Gabriel García Márquez já não voltará a escrever. Numa conferência
literária em Cartagena das Indias, Jayme, irmão mais novo do escritor,
contou à imprensa que García Márquez está bem de saúde, mas, aos 85
anos, perdeu a memória.
Cem Anos de Solidão marcou a minha adolescência e plantou em mim uma semente. Ainda lembro de uma invernal tarde de sábado, e eu, tendo retornado da biblioteca e buscado refúgio num sofá perto da janela, viajava para muito longe daquela nossa casa guiada pela narrativa de García Márquez.
Lá estava eu em Macondo, com Úrsula Buendía e sua fábrica de pirulitos – os galinhos e peixes açucarados que, duas vezes por dia, se espalhavam pela cidade, levando com eles a peste da insônia. As mil possibilidades criativas aninhadas em cada pequeno parágrafo, o modo como García Márquez dobrava e desdobrava a realidade ao seu gosto, fascinaram-me sem volta. Aquilo era o realismo mágico – mas, aos 14 anos, eu não sabia disso nem precisava saber...
O que contava era a viagem, era o autor levando o seu leitor para uma aventura por um mundo novo, um mundo de palavras construído no viés da realidade, uma terra de criaturas extraordinárias, humanas e fantásticas em igual medida. Acho que fiquei grudada naquele sofá até o dia seguinte, quando terminei de ler a saga dos Buendía. Acho que choveu muito naquele final de semana, acho que fazia frio... A memória da vida real apagou-se de mim, ficando apenas o livro de García Márquez tal e qual eu o li pela primeira vez.
E agora Gabo tem demência senil. Assim como o seu famoso patriarca em Cem Anos de Solidão, José Arcadio Buendía, García Márquez vem esquecendo nomes, fatos e lembranças. Não sei se usa do mesmo artifício que o seu varão, que marcou todas as coisas com o seu nome: bigorna, cadeira, copo, relógio, para assim manter a desmemória afastada de Macondo.
De tanto estudar as possibilidades do esquecimento, José Arcadio compreendeu que chegaria um dia em que, mesmo reconhecendo os nomes de cada coisa, eles haveriam de esquecer a sua utilidade. E então escreveu em cada coisa uma espécie de bula, tentando capturar a realidade na rede das palavras: esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs (...).
O inverso disso foi feito por García Márquez enquanto ele escreveu seus livros. Gabo criou as suas próprias, intrincadas e inesquecíveis realidades. As vacas de García Márquez podiam voar ou declamar poemas de Baudelaire, mas tudo o que faziam, inclusive dar leite, faziam-no de modo incrível.
Cem Anos de Solidão marcou a minha adolescência e plantou em mim uma semente. Ainda lembro de uma invernal tarde de sábado, e eu, tendo retornado da biblioteca e buscado refúgio num sofá perto da janela, viajava para muito longe daquela nossa casa guiada pela narrativa de García Márquez.
Lá estava eu em Macondo, com Úrsula Buendía e sua fábrica de pirulitos – os galinhos e peixes açucarados que, duas vezes por dia, se espalhavam pela cidade, levando com eles a peste da insônia. As mil possibilidades criativas aninhadas em cada pequeno parágrafo, o modo como García Márquez dobrava e desdobrava a realidade ao seu gosto, fascinaram-me sem volta. Aquilo era o realismo mágico – mas, aos 14 anos, eu não sabia disso nem precisava saber...
O que contava era a viagem, era o autor levando o seu leitor para uma aventura por um mundo novo, um mundo de palavras construído no viés da realidade, uma terra de criaturas extraordinárias, humanas e fantásticas em igual medida. Acho que fiquei grudada naquele sofá até o dia seguinte, quando terminei de ler a saga dos Buendía. Acho que choveu muito naquele final de semana, acho que fazia frio... A memória da vida real apagou-se de mim, ficando apenas o livro de García Márquez tal e qual eu o li pela primeira vez.
E agora Gabo tem demência senil. Assim como o seu famoso patriarca em Cem Anos de Solidão, José Arcadio Buendía, García Márquez vem esquecendo nomes, fatos e lembranças. Não sei se usa do mesmo artifício que o seu varão, que marcou todas as coisas com o seu nome: bigorna, cadeira, copo, relógio, para assim manter a desmemória afastada de Macondo.
De tanto estudar as possibilidades do esquecimento, José Arcadio compreendeu que chegaria um dia em que, mesmo reconhecendo os nomes de cada coisa, eles haveriam de esquecer a sua utilidade. E então escreveu em cada coisa uma espécie de bula, tentando capturar a realidade na rede das palavras: esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs (...).
O inverso disso foi feito por García Márquez enquanto ele escreveu seus livros. Gabo criou as suas próprias, intrincadas e inesquecíveis realidades. As vacas de García Márquez podiam voar ou declamar poemas de Baudelaire, mas tudo o que faziam, inclusive dar leite, faziam-no de modo incrível.
ZERO HORA
19/07/2012
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