(imagem: Medéia de Paul Cézanne)
Eis aí a incapacidade que parece atormentar a todos; viver o
que se sabe certo. Mas o que seria o certo pra você? Longe de mim, aqui, querer
advogar o politicamente correto, no entanto cabe a todos uma tomada de
consciência a partir do ponto gerador de atitudes, de ação, de vida. Que princípios
seguimos para agir? Ou seguimos certos códigos de ética construídos por nós
mesmos ou vivemos involuntariamente, alheios a qualquer tipo de obediência e dever.
Segundo Kant, pensador do séc. XVIII, duas coisas
lhe causavam bastante espanto, como bem confessou o filósofo: “o céu estrelado
fora de mim e a lei moral dentro de mim”. Ele admitia uma verdade subjetiva que
possibilitava o indivíduo construir seus próprios valores e conceitos para
viver. Sendo assim, o clichê: “o que é certo pra mim não é certo pra você”
ganha, à luz da filosofia kantiana, um status aceitável e discutível é claro. A
partir disso, as sociedades com seus cidadãos tiveram a imensa liberdade para
construir seus sistemas, leis e constituições conforme as diferentes tradições,
crenças e valores.
Só que Kant e muitos de nós nos
esquecemos de combinar tudo isso com a nossa condição humana. Os indivíduos não
são programáticos nem pragmáticos, mas imprevisíveis e inconstantes, instáveis,
humanos. Há uma espada da condição humana que transpassa a nossa alma,
atravessando-nos totalmente. A nossa
humanidade não dá saltos, ela é o que é. Não somos nem bichos nem deuses, mas
humanos. Aí está uma verdade que demoramos para aceitar, tanto é que é preciso
muitas atrocidades acontecerem para que tomemos um choque de realidade.
O caso do padrasto e da mãe do garoto
Joaquim Ponte Marques que abalou o Brasil com contornos de crueldade ao mostrar
que a criança havia sido morta antes de ser jogada ao rio e de ser encontrada
depois de seis dias de desaparecida. Uma psicóloga ouviu o padrasto e percebeu
que ele tinha ciúmes da criança. As suspeitas de sua morte apontam o padrasto e
a mãe que estão presos. Vontades e os desejos mais perversos nos incapacitam de
viver conforme sabemos o que é certo. Essa é a tragédia humana. O que dizer do
fato do auditor fiscal Luís Alexandre Cardoso de Magalhães, no programa Fantástico
da Globo, de domingo 24/11, haver confessado publicamente que, entre jantar, hotel
e mulher, chegou a gastar R$ 8 mil, R$ 10 mil com dinheiro de corrupção. Alexandre é um dos quatro auditores fiscais suspeitos de participar de um
esquema de corrupção na prefeitura de São Paulo. É investigado por cobrar
propina de construtoras para que elas pagassem menos ISS, o Imposto Sobre
Serviço. A fraude pode chegar a R$ 500 milhões.
Vemos que os indivíduos são vítimas
impotentes de seus desejos de prevaricação, de opressão do outro e de trazer
danos sérios à administração pública. O impulso é o desejo ilimitado de “ter
mais”: mais poder, mais riqueza, mais reconhecimento social. As contradições e
males sociais provindos do ser humano entre o que é e o que deve ser são
marcantes, de tal modo que estão profundamente enraizados na alma individual
como dupla, dividida, dilacerada, fragmentada em seus múltiplos desejos.
Impossível não nos remetermos agora à
literatura clássica, sobretudo ao célebre monólogo de Medéia (1078 – 80) em que
emerge claramente uma nova compreensão de alma, de indivíduo, podendo ser
chamada de “trágica”, ou seja, “dilacerada”, dividida entre desejos e vontades.
Assim se expressou Eurípides em sua homônima tragédia: “um indivíduo incapaz de
viver conforme o que sabe ser certo”.
Tal é a nossa alma. Em constante
conflito entre o que se sabe e o que se faz. Tal é a condição humana,
arrastando-nos para a morte, para o amor e para experiência trágica da vida,
não menos trágica que as experiências de amor e morte. Portanto, fiquemos com o
espírito de indignação de Medéia na obra de Eurípides: “Que não me caiba em
sorte essa próspera vida de dor, nem essa felicidade, que dilacera o meu
espírito!”.
Prof.
Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Bel. em
Teologia, Licenciado em Filosofia/UERN, Esp. em Metafísica/UFRN e Esp. em
Estudos Clássicos UnB/Archai/Unesco.
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