“Quem
for capaz de ter uma visão do conjunto é dialético; quem
não o for, não é”(Platão, República, 537c).
“O
ensaio pensa em fragmentos”(Adorno, O ensaio como forma).
À primeira vista, a palavra “ensaio” pode soar a algo que não
tem validade, não tem importância, a exemplo de um ensaio para um
show, para uma música, para uma peça. Qualquer ensaio está
relativamente condicionado ao que não é, pelo menos ainda.
Popularmente a palavra ensaio aparece muitas vezes carregado desse
sentido, o que não nos impede de ir mais longe ou de ir até
Montaigne para mostrar a pertinência de um ensaio filosófico. O
estilo ensaístico persegue todo aquele que se arrisca a escrever
livremente sobre um determinado aspecto da realidade, embarcando na
aventura de trazer para si e sobre si quaisquer pensamentos, como que
recortando, fragmentando a realidade para si.
Já no século passado, ninguém talvez soube dizer tão bem quanto
Foucault o que é um ensaio. “O ensaio – que é necessário
entender como experiênica modificadora de si no jogo da verdade, e
não como apropriação simplificadora de outrem para fins de
comunicação – é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela
for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma 'ascese', um exercício
de si, no pensamento”(FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade.
Vol 2. O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1984. p. 13).
Fiz uso da citação acima
para mostrar o quanto a palavra “ensaio” está banalizada, bem
como a Filosofia e demais áreas de saberes. Isso se deve ao fato de
conspirarmos a favor de uma cultura da fragmentação que nos envolve
a todos e que nos fez perder a noção de totalidade, de metafísica, de
conjunto, de complexidade. Vivemos e, diga-se de passagem, gostamos
do que é simplório e vulgar. Gostamos e aplaudimos as vulgaridades.
Ostentamos um mundo de vulgaridades na linguagem, no estilo
literário, na política, nos saberes. Vivemos, agora, exaltando as
mais frívolas atitudes de simplificação do olhar. Os objetos de
estudo são analisados periférica e superficialmente sem nenhuma
dosagem sequer de Filosofia.
A atividade filosófica não pode
ser, é claro, um jogo puramente exclusivo da profundidade e da
obscuridade das ideias que não chegam ao público e que permanecem
apenas dentro das academias como propriedade exclusiva dos
“intelectuais”, todavia, a filosofia é uma reflexão sobre os
saberes disponíveis, uma espécie de ensaio sobre a vida. Não sem
convicção, Comte-Sponville despertou para o seguinte: “Não
podemos, sem filosofar, pensar nossa vida e viver nosso pensamento:
já que isso é a própria filosofia”(COMTE-SPONVILLE, André.
Apresentação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.
12).
O estilo de se escrever em forma de
“ensaios” levou o filósofo renascentista Michel de Montaigne a
píncaros altíssimos de análise da vida em diferentes aspectos. Ele
captura particularidades variadas da sua realidade e de outros
autores num tom incrivelmente reflexivo e individual que lhe é muito
peculiar. O “Da Educação das crianças” que lhe coube um ensaio
à parte. Diz ele: “Tudo se submeterá ao exame da
criança e nada se lhe enfiará na cabeça por simples autoridade e
crédito. Que nenhum princípio, de Aristóteles, dos estóicos ou
dos epicuristas, seja seu princípio. Apresentem-se-lhe todos em sua
diversidade e que ele escolha se puder. E se não o puder fique na
dúvida, pois só os loucos têm certeza absoluta em sua
opinião”(MONTAIGNE, M. Ensaios. São Paulo: Ed. Abril, 1972, p.
81-82). Aqui, ele admite
opiniões duvidosas na educação das crianças a fim de atingir a
maturidade filosófica, até porque as crianças não são dotadas só
de razão, mas de imaginação, de vida, de sentidos e etc. Não é
só a ciência, tampouco a dialética, que constituem uma boa
educação. A filosofia é um ensaio que extrapola toda e qualquer
tentativa de sistematização do saber, por isso ser importante para
a educação das crianças. Com o ensaio, admite-se e estimula a
dúvida; desperta na criança o hábito da reflexão. Vejam mais o
que Montaigne nos diz sobre “os meios e os fins”, “Da
tristeza”, “Da covardia”, “Do medo”, “De como filosofar é
aprender a morrer”, “a força da imaginação”, “De como
julgar a morte”, enfim...
Os ensaios filosóficos ou
literários são reflexões muito pessoais por cima, por baixo, por
dentro e pelos lados da realidade. É levar o texto a suportar, ao
máximo, a fragmentação e amplidão das opiniões, das ideias. São
textos fragmentados, mas que não se diluem, nem se perdem no
obscurantismo das ideias filosóficas, mas ganham toda uma
consistência pelo conjunto da obra. O saudoso escritor e filósofo
paraense Benedito Nunes, por exemplo, ganhou um prêmio pela Academia
brasileira de Letras pelo conjunto da obra. Escreveu muitos ensaios
filosóficos em sua vida. Reuniu todos e vejam o que deu, uma
harmonia maravilhosa entre literatura e filosofia. Maravilhoso! O
ensaio ganha consistência também porque é escrito, muitas vezes,
por quem realmente conhece a vida e suas dificuldades. O escrever do
ensaísta é um escrever com autoridade de quem diz o que viveu. O
reflexo de sua tinta é a sombra de sua vida, isso é muito
importante num ensaio.
Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Especialista em Metafísica, Licenciado em Filosofia, Bacharel em
Teologia
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