Vejo
você escrevendo em seu gabinete. Você mora num bairro de classe média
alta de São Paulo. Pessoa sofisticada, você tem aquele sentimento que os
outros são menos inteligentes do que você, sem deixar ninguém perceber
porque está treinado a fingir modéstia.
Agora,
imagine que você toma vinho, dá aulas e vê o olhar apaixonado das
alunas brilhando ou o olhar convertido dos alunos acreditando piamente
nos absurdos que você fala. Mas você fala apenas absurdos simpáticos à
sua própria vaidade ou à vaidade de quem ouve você. Quando ouvimos você
falar ou lemos o que você escreve, temos certeza de que você é “ético”.
A
razão para existir esses intelectuais “para um mundo melhor” é fazer o
mundo servir à vaidade deles e de quem se acha tão “ético” quanto eles. A ética é a baixa escolástica contemporânea: todo mundo fala, mas todos sabem que é “papo furado”. Dizer-se ético é “self-marketing”.
Você
viaja a Paris ou a destinos semelhantes e frequenta universidades,
galerias de arte, concertos de música erudita (desculpe, sei que a
palavra “erudita” trai meu preconceito contra músicas horrorosas “do
povo”). Você recebe inclusive financiamentos públicos para algumas
dessas viagens e para escrever livros. E, com isso, espalha pelo mundo
as ideias delirantes que tem em seu gabinete.
Basicamente,
essas ideias se caracterizam por não terem nada a ver com a realidade,
mas portam aquele tipo de aparência que encanta: você é a favor de um
mundo melhor e condena todo mundo que sabe que você mente.
Projetando
a imagem de um coração puro indignado com a injustiça no mundo, às
vezes você até esquece que, talvez, esteja processando alguém da família
por um quarto e sala na Praia Grande ou em Higienópolis. Ou que trama
contra inimigos ideológicos ou institucionais. Claro, este fato concreto
nada tem a ver com suas firmes ideias de que, se o mundo fosse como
você acha, todos seriam felizes e não seriam necessários Exércitos,
polícia, advogados, e, principalmente, pessoas que discordam de você.
As
guerras acabariam, porque, óbvio, elas existem desde sempre apenas
porque você ainda não tinha nascido no passado para iluminar a todos com
sua “boa nova”. Ou, quem sabe, conseguiria calar a todos que não
acreditam em você, aliás, como acontece normalmente com mimados e
vaidosos como você.
Sim, vi o filme “A Hora Mais Escura”, de Kathryn Bigelow.
Brilhante. Há muito que desconfio que o cinema americano depende de
cineastas mulheres para sobreviver à pobreza de espírito, pois grande
parte dos homens ficou covarde.
O
filme mostra tudo que existe para você e eu tomarmos vinho e viajarmos a
Paris sem sermos explodidos por aí. Quem acha que o filme louva os
“métodos” da CIA é porque não ainda atravessou aquela “linha de sombra”
da qual faz referência o escritor Joseph Conrad: a linha que separa a
infância da maturidade, ou, diria eu, que separa a vaidade da verdade.
O
filme trata de pessoas que vivem na escuridão e com as mãos sujas,
enquanto você posa de limpinho. Compare este filme com o “Munique”, de
Steven Spielberg. “Munique” narra um suposto plano para matar os
terroristas envolvidos na chacina dos atletas israelenses nas Olimpíadas
alemãs.
Spielberg é um dos cineastas frouxos dos quais esperamos que Bigelow nos salve.
Em
“Munique” o protagonista (líder do grupo) tem uma crise de consciência
ao final e abandona “o barco” da espionagem israelense, se refugiando em
Nova York. Muito típico de gente como você.
Compare
esse final com o final da protagonista de “A Hora Mais Escura” (a ruiva
deliciosa Jessica Chastain). Sozinha, “the girl” (como seus colegas da
CIA se referem a ela ao longo do filme) tem um avião só pra ela. O
piloto do avião militar diz: “Você deve ser importante para mandarem um
avião só pra você! Disseram para levar você para onde você quiser. Onde
você quer ir?”. Nossa deliciosa heroína não responde. Olha o vazio e
derrama duas lágrimas. Um rosto sem vaidade.
Um filme para gente grande que sabe que o vinho nosso de cada dia custa mais do que o preço que pagamos.
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