Não precisa ser
nenhum “expert”
em gestão pública para saber que governar uma cidade é, com
dúvidas, um desafio. Digo “com dúvidas” porque nem sempre se
entra numa prefeitura com tanto ímpeto assim. Se para alguns é um
desafio, e aí se percebe uma certa preocupação com a coletividade,
em fazer mais pelo bem comum, um bem que compete mais a todos do que
a uma
parte. Para outros, é uma ciranda de roda(brincadeira),
onde o centro das atenções está voltado
para o umbigo de quem administra e de suas ambições, relativamente
mesquinhas. E, para um
filósofo, como seria administrar? Tiraria o umbigo ou faria de conta
que ele não existe?
O umbigo aqui
representa interesses particulares, ambição
no seu mais alto grau. Na
época de Michel de Montaigne, por volta da segunda métade do séc.
XVI, administrar não era um ofício dos mais encantadores, mas esse
filósofo foi prefeito por duas vezes na cidade de Bordeaux, na
França. Ligado às campanhas militares entre os nobres,
não abria mão de escrever. Aceitou ser prefeito, mas com uma
condição, não abdicar de seus escritos
por hipótese alguma. Isso o fazia primeiro filósofo, depois
prefeito. Certamente,
herdeiro de algumas convicções da burguesia francesa, portou-se
muito mais como um aristocrata no poder do que como um democrata
populista
afeito aos camponeses e aos
pobres das províncias.
Ora, estamos no
contexto do avanço do humanismo racionalista, em
pleno Renascimento, com as roupas sujas da Idade Média. A política
ainda estava
se aperfeiçoando. Teorias políticas como as de Hobbes, Maquiavel,
Tocqueville,
Marx e outros ainda estavam em germe.
Montaigne se destacou justamente por desafiar, com
suas dúvidas pertinentes, um humanismo dogmático que pretendia
imputar ao homem um poder ilimitado e
centralizador. Como bom renascentista, Montaigne cultivou bom humor,
imaginação, e um determinado tipo de realismo ao discutir questões
do cotidiano humano.
Porém, o que marca
talvez o seu humanismo, embora cético e limitado, é a humildade,
pois coloca o homem como um grão de areia comparado às infinitas
espécies de seres que existem sobre a terra. Via o homem em relação
aos outros animais, não mais nem menos do que eles, a
não ser pela filosofia e pela religião.
É possível encontrar inúmeras referências de animais nos
“Ensaios”
de Montaigne, algumas até com uma preciosidade em
detalhes, o que endossa a tese de que não somos seres tão perfeitos
assim, uma vez que somos falhos e passíveis a cometer tolices,
sobretudo na esfera pública(Cf.
Ghiraldelli Jr. A Aventura da Filosofia. Vol 1. São Paulo: Manole,
2010, p. 103-113).
É óbvio que não
tenho a pretensão de colocar Montaigne como um prefeito de
referência para o universo dos prefeitos de hoje. As
cidades estão cheias de problemas de urbanização; não
são mais províncias, pelo menos no estilo de vida; poluição;
desemprego; superpopulação; transportes públicos sucateados;
estradas e rodovias esburacadas.
A industrialização chegou, a tecnologia também; a servidão
diminuiu com o ganho de liberdade; a democracia abriu as portas à
participação popular no poder central; as guerras militares
praticamente diminuíram, o terror surgiu como a maior das armas de
guerra, depois da bomba atômica. O capitalismo transformou o
trabalho feudal de sobrevivência humana em trabalho industrial que
visa concorrência,
exploração
e acúmulo de bens(riqueza).
Com isso, não pensem
que Montaigne foi superado. Não. Montaigne apenas foi modificado. O
homem se transformou desde Montaigne até aqui e continua a se
transformar. O fato é que problemas como a corrupção que já
existia na época de Montaigne estão mais visíveis. A história não
mente quanto à burguesia absolutista
na França nesse período e
logo
depois o clima de
insatisfação popular que eclodiu com uma tremenda revolução em
1789, fazendo
surgir a tão sonhada República e a emancipação dos direitos
humanos.
Todavia, algo de
Michel de Montaigne os prefeitos deviam herdar, a sua humildade
e o seu zelo para com a coisa pública.
Diferentemente de Luís XIV que reinou a França de 1643 a 1715 e que
ficou conhecido pela frase: “C'était c'est moi” - “O estado
sou eu”, Montaigne advertia em seus
“Ensaios”
que em cada cidade devia haver um lugar onde as pessoas pudessem ir
até lá a fim de resolver seus problemas e
satisfazer suas necessidades,
este lugar era a prefeitura, imagino eu, de modo a abrigar
os que não tem casa, salários, roupas e comida. Este era um
conselho de seu pai que preenche as lacunas de uma administração,
lamenta Montaigne por não ter seguido tal conselho a
risca. Já naquela época, o
pai de Montaigne orientava o filho que para administrar uma casa era
necessário registrar as transações financeiras, inscrever as
contas, exigir que o secretário anote todas as informações num
diário, enfim...(Cf.
MONTAIGNE. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1972, p. 113-114).
Além
do mais, ser prefeito do quilate de Montaigne significa admitir
erros, incoerências e
duvidar das certezas. Jamais pensou que governava sozinho, muito
menos para um grupo. Ele governava com humildade e com muita
naturalidade. Sua responsabilidade com as dívidas era de
impressionar, basta conferir o que diz acerca das orientações do
pai em relação às contas da família, avalie então o que seu pai
não diria a respeito das contas públicas!
Cidadão,
como estão as contas de seu município?
Prof. Jackislandy Meira de M. Silva
Especialista em Metafísica,
Licenciado em Filosofia, Bacharel em Teologia
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