O leitor sabe que meu pecado espiritual é o niilismo. Enfrento-o dia a
dia como qualquer moléstia incurável. O tema já foi tratado por gênios
como Nietzsche, Turguêniev, Dostoiévski, Cioran. Deixo meu leitor em
companhia desses gigantes, muito melhores do que eu.
A tragédia também me acompanha em todo café da manhã, essa concepção
grega de mundo que julgo a mais correta já pensada. Aqui tenho grandes
parceiros como o autor da tragédia ática Sófocles (entre outros), o
filósofo Nietzsche, o dramaturgo Shakespeare e os escritores
contemporâneos Albert Camus e Philip Roth.
Ambos, niilismo e tragédia, são visões de mundo que arruínam a vida.
Diante deles, ateísmo é para iniciantes. O ateísmo só é aceitável quando
blasé e sem associações de ateus
militantes. Para niilistas como eu, o ateísmo crente em si mesmo é brincadeira de meninas com fita cor-de-rosa amarrada na cabeça.
militantes. Para niilistas como eu, o ateísmo crente em si mesmo é brincadeira de meninas com fita cor-de-rosa amarrada na cabeça.
Ando de saco cheio do niilismo e da tragédia, apesar de continuar
experimentando-os todo dia. Em termos morais, a virtude máxima para
ambos é a coragem, e o vício mais a mão, a covardia.
Nos últimos tempos, tenho me interessado por outra virtude, a confiança,
essa, tão difícil quanto a coragem, uma vez tomada a alma pelo niilismo
e pela tragédia. É sobre ela que quero falar nesta segunda-feira, dia
normalmente difícil, acompanhado do "bode" do domingo e da monotonia do
dia a dia que recomeça imerso num sono que nunca descansa, porque sempre
atormentado pela dúvida com relação ao amor, à família, ao trabalho e à
viabilidade do futuro.
Meu maior pecado como escritor é jamais enganar, jamais querer agradar.
Essa é minha forma de prestar respeito a quem me lê semanalmente. O
caráter de alguém que escreve é medido pela ausência de desejo de
agradar a quem o lê.
Amar cães e confiar neles é mais fácil do que amar seres humanos e
confiar neles. Por isso, num mundo atormentado pela dúvida niilista,
ainda que em constante denegação dela, tanta gente se lança à defesa
melosa de cães e gatos e exige carne de frangos felizes na hora de comer
em restaurantes ridículos.
Quero propor a você duas obras. Um filme e um livro que julgo entre os maiores exemplos da arte a serviço da confiança na vida.
O filme "As Damas do Bois de Boulogne", do cineasta francês Robert
Bresson, de 1945, é uma pérola sobre a confiança na vida e nos laços
afetivos. Bresson é um cineasta muito marcado pelo pensamento do
escritor George Bernanos, grande anatomista da alma e especialista em
nossa natureza vaidosa, mentirosa e, por isso mesmo, desesperada. Coisa
para gente grande, rara hoje em dia, neste mundo governado por adultos
infantis.
O filme trata da vingança de uma mulher belíssima contra seu ex-amante
(que a abandonou), um homem frívolo e covarde por temperamento. Essa
vingança se constitui na aposta de que ele e a mulher que ela "contrata"
para sua vingança agirão do modo esperado. Sua intenção é fazer com que
seu ex-amante se apaixone por essa mulher "contratada", uma prostituta.
O homem é mantido na ignorância da vida pregressa de sua noiva até
depois do casamento. O que a mulher abandonada não contava é que a
prostituta se apaixonasse pelo covarde, levando-o a transformação
inesperada de caráter.
O amor também é personagem central da obra do dinamarquês Soren
Kierkegaard "As Obras do Amor", da Vozes. Esse livro é o texto mais belo
que conheço sobre o amor na filosofia ocidental.
Segundo nosso existencialista, o amor tudo crê, mas nunca se ilude
porque, assim como a desconfiança e o ceticismo, o amor sabe que o
conhecimento não é capaz de nada além do que fundamentar o niilismo, o
ceticismo e o desespero.
O amor é um afeto moral, não um ato da razão. A razão não justifica a
vida. O amor é uma escolha de investimento na vida, uma atitude, mesmo
que a razão prove a falta de sentido último de tudo.
Ingênuos são os niilistas e céticos que consideram a desconfiança um ato
livre da vontade. A desconfiança é uma escravidão. A aposta na vida é
que mostra o caráter maduro de mulheres e homens. Boa semana.
Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e
ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas
como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve
às segundas na versão impressa de "Ilustrada".
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