quinta-feira, 5 de maio de 2011

As palavras e os males da crise

Tradução: Flávia Gouveia

A crise atual é talvez antes de tudo societal. Os grandes valores sobre os quais se edificou a sociedade moderna parecem não mais serem convenientes ao tempo. Eles seriam progressivamente substituídos por novos valores, constitutivos de um paradigma pós-moderno.
Cada época tem sua "episteme" - conceito caro ao filósofo Michel Foucault - isto é, um discurso sobre a representação do mundo que se traduz por uma determinada organização da sociedade. Na Antiguidade greco-romana, por exemplo, essa "episteme" foi a mitologia e suas interpretações diferenciadas através da cidade ateniense ou do modelo espartano. Na Idade Média, foi a teologia, com suas abadias, dioceses, corporações. Desde os tempos modernos até os anos 1950-1960, quatro palavras-chave constituíram, pouco a pouco, a arquitetura da cultura moderna: o valor do trabalho, nascido no início do século XIX, valor pivô fundamento de todas as instituições; a razão erigida como sistema a partir do século XVII, ou seja, o racionalismo, na origem do desencantamento do mundo, segundo o economista e sociólogo Max Weber; o utilitarismo, em nome do qual somente o que é útil faz sentido, mesmo "a utensiliaridade" assim denominada pelo filósofo Heidegger; enfim, o futuro, marca temporal da modernidade, com seu corolário de mito do progresso, que se concilia com a revolução hegeliana (a filosofia da História). A palavra "projeto" resume bem essa episteme. Hoje, ele parece ter se esgotado.
Se os valores da modernidade continuam a existir no plano institucional, eles, de fato, não têm mais força atrativa. Eles se saturam, no sentido químico do termo, eles se desagregam em benefício de outros valores cuja emergência se observa particularmente na prática das gerações jovens.
A criação, a criatividade, com o jogo, o sonho, o imaginário, tomariam o lugar do valor "trabalho" como realização de si, como objeto de mobilização de energia. Um indício: o hedonismo ambiente que percorre transversalmente o conjunto da vida social.
Depois da valorização da razão, do cognitivo, o corpo vivido por si mesmo torna-se um elemento central. Paul Valéry dizia: "Em certos momentos, a profundidade se esconde na superfície das coisas.".
Ultrapassando o simples utilitarismo, a estética (no sentido etimológico) coloca em primeiro plano as emoções coletivas, as paixões compartilhadas, o festivo, o desejo de estar junto, o preço das coisas sem preço, até o caritativo.
Enfim, a partir de agora só contaria o presente. Aqui e agora. Carpe diem.
Assim deslizam as palavras. As palavras que cessam, as palavras que nascem... Falta ainda reconhecer esses deslizamentos, esses valores nascentes, para livrar-se dos males resultantes dos desfuncionamentos induzidos na organização social. "Cada época sonha a seguinte", escrevia Michelet. Se soubermos acompanhar o sonho em gestação, evitaremos que ele se torne um pesadelo.


Texto inédito para a revista Luz.
A tradução do título original - Les mots et les maux de la crise - para a língua portuguesa esconde o jogo lingüístico baseado na semelhança sonora entre mots (palavras) e maux (males), em francês.
Termo traduzido assim nos textos de Maffesoli em português. O adjetivo societal, apesar de não se encontrar em dicionários da língua portuguesa, possui registro no francês - sociétal - (e também no inglês: societal) e significa ser relativo à sociedade humana. Note-se que o radical latino societ- existe em português, na palavra societário, por exemplo, presente na maioria dos dicionários.
NT: Foucault aborda o assunto em suas obras: Les mots et les choses. Une archaéologie des sciences humaines (1966) e L´Archaéologie du savoir (1969).

*Michel Maffesoli é membro do Instituto Universitário da França e professor da Universidade de Sorbonne.

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quinta-feira, 5 de maio de 2011

As palavras e os males da crise

Tradução: Flávia Gouveia

A crise atual é talvez antes de tudo societal. Os grandes valores sobre os quais se edificou a sociedade moderna parecem não mais serem convenientes ao tempo. Eles seriam progressivamente substituídos por novos valores, constitutivos de um paradigma pós-moderno.
Cada época tem sua "episteme" - conceito caro ao filósofo Michel Foucault - isto é, um discurso sobre a representação do mundo que se traduz por uma determinada organização da sociedade. Na Antiguidade greco-romana, por exemplo, essa "episteme" foi a mitologia e suas interpretações diferenciadas através da cidade ateniense ou do modelo espartano. Na Idade Média, foi a teologia, com suas abadias, dioceses, corporações. Desde os tempos modernos até os anos 1950-1960, quatro palavras-chave constituíram, pouco a pouco, a arquitetura da cultura moderna: o valor do trabalho, nascido no início do século XIX, valor pivô fundamento de todas as instituições; a razão erigida como sistema a partir do século XVII, ou seja, o racionalismo, na origem do desencantamento do mundo, segundo o economista e sociólogo Max Weber; o utilitarismo, em nome do qual somente o que é útil faz sentido, mesmo "a utensiliaridade" assim denominada pelo filósofo Heidegger; enfim, o futuro, marca temporal da modernidade, com seu corolário de mito do progresso, que se concilia com a revolução hegeliana (a filosofia da História). A palavra "projeto" resume bem essa episteme. Hoje, ele parece ter se esgotado.
Se os valores da modernidade continuam a existir no plano institucional, eles, de fato, não têm mais força atrativa. Eles se saturam, no sentido químico do termo, eles se desagregam em benefício de outros valores cuja emergência se observa particularmente na prática das gerações jovens.
A criação, a criatividade, com o jogo, o sonho, o imaginário, tomariam o lugar do valor "trabalho" como realização de si, como objeto de mobilização de energia. Um indício: o hedonismo ambiente que percorre transversalmente o conjunto da vida social.
Depois da valorização da razão, do cognitivo, o corpo vivido por si mesmo torna-se um elemento central. Paul Valéry dizia: "Em certos momentos, a profundidade se esconde na superfície das coisas.".
Ultrapassando o simples utilitarismo, a estética (no sentido etimológico) coloca em primeiro plano as emoções coletivas, as paixões compartilhadas, o festivo, o desejo de estar junto, o preço das coisas sem preço, até o caritativo.
Enfim, a partir de agora só contaria o presente. Aqui e agora. Carpe diem.
Assim deslizam as palavras. As palavras que cessam, as palavras que nascem... Falta ainda reconhecer esses deslizamentos, esses valores nascentes, para livrar-se dos males resultantes dos desfuncionamentos induzidos na organização social. "Cada época sonha a seguinte", escrevia Michelet. Se soubermos acompanhar o sonho em gestação, evitaremos que ele se torne um pesadelo.


Texto inédito para a revista Luz.
A tradução do título original - Les mots et les maux de la crise - para a língua portuguesa esconde o jogo lingüístico baseado na semelhança sonora entre mots (palavras) e maux (males), em francês.
Termo traduzido assim nos textos de Maffesoli em português. O adjetivo societal, apesar de não se encontrar em dicionários da língua portuguesa, possui registro no francês - sociétal - (e também no inglês: societal) e significa ser relativo à sociedade humana. Note-se que o radical latino societ- existe em português, na palavra societário, por exemplo, presente na maioria dos dicionários.
NT: Foucault aborda o assunto em suas obras: Les mots et les choses. Une archaéologie des sciences humaines (1966) e L´Archaéologie du savoir (1969).

*Michel Maffesoli é membro do Instituto Universitário da França e professor da Universidade de Sorbonne.

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