LÉVINAS, Emmanuel. De Deus que vem à ideia. 2ª ed. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes. 2008. p. 21-22.
Que a ideologia seja uma fonte de ilusões é uma visão ainda mais recente. Se for verdade o que diz Althusser, a ideologia exprime sempre a maneira pela qual a dependência da consciência relativamente às condições objetivas ou materiais que a determinam – e que a razão científica apreende em sua objetividade – é vivida por essa consciência. É preciso logo se perguntar se isso não nos ensina, ao mesmo tempo, certa excentricidade da consciência em relação à ordem controlada pela ciência – e a qual, sem dúvida, a ciência pertence – como uma luxação do sujeito, um espasmo, um “jogo” entre ele e o ser.
Se a ilusão é a modalidade desse jogo, nem por isso torna ilusório esse jogo, ou diferença, ou exílio ou “falta de pátria” ontológica da consciência. A diferença seria o simples efeito do inacabamento da ciência que, ao completar-se, roeria até à corda o sujeito, cuja vocação suprema estaria somente a serviço da verdade e que, tendo a ciência atingido seu fim, perderia sua razão de ser?
Contudo, a ciência não terá impedido que essa ideologia, agora inofensiva, continue a assegurar a permanência de uma vida subjetiva que vive de suas ilusões desmistificadas. Vida em que, sob o nariz da ciência, se comete loucuras, se come e se distrai, se tem ambições e gostos estéticos, se chora e se indigna, em que se esquece a certeza da morte e toda a física, a psicologia e a sociologia que, por trás da vida, comandam esta vida. A diferença entre o sujeito e a realidade, atestada pela ideologia, derivaria, assim, ou de uma realização sempre adiada ou do esquecimento sempre possível da ciência.
Mas essa diferença vem do sujeito? Vem de um ente preocupado com seu ser e perseverando no ser; vem de uma interioridade revestida de uma essência de personagem, de uma singularidade que se compraz na sua ex-ceção, preocupada com sua felicidade – ou com sua salvação – com suas dissimulações privadas no seio da universalidade do verdadeiro? Será que é o próprio sujeito que terá cavado um vazio como ideologia entre ele e o ser? Esse vazio não deriva de uma ruptura anterior às ilusões e às maquinações que o preenchem, não deriva de uma interrupção da essência, de um não-lugar, de uma “utopia”, de um puro intervalo da “epoché” aberto pelo desinteressamento? A ciência não teria tido ainda, nessa altura, nem sonhos consoladores a interromper, nem megalomania a reconduzir à razão; só teria encontrado aí a distância necessária à sua imparcialidade e objetividade. A ideologia teria sido, assim, o sintoma ou o sinal de um “não-lugar”, em que a objetividade da ciência se subtrai a toda parcialidade. Como decidir entre os termos da alternativa? Talvez um outro momento do espírito moderno sugerirá o sentido da opção a escolher, além de uma análise mais completa do desinteressamento.
Texto adaptado pelo Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva.
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