É possível um mundo melhor?
Sim e não. Sim, é possível um mundo melhor a começar por melhores
remédios, casas, escolas, hospitais, aviões, democracia (ainda acredito
nela, apesar de ficar de bode às vezes).
Não,
não é possível um mundo melhor porque algumas coisas não mudam, como o
caráter humano, suas mentiras e vaidades, sua violência, mesmo que
travestida de civilidade, nossas inseguranças, nossa miséria física e
mental, nossa hipocrisia. Nossas ambivalências sem cura. Os valores são
incomensuráveis. Você até pode achar que na vida vale mais a pena “ser”
do que “ter”, mas isso pode ser apenas um modo infantil de ver as
coisas: não há “ser” sem o “ter” que sustenta tudo.
A
famosa frase “que vão os anéis e fiquem os dedos” às vezes mais parece
ser bem o contrário, “que vão dedos e fiquem os anéis”, porque os
diamantes são eternos, e os dedos, não. Resumindo: mesmo a tecnologia e a
ciência, grandes fatores positivos, podem ser elas mesmas terríveis.
Não é outro o sentido de se perguntar “como educar depois de
Auschwitz?”, como se pergunta o filósofo Theodor Adorno. Mesmo a
democracia pode virar coisa de “black blocs” ou demagogos que juram
confiar na “sabedoria popular”. E isso dá bode.
Recentemente revi o filme “Em um Mundo Melhor“, de Susanne Bier,
de 2010. Trata-se de um filme bastante didático, bom para escolas. Um
médico sueco trabalha em algum lugar infeliz da África, enquanto sua
família derrete na Dinamarca onde mora. Seu filho é objeto de bullying
(chamam-no de “rato” pelo dentes feios que tem e esvaziam o pneu da sua
bicicleta o tempo todo). Ele nunca reage. É tímido e tem medo dos mais
fortes. Sabe que se reagisse apanharia mais.
Muitas vezes, a essência da coragem é perder o medo de sofrer além do que já se sofre. A verdade da coragem não é querer vencer, mas perder o medo de perder tudo que se tem.
Escolas
de crianças são um escândalo. Um depósito de violência de todo tipo. Um
lugar especialmente indicado se quisermos duvidar da existência de Deus
usando o famoso argumento a partir do mal (“argument from evil”, como
dizem os filósofos da religião americanos): se Deus existe e é bom e
todo-poderoso, como o mundo pode ser mau como obviamente é?
Há
todo tipo de resposta para isso, e elas compõem o que em teologia se
chama “teodiceia”. Qual é o sentido de ser bom na vida? Há garantias de
que o bem compensa? Não, não há, nenhuma.
Eu
concordo com o filósofo Isaiah Berlin: não há teodiceia possível. Os
valores são incomensuráveis entre culturas, pessoas, épocas históricas.
Qualquer utopia não passa de um surto infantil projetado sobre o mundo.
Não vai mais longe do que uma história de Branca de Neve.
Voltando
ao filme. O médico é contra violência física. E vive isso de modo
corajoso, não se pode negar. A vida que leva na África é prova de seu
caráter. Enfrenta um sujeito que bate na sua cara na Dinamarca, quando
está visitando sua mulher e filhos, de modo digno, revelando a estupidez
que está por trás do brutamontes idiota.
Ela
quer o divórcio porque se sente sozinha, é óbvio, e, aparentemente,
além de deixá-la sozinha, ele andou comendo alguém por aí… Santo, mas
nem tanto… Você pode salvar o mundo enterrando sua família. Olha aí a
incomensurabilidade de que fala Berlin. Ao final, seu princípio de não
violência é testado na África e ele perceberá que para tudo existe um
basta, e às vezes a violência é tudo que resta. Os pacifistas são também
gente infantil.
Mas
onde está esse mundo melhor no filme? A vida em casa degringola. O
filho humilhado encontra um amigo que o protege na escola. Um menino
corajoso, decidido e violento, que se move no mundo de modo oposto aos
princípios do médico. Na verdade, o menino é um desesperado, solitário,
que acaba de perder a mãe de câncer, num processo doloroso que
sutilmente o filme parece indicar ter chegado à eutanásia.
O mundo melhor parece ser aquele no qual as pessoas podem errar, pedir perdão e ser perdoadas. Um mundo melhor não é um mundo sem violência ou ambivalência, mas um mundo onde existe o perdão.
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