(foto de meus arquivos pessoais:
zoológico de Brasília, DF)
Não sei se li bem a peça de
Eugène Ionesco, intitulada “O rinoceronte”, de 1960, na qual é possível ver,
numa crescente dramática, os indivíduos de uma cidade se transformarem em animais
porque não conseguem deixar de ser os mesmos, isto é, levados pela obsessão de se
tornarem iguais uns aos outros, acabam se metamorfoseando em rinocerontes.
O fato, considerado absurdo,
nos chama a atenção para elementos banais, usuais, uniformes e habituais da
sociedade, conforme os quais, é urgente capturar senão o insólito ou a
insignificância da existência. De todas as personagens, a única que resiste ao
habitual, ao que chamo aqui de síndrome da “rinoceronite” naquela cidade, é
Bérenger; mesmo assim, tem que conviver com sua solidão ao ponto de debater-se
consigo mesmo, duvidando da sua identidade e achando que o monstro é ele, e não
os outros.
Além
de ser bastante divertida, a peça consegue nos fazer pensar quem realmente
somos e por que precisamos entender nossas diferenças para lutar contra a uniformidade.
De tão incomum e inabitual, a mutação de pessoas em rinocerontes destoa
simbolicamente como evento pontual em toda peça para uma tomada de reflexão:
fingimos quem somos e nos tornamos em rinocerontes ou assumimos nossa condição
humana e permanecemos homens?
A
sensação que há, ao aproximarmos a sociedade povoada de rinocerontes com a
nossa, é que estamos criando cidadãos ainda mais conformados; incapazes de
expressar sua indignação, impotentes frente às estruturas de poder, reféns de
um modelo de comportamento padrão, segundo o qual a mediocridade é o que
predomina. Parece que ser diferente ou fazer a diferença nesse país é proibido
e acarreta problemas.
Em
geral, as pessoas não gostam de quem faz a diferença e, com isso, contribuem
para a transformação do humano em rinocerontes, aumentando o número daqueles
que sofrem com a síndrome da “rinoceronite”. Há sempre os que colaboram com a
corrupção política e cedem a inúmeras espécies de suborno, tornando-se iguais
aos demais. A resistência a este modelo distorcido de comportamento é algo
muito raro, talvez pela forte tentação às facilidades, pelas ilusões de
satisfação material ou até por causa dos medos de enfrentar a própria
realidade.
Engraçado,
mas, ao menos em dois momentos que aparecem rapidamente o rinoceronte pela
cidade, a reação de Bérenger é diferente da dos outros personagens envolvidos
na peça, visto que no exato instante que aparece o exótico animal, também
aparece Daisy e arrebata completamente a atenção de Bérenger. Enquanto todos se
admiram com a presença avassaladora do bicho, somente Bérenger é envolvido pelo
seu desejo particular: “Oh, Daisy!”
Embora
tomado de amor por Daisy, sentindo-se livre de seus complexos, ainda assim
Bérenger não consegue ficar indiferente ao chocante acontecimento da cidade,
onde pessoas amigas e queridas estão deixando de ser humanas e passando a
animais. Surpreso com o avanço da “síndrome”, Bérenger desabafa: “Eu me sinto
solidário com tudo o que acontece. Eu participo... Não consigo ficar indiferente.”
Muito
me impressiona o que Bérenger acaba de afirmar, pois parece soar como uma
explicação razoável, segundo a qual apenas ele não tenha se transformado em
rinoceronte. O lógico, os clássicos, os aparentemente bons, as autoridades,
gente próxima e distante, rica e pobre, importantes ou não, todos estão se
deformando. As pessoas, nas quais ele mais confiava, cederam, sucumbiram!
No final da trama, a atmosfera ganha
ares de desolação, indignação e dúvida pelas expressões de Bérenger, pondo em
crise sua própria condição humana: “(vendo-se pelo espelho) Um homem não
é feio; não é feio, um homem! (passando a mão pelo rosto) Que coisa gozada! Com
que é que eu me pareço, então? Com quê?... Infelizmente, eu sou um monstro, sou um monstro. Infelizmente, nunca serei rinoceronte, nunca, nunca! Nunca mais poderei mudar. Gostaria muito, gostaria tanto, mas já não posso. Não quero nem olhar para a minha cara. Tenho vergonha! (vira as costas ao espelho) Como eu sou feio! Infeliz daquele que quer conservar a sua originalidade! (Tem um sobressalto brusco) Muito bem! Tanto pior! Eu me defenderei contra todo o mundo! Minha carabina, minha carabina! (Volta-se de frente para a parede do fundo onde estão as cabeças dos rinocerontes, sempre gritando) Contra todo o mundo, eu me defenderei! Eu me defenderei contra todo o mundo! Sou o último homem, hei de sê-lo até ao fim! Não me rendo!"
Prof.
Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Licenciado
em Filosofia, Bacharel em Teologia, Especialista em Metafísica e Pós-graduando
em Estudos Clássicos pela UnB/Archai/Unesco
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