dar razão ao inimigo 
principal", que era a ditadura, a censura. (Eu e Nelson éramos inimigos 
secundários, para usar o termo de Mao Tsé-tung). O filme voltou ao 
cartaz porque ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim e os generais
 ficaram com medo da repercussão e liberaram a exibição.
Se fosse vivo, ao ver os escândalos atuais, repetiria a frase eterna: "Consciência social de brasileiro é medo da polícia."
 
E-mail: arnaldo.jabor@estadao.com.br
Estadão
O Globo
22/05/2012