segunda-feira, 10 de março de 2014

ACONTECIMENTO E RESISTÊNCIA por Sílvio Gallo

GALLO, Sílvio. 2007. Acontecimento e resistência: educação menor no cotidiano da escola. In: Ana M. Facciolli de Camargo e Márcio Mariguela (orgs.). Cotidiano escolar: emergência e invenção. Piracicaba: Jacintha Editores, pp.21-39.

COTIDIANO E ACONTECIMENTO (educação não-formal):
Como pensar o cotidiano da escola? Pensar tal temática nos lança na ordem do acontecimento. Podemos tomar o cotidiano da escola como o conjunto das coisas e situações que acontecem na sala de aula e para além da sala, na instituição escolar como um todo, e quero experimentar aqui a idéia de que os acontecimentos cotidianos em tal espaço dão pedagógicos. Em outras palavras, na escola não se aprende apenas na formalidade da sala de aula, mas também na informalidade das múltiplas relações e acontecimentos que se dão no dia-a-dia da vida na instituição. (Gallo 2007:21)
A emergência do cotidiano da escola, o acontecimento-cotidiano, é tudo aquiloque escapa de nosso planejamento, seja como professores, como gestores do processo educacional, como funcionários da instituiçao escolar, seja como pais. E a questão decisiva é: de que modo reagimos aos acontecimentos cotidianos? A resposta é de fundamental importância, pois esses acontecimentos são potencialmente situações formativas. (Gallo 2007:24)
GUATTARI:
(…) uma criança, sentada no fundo da classe, está de saco cheio e começa a jogar chicletes ou bolotas na cabeça dos outros. Diante dessa situação, geralmente o que fazemos é colocar a criança que está perturbando para fora da sala de aula, ou tentar fazer com que ela se manifeste o menos possível, ou ainda, se estivermos em sistemas mais sofisticados,encaminhá-la para um psicólogo. É muito raro nos perguntarmos se esse fato de singularidade não estaria dizendo respeito ao conjunto da classe. Nesse caso, teríamos que questionar nossa posição na situação e desconfiar que talvez as outras crianças também estivessem de saco cheio, só que sem manifestá-lo do mesmo modo. Em outras palavras, um ponto de singularidade pode ser orientado no sentido de uma estratificação que o anule completamente, mas pode também entrar numa micropolítica que fará dele um processo de singularização. (Guattari e Rolnik apud Gallo 2007:23)
EDUCAÇÃO MAIOR (macropolítica, estriamento, Estado):
Proponho tratarmos por educação maior aquelaproduzidano campo da macropolítica e dagestão, desenvolvida nos gabinetes, no Ministério da Educação, nas secretarias de educação de estados e municípios, traçando metas, planos, cronogramasde realização. É também aquela presente nas políticas públicas para educação. A educação maior traduz-se num esforço macropolítico de pensar, organizar, implementar e gerir os processoseducacionais como um grande sistema, determinando suasregras, suas metas, suas ações. (Gallo 2007:28)
EDUCAÇÃO MENOR (micropolítica, alisamento, cotidiano escolar):
Por educação menor sugiro tomarmos aquela desenvolvida pelos professores na solidão de sua sala de aula, para além de planos, políticas e determinações legais. É também aquela que acontece fora da sala de aula, nas relações e nos acontecimentos do cotidiano da instituição escolar. A educação menor, enfim, traduz-se num esforço micropolítico de criação e de produção cotidiana, em que professores e estudantes realizam os atos educativos, mas também nas microrrelações estabelecideas na isntituição escolar como um todo. (Gallo 2007:28)
A RELAÇÃO MAIOR-MENOR:
A educação maior, no campo da macropolítica, está necessariamente investida de relações de poder. A ela cabe gestar e gerir, controlar. Aquilo que Deleuze e Guattari chamaram, em Mil Platôs, de estriamento do espaço, isto é, a definição de regras, protocolos, formas de ação, que permitem controlar todo o processo. Não são outros o propósito e o efeito de ações como as dos Parâmetros e Diretrizes Curriculares, dos Planos Decenais de Educação, dos Projetos Político-Pedagógicos das escolas. Já no campo da micropolítica, a educação menor opera mais pelo alisamento do espaço, permitindo o livre fluxo da criação. É por isso que, embora não haja oposição entre educação maior e educação menor, não raro a educação menor constitui-se como espaço de resistência aos atos de educação maior. [...] A educação menor pode ser capturada pela educação maior e ser estratificada, estriada, engessada. Mas como vimos que o cotidiano opera na ordem do acontecimento, isto é, do inesperado e do inusitado, as fugas sempre acontecem e o estriamento nunca consegue ser total e absoluto. (Gallo 2007:28-9)
O ESTRIAMENTO DO COTIDIANO ESCOLAR:
Na esfera do cotidiano da escola, daquilo que propus chamar de educação menor, vemos a proliferação das diferenças. Agimos de modo análogo aos mecanismos racistas, quando classificamos essas diferenças, separando-as em campos distintos e organizando-as, a fim de controlá-las, sob o argumento de que, com isso, estaríamos incluindo, estamos “respeitando” os diferentes e seus direitos civis. Ao seguirmos, no terreno micropolítico daeducaçaõ menor, esses princípios construídos no âmbito macropolítico da educação maior, legitimamos um processo de estriamento e estratificação que permite controlar e mesmo “apagar”, neutralizar as diferenças. (Gallo 2007:38)
Os atos de educação maior, mesmo quando articulados a uma política progressista e de intenções transformadoras, são empreendimentos de estratificação, de normalização e de controle, que estriam os espaços do cotidiano, visando promover, no nível micropolítico, as ações e consequências previstas nso plano macropolítico. (Gallo 2007:38)
ABERTURA AO ACONTECIMENTO, RESISTÊNCIA À ESTRATIFICAÇÃO e CRIAÇÃO/CONSTRUÇÃO:
Abrir-se para as relações do cotidiano da escola, mergulhar nesses acontecimentos, agindo nesse cotidiano como vetor de transformação é possibilidade de resistir à exclusão e investir na construção da cidadania. (Gallo 2007:38)
Para resistir, é importante abrir-se ao acontecimento. Estar atento àquilo que ocorre no cotidiano da escola, a fim de potencializá-lo criativamente, e não ser tragado, engolido pelo acontecimento. Perder-se no acontecimento, não conseguindo produzir, é tão ruim quanto estratificá-lo, fazê-lo perder a potência, dominando os fluxos e reenquadrando as diferenças na norma. [...] Resistir e criar. Essas são as possibilidades que nos abre o cotidiano da escola, quando escolhemos agir no fluxo dos acontecimentos. (Gallo 2007:39)

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segunda-feira, 10 de março de 2014

ACONTECIMENTO E RESISTÊNCIA por Sílvio Gallo

GALLO, Sílvio. 2007. Acontecimento e resistência: educação menor no cotidiano da escola. In: Ana M. Facciolli de Camargo e Márcio Mariguela (orgs.). Cotidiano escolar: emergência e invenção. Piracicaba: Jacintha Editores, pp.21-39.

COTIDIANO E ACONTECIMENTO (educação não-formal):
Como pensar o cotidiano da escola? Pensar tal temática nos lança na ordem do acontecimento. Podemos tomar o cotidiano da escola como o conjunto das coisas e situações que acontecem na sala de aula e para além da sala, na instituição escolar como um todo, e quero experimentar aqui a idéia de que os acontecimentos cotidianos em tal espaço dão pedagógicos. Em outras palavras, na escola não se aprende apenas na formalidade da sala de aula, mas também na informalidade das múltiplas relações e acontecimentos que se dão no dia-a-dia da vida na instituição. (Gallo 2007:21)
A emergência do cotidiano da escola, o acontecimento-cotidiano, é tudo aquiloque escapa de nosso planejamento, seja como professores, como gestores do processo educacional, como funcionários da instituiçao escolar, seja como pais. E a questão decisiva é: de que modo reagimos aos acontecimentos cotidianos? A resposta é de fundamental importância, pois esses acontecimentos são potencialmente situações formativas. (Gallo 2007:24)
GUATTARI:
(…) uma criança, sentada no fundo da classe, está de saco cheio e começa a jogar chicletes ou bolotas na cabeça dos outros. Diante dessa situação, geralmente o que fazemos é colocar a criança que está perturbando para fora da sala de aula, ou tentar fazer com que ela se manifeste o menos possível, ou ainda, se estivermos em sistemas mais sofisticados,encaminhá-la para um psicólogo. É muito raro nos perguntarmos se esse fato de singularidade não estaria dizendo respeito ao conjunto da classe. Nesse caso, teríamos que questionar nossa posição na situação e desconfiar que talvez as outras crianças também estivessem de saco cheio, só que sem manifestá-lo do mesmo modo. Em outras palavras, um ponto de singularidade pode ser orientado no sentido de uma estratificação que o anule completamente, mas pode também entrar numa micropolítica que fará dele um processo de singularização. (Guattari e Rolnik apud Gallo 2007:23)
EDUCAÇÃO MAIOR (macropolítica, estriamento, Estado):
Proponho tratarmos por educação maior aquelaproduzidano campo da macropolítica e dagestão, desenvolvida nos gabinetes, no Ministério da Educação, nas secretarias de educação de estados e municípios, traçando metas, planos, cronogramasde realização. É também aquela presente nas políticas públicas para educação. A educação maior traduz-se num esforço macropolítico de pensar, organizar, implementar e gerir os processoseducacionais como um grande sistema, determinando suasregras, suas metas, suas ações. (Gallo 2007:28)
EDUCAÇÃO MENOR (micropolítica, alisamento, cotidiano escolar):
Por educação menor sugiro tomarmos aquela desenvolvida pelos professores na solidão de sua sala de aula, para além de planos, políticas e determinações legais. É também aquela que acontece fora da sala de aula, nas relações e nos acontecimentos do cotidiano da instituição escolar. A educação menor, enfim, traduz-se num esforço micropolítico de criação e de produção cotidiana, em que professores e estudantes realizam os atos educativos, mas também nas microrrelações estabelecideas na isntituição escolar como um todo. (Gallo 2007:28)
A RELAÇÃO MAIOR-MENOR:
A educação maior, no campo da macropolítica, está necessariamente investida de relações de poder. A ela cabe gestar e gerir, controlar. Aquilo que Deleuze e Guattari chamaram, em Mil Platôs, de estriamento do espaço, isto é, a definição de regras, protocolos, formas de ação, que permitem controlar todo o processo. Não são outros o propósito e o efeito de ações como as dos Parâmetros e Diretrizes Curriculares, dos Planos Decenais de Educação, dos Projetos Político-Pedagógicos das escolas. Já no campo da micropolítica, a educação menor opera mais pelo alisamento do espaço, permitindo o livre fluxo da criação. É por isso que, embora não haja oposição entre educação maior e educação menor, não raro a educação menor constitui-se como espaço de resistência aos atos de educação maior. [...] A educação menor pode ser capturada pela educação maior e ser estratificada, estriada, engessada. Mas como vimos que o cotidiano opera na ordem do acontecimento, isto é, do inesperado e do inusitado, as fugas sempre acontecem e o estriamento nunca consegue ser total e absoluto. (Gallo 2007:28-9)
O ESTRIAMENTO DO COTIDIANO ESCOLAR:
Na esfera do cotidiano da escola, daquilo que propus chamar de educação menor, vemos a proliferação das diferenças. Agimos de modo análogo aos mecanismos racistas, quando classificamos essas diferenças, separando-as em campos distintos e organizando-as, a fim de controlá-las, sob o argumento de que, com isso, estaríamos incluindo, estamos “respeitando” os diferentes e seus direitos civis. Ao seguirmos, no terreno micropolítico daeducaçaõ menor, esses princípios construídos no âmbito macropolítico da educação maior, legitimamos um processo de estriamento e estratificação que permite controlar e mesmo “apagar”, neutralizar as diferenças. (Gallo 2007:38)
Os atos de educação maior, mesmo quando articulados a uma política progressista e de intenções transformadoras, são empreendimentos de estratificação, de normalização e de controle, que estriam os espaços do cotidiano, visando promover, no nível micropolítico, as ações e consequências previstas nso plano macropolítico. (Gallo 2007:38)
ABERTURA AO ACONTECIMENTO, RESISTÊNCIA À ESTRATIFICAÇÃO e CRIAÇÃO/CONSTRUÇÃO:
Abrir-se para as relações do cotidiano da escola, mergulhar nesses acontecimentos, agindo nesse cotidiano como vetor de transformação é possibilidade de resistir à exclusão e investir na construção da cidadania. (Gallo 2007:38)
Para resistir, é importante abrir-se ao acontecimento. Estar atento àquilo que ocorre no cotidiano da escola, a fim de potencializá-lo criativamente, e não ser tragado, engolido pelo acontecimento. Perder-se no acontecimento, não conseguindo produzir, é tão ruim quanto estratificá-lo, fazê-lo perder a potência, dominando os fluxos e reenquadrando as diferenças na norma. [...] Resistir e criar. Essas são as possibilidades que nos abre o cotidiano da escola, quando escolhemos agir no fluxo dos acontecimentos. (Gallo 2007:39)

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