Um
diálogo dramático e extremamente existencialista do filme “Asas
do Desejo”
- Então?
- Nascer do Sol 7h22min; Por do Sol 16h28min; Nascer da Lua 19h04min; Por da Lua; Nível das águas do Havel e do Spree... Há vinte anos um caça soviético despenhou-se no lago Stössen... Há 50 anos foram as olimpíadas. Há 200 anos, Nicolas François Blanchard sobrevoou a cidade num balão de ar quente. Os fugitivos fizeram o mesmo no outro dia.
- E hoje... Um homem caminhava pela Lilienthaler Chaussée e olhou para o vago por cima do ombro.
- Hoje, na estação de correios 44, um homem que vai por fim à vida, colou selos especiais nas suas cartas de despedida; um em cada. Depois cá fora falou inglês com um soldado americano pela primeira vez desde os tempos da escola, e fluentemente. Na prisão de Plötzensee, um preso, antes de ir de contra a parede, disse “Agora!”. Na estação de Metro do Zoo, o funcionário, em vez do nome da estação gritou “Terra do fogo”.
- Bonito.
- Nas montanhas de Reh um velho lia a Odisseia a uma criança. O pequeno escutava-o atentamente. E tu, que tens para contar?
- Uma transeunte fechou o chapéu de chuva e ficou encharcada. Um aluno descreveu ao professor como brota um feto da terra, e este ficou espantado. Uma cega tacteou o relógio quando me sentiu. É fantástico viver espiritualmente, o que há de puro, de espiritual nas pessoas. Mas às vezes farto-me desta eterna existência de espírito. Nessas alturas gostaria de não pairar eternamente. Gostaria de sentir um peso que anulasse a infinidade e me segurasse à terra. A cada passo ou a cada golpe de vento gostaria de poder dizer: “Agora, agora, agora” e não “desde sempre” e “para todo o sempre”. Sentar-me à mesa e jogar às cartas, ser cumprimentado, nem que seja só com um aceno. Sempre que o fizemos, foi a fingir. Fingimos que numa luta de boxe deslocávamos uma anca. Fingimos que nos sentamos numa mesa a comer e a beber, que nos serviam borrego assado e vinho, nas tendas no deserto. Era tudo a fingir. Eu não quero gerar um filho, nem plantar uma árvore, mas seria bem agradável chegar em casa cansado e dar de comer ao gato, como Philipp Marlow. Ter febre, ficar com os dedos sujos de ter lido o jornal... Não me entusiasmar só com coisas do espírito, mas com uma refeição, a curva de uma nuca, uma orelha. Mentir à descarada. Ao andar, sentir o esqueleto mexer-se a cada passo. Poder dizer “ah”, “oh”, “ai” em vez de “sim” e “amém”. Poder, ao menos uma vez, entusiasmar-me com o mal. Extrair todos os demônios da Terra, dos que por nós passam, e afugentá-los para bem longe. Ser selvagem. Ou experimentar o que se sente quando se tiram os sapatos debaixo da mesa e se estendem os dedos descalços. Assim. Ficar só. Deixar correr. Ficar sério.
- Só se pode ser feroz na medida em que se fica sério. Não fazer senão olhar, reunir, testemunhar, preservar. Continuar espírito. Manter a distância, a palavra.
Nada mal para quem precisa de uma sacudida de existência. Uma verdadeira lição de Filosofia da Existência!
Transcrito pelo
Professor Jackislandy Meira de M. Silva
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