Composição de ilustrações de Justin Harris
Dias
atrás entrei na catedral de Santiago do Chile. Minha mulher, discípula
de Guimarães Rosa, para quem “quanto mais religião melhor”, adora todo e
qualquer santo. Eu, mais miserável nesse assunto, apesar de não
religioso, sou facilmente capturado pelo aspecto estético e sublime de
templos sagrados. Foi um prazer ver e ouvir aquela missa “en chileno”.
A
catedral silenciosa, discreta e com pouca luz, com sua altura
gigantesca, nos ajudava a lembrar nosso lugar no mundo -que não me
venham os inteligentinhos fazer o blá-blá-blá da crítica à religião,
porque a conheço desde o jardim da infância.
Sentir-se
“em seu justo lugar no mundo” é parte clássica de toda boa
espiritualidade, contra esse narcisismo dos “direitos do Eu total” de
hoje, essa coisa “ninja brega”. Este “justo lugar no mundo” é parte
daquilo que o historiador das religiões Mircea Eliade chama de perceber
que não somos o “axis mundi” (o eixo do mundo). Toda verdadeira
espiritualidade deve nos ajudar a vivenciar este “descentramento” de
nosso próprio valor.
O
mistério me encanta e me faz sentir menos banal. A sensação da
banalidade de tudo me esmaga continuamente. Sou um peregrino da falta de
sentido. Uma testemunha da noite escura da alma de San Juan de la Cruz e
Terrence Malick. Não levo a sério ateus militantes que ainda acham que
ateísmo é “evolução espiritual”. Para mim, ateísmo é, apenas, o modo
mais óbvio de ser e um estágio elementar em filosofia.
Fiquei
ateu com oito anos. Alguém poderia dizer que com os anos me tornei um
ateu encantado pelo “personagem” Deus e pela possibilidade de existir o
perdão no mundo, justamente porque, no fundo, não o merecemos. Sou cego,
mas pressinto o espaço à minha volta.
O
padre em sua homilia falava da alegria da vida. O papa Francisco quando
cá esteve tocou neste tema, falando da “religião da alegria”. Não se
trata de autoajuda, como pode parecer aos desinformados, mas da mais
fina teologia moral cristã (e judaica também). O que é essa alegria?
Vejamos.
A
vida é precária. A pobreza (material, espiritual, psicológica) é como a
gravidade, na hora em que relaxamos, ela nos consome. É uma questão de
tempo. Nosso caminho é “para baixo”. Não é à toa que tomamos
antidepressivos o tempo todo, cada um se vira como pode. A solidariedade
na melancolia devia nos unir a todos. O que não perdoo na autoajuda é
que ela mente para nosso justo desespero dizendo que ele é mera questão
de incompetência.
É
aqui que começa a consistência da teologia da alegria a qual se refere o
papa Francisco: temos todas as razões “materiais” do mundo para sermos
tristes, o milagre é não sermos tristes todo o tempo.
Confiar
na vida é quase impossível. A fé na vida é um mistério e um dom. Muito
mais caro do que a inteligência e a cultura — não as desprezo, porque
inclusive elas são quase tudo que tenho. Este é o sentido de fé como
“estar acompanhando” em sua encíclica “A Luz da Fé”.
A
alegria da qual falava o padre chileno e o papa Francisco é a “alegria
teologal”, aquela que nasce das três virtudes teologais básicas: a
esperança, a fé e a caridade (o amor).
Ter esperança, crer na vida e amar são experiências que separam a infância espiritual da maturidade d’alma.
O desespero é o caminho mais curto entre dois momentos na vida. A
esperança é que é o milagre para quem enxerga o mundo como ele é. Por
isso, toda literatura espiritual séria começa pelo vale das sombras.
Dizer
que uma virtude é teologal é dizer que ela é fruto da graça de Deus,
não uma dedução a partir dos fatos do mundo. Dos fatos, apenas deduzimos
o desespero. Mas, por isso mesmo, esta alegria, quando nos visita, tem o
hálito divino, por sua própria quase total impossibilidade de ser, para
quem reconhece o vale das sombras à nossa volta. Na mística, esta
alegria pode nos levar às lágrimas. Este é o conhecido “dom das
lágrimas”, marca de quem vê a beleza do mundo em meio ao véu absoluto do
desespero.
Nada a ver com religião como muleta, mas sim com uma espiritualidade de quem caminha só, eternamente, entre sombras.
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