Não é sem demora que, lá pelo mês de novembro, nas vésperas das festas de fim de ano, se possa sentir embalado por fortes e amenos sentimentos de ternura pelos outros, pela família, pelos amigos, pelos colegas, os quais compartilham o fabuloso fato de existir. Corre nas veias o sangue do atrevimento para se permitir subverter aquilo que Sartre fazia questão de afirmar: “o inferno são os outros” por “o céu – na sua dimensão de infinito – é o outro!” na brilhante visão de Emanuel Lévinas.
Caro leitor, as pessoas marcadamente têm a força expressiva de um rosto. Rosto que por mais íntimo que seja, é um rosto de outrem. Para Lévinas, o rosto não é a simples mostração da aparência, ou melhor, não é o que está na frente da cabeça ou aquilo que a envolve, não. O rosto não se desvela somente pela relação com o Outro ao observá-lo, descobrir-lhe o contorno dos narizes, a feitura das sobrancelhas, o piscar e a cor dos olhos, o espontâneo sorriso da boca, enfim. O rosto não é restrito apenas à percepção, mas é pura exposição, revela-se nu, desprovido, destituído de uma pobreza essencial. Mas, simultaneamente o rosto é quem nos proíbe de matar. Ele não precisa estar em contato com algo mais para ter significado, “o rosto significa tudo por si mesmo”. Nada o contém. É excesso, infinito, vastidão.
A relação que se estabelece com o rosto é de desinteresse, de entrega e de desprendimento. É pura fruição definida por Agostinho. Sua relação não é de conhecimento, mas de desejo. Quanto maior a satisfação, mais longe está de ser satisfeito. Ao contrário da visão, que absorve o ser, o rosto lhe escapa. O outro é rosto(aquilo que não pode ser reduzido à compreensão, contrariando as expectativas de Descartes e de Kant) e o rosto é “aquilo que não se pode matar”(Lévinas). Somos orientados, comandados por esse rosto, que só deseja vida. O rosto é, portanto, responsabilidade. Diante do rosto, no entanto, não se contempla, mas se responde a ele, se responde ao chamado: o rosto é ao mesmo tempo riqueza e pobreza, domesticação e submissão, frágil e poderoso. Interagir com o outro implica se antecipar à consciência. Ser ético é a interrupção do ser pelo Outro, por isso é possível uma atitude de sacrifício ou apenas afirmar: “Depois de você”, dou-lhe tudo, devo-lhe tudo. Não é bem assim, pois Lévinas tem um alcance mais apurado sobre a alteridade que deve ser moderado, sua relação com o outro deve ser sábia. Numa multiplicidade de homens, não posso dar tudo ao outro, pois há alguém mais: devo “medir, pensar, julgar, comparar o incomparável”. Se o rosto é “significação sem contexto”, se poderia dizer que o rosto é um deserto: o nada que preenche todo o espaço. Assume-se aqui quase uma direção niilista do rosto de Lévinas, o que não é tão confortante.
A direção é outra, a que se aproxima de Heidegger talvez. Segundo Lévinas, o rosto do outro comporta a dimensão de abertura. A visão desse rosto é a visão da abertura do ser, que o afirma mais do que nega. A relação de alteridade o conduz para uma dimensão de experiência que não se refere a ele próprio, ao seu egoísmo e ao seu relativismo. O rosto é terno e promissor. O rosto é desinteresse total. Quando vejo o rosto de minha esposa pela manhã na perspectiva dele mesmo, é inevitável uma reação de estar diante de uma “coisa dada”, de um presente. Como o rosto recusa se identificar com o conteúdo, ele se propõe, segundo Lévinas, a uma alteridade independente de qualquer qualidade que o diferencie do eu, porque tal diferença imporia entre o eu e o outro uma comunidade de gênero, que anularia a alteridade.
Assim, o rosto se derrama, se extravasa na forma que o delimita, que o circunscreve. O rosto não tem fronteiras. O rosto fala ao eu. “Compreender uma pessoa é já falar-lhe.”(Lévinas). O rosto opõe ao eu o infinito da sua transcendência em relação ao todo. Esse infinito, para Lévinas, é expressão original. O rosto se desemboca no infinito. O rosto não se dilui no infinito, mas se afirma nele. É o infinito que responde totalmente ao outro, ao rosto – e vice-versa.
Como se avizinha de nós as festas de fim de ano, não é por acaso que nos encontramos inseridos na cultura cristã, envolvidos por uma atmosfera de gratidão a Deus, a Cristo e ao Espírito Santo a fim de que sejamos tomados por sentimentos eivados de verdade. Daí ser mais do que oportuno, aproveitarmos dessa época tão especial para nós, uma vez que nossos corações desejam ardentemente fruir para infinitas relações com outros eus, no dizer do poeta português Fernando Pessoa, “eu e os outros eus”. Fiem-se, todos, nisso: na relação estreita e incontida do seu eu com os outros eus.
Jackislandy Meira de M. Silva. Professor e filósofo.
www.umasreflexoes.blogspot.com
www.twitter.com/filoflorânia
www.chegadootempo.blogspot.com
Caro leitor, as pessoas marcadamente têm a força expressiva de um rosto. Rosto que por mais íntimo que seja, é um rosto de outrem. Para Lévinas, o rosto não é a simples mostração da aparência, ou melhor, não é o que está na frente da cabeça ou aquilo que a envolve, não. O rosto não se desvela somente pela relação com o Outro ao observá-lo, descobrir-lhe o contorno dos narizes, a feitura das sobrancelhas, o piscar e a cor dos olhos, o espontâneo sorriso da boca, enfim. O rosto não é restrito apenas à percepção, mas é pura exposição, revela-se nu, desprovido, destituído de uma pobreza essencial. Mas, simultaneamente o rosto é quem nos proíbe de matar. Ele não precisa estar em contato com algo mais para ter significado, “o rosto significa tudo por si mesmo”. Nada o contém. É excesso, infinito, vastidão.
A relação que se estabelece com o rosto é de desinteresse, de entrega e de desprendimento. É pura fruição definida por Agostinho. Sua relação não é de conhecimento, mas de desejo. Quanto maior a satisfação, mais longe está de ser satisfeito. Ao contrário da visão, que absorve o ser, o rosto lhe escapa. O outro é rosto(aquilo que não pode ser reduzido à compreensão, contrariando as expectativas de Descartes e de Kant) e o rosto é “aquilo que não se pode matar”(Lévinas). Somos orientados, comandados por esse rosto, que só deseja vida. O rosto é, portanto, responsabilidade. Diante do rosto, no entanto, não se contempla, mas se responde a ele, se responde ao chamado: o rosto é ao mesmo tempo riqueza e pobreza, domesticação e submissão, frágil e poderoso. Interagir com o outro implica se antecipar à consciência. Ser ético é a interrupção do ser pelo Outro, por isso é possível uma atitude de sacrifício ou apenas afirmar: “Depois de você”, dou-lhe tudo, devo-lhe tudo. Não é bem assim, pois Lévinas tem um alcance mais apurado sobre a alteridade que deve ser moderado, sua relação com o outro deve ser sábia. Numa multiplicidade de homens, não posso dar tudo ao outro, pois há alguém mais: devo “medir, pensar, julgar, comparar o incomparável”. Se o rosto é “significação sem contexto”, se poderia dizer que o rosto é um deserto: o nada que preenche todo o espaço. Assume-se aqui quase uma direção niilista do rosto de Lévinas, o que não é tão confortante.
A direção é outra, a que se aproxima de Heidegger talvez. Segundo Lévinas, o rosto do outro comporta a dimensão de abertura. A visão desse rosto é a visão da abertura do ser, que o afirma mais do que nega. A relação de alteridade o conduz para uma dimensão de experiência que não se refere a ele próprio, ao seu egoísmo e ao seu relativismo. O rosto é terno e promissor. O rosto é desinteresse total. Quando vejo o rosto de minha esposa pela manhã na perspectiva dele mesmo, é inevitável uma reação de estar diante de uma “coisa dada”, de um presente. Como o rosto recusa se identificar com o conteúdo, ele se propõe, segundo Lévinas, a uma alteridade independente de qualquer qualidade que o diferencie do eu, porque tal diferença imporia entre o eu e o outro uma comunidade de gênero, que anularia a alteridade.
Assim, o rosto se derrama, se extravasa na forma que o delimita, que o circunscreve. O rosto não tem fronteiras. O rosto fala ao eu. “Compreender uma pessoa é já falar-lhe.”(Lévinas). O rosto opõe ao eu o infinito da sua transcendência em relação ao todo. Esse infinito, para Lévinas, é expressão original. O rosto se desemboca no infinito. O rosto não se dilui no infinito, mas se afirma nele. É o infinito que responde totalmente ao outro, ao rosto – e vice-versa.
Como se avizinha de nós as festas de fim de ano, não é por acaso que nos encontramos inseridos na cultura cristã, envolvidos por uma atmosfera de gratidão a Deus, a Cristo e ao Espírito Santo a fim de que sejamos tomados por sentimentos eivados de verdade. Daí ser mais do que oportuno, aproveitarmos dessa época tão especial para nós, uma vez que nossos corações desejam ardentemente fruir para infinitas relações com outros eus, no dizer do poeta português Fernando Pessoa, “eu e os outros eus”. Fiem-se, todos, nisso: na relação estreita e incontida do seu eu com os outros eus.
Jackislandy Meira de M. Silva. Professor e filósofo.
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3 comentários:
Uauu !!
Belíssimo texto !
abraços
Muito obrigado, Alice, pelo seu comentário. O blog estará sempre aberto para receber suas visitas e seus comentários. Obrigado.
Estou fazendo minha monografia no pensamento de Levinas, gostei da interpretação a respeito da ética do autor, bem acessível!
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