Há uma campanha nacional contra o bullying – todos nós sabemos disso. Que se fale qualquer coisa contra os que estão nessa campanha, mas que a idéia básica é correta, disso não tenho dúvida. Não penso que deva existir um lugar na Terra onde o império da humilhação seja louvado. Então, como a escola está no Planeta, por conseguinte não vejo como eu teria de achar graça ou ver normalidade na existência do bullying.
Esse movimento contra o bullying é novo no Brasil. Mas, antes dele, as universidades começaram o movimento contra o trote. As origens do trote são medievais: um cavalo novo, ao ser colocado em serviço, precisa aprender a trotar. Para tal, nada melhor que fazê-lo sentir, logo de cara, o peso dos arreios. O mesmo se faz com o calouro universitário, uma tradição que absorvemos, é claro, de Portugal. Trata-se de um rito de iniciação que, enfim, nunca foi tão saboreado senão dentro dos regimes nazi-fascistas. Como esse tipo de prática levou vários estudantes a se ferirem ou mesmo morrerem, nossas universidades foram, aos poucos, tentando coibir o trote. Algumas universidades inventaram maneiras de canalizar energias dos estudantes para atividades sociais. Outras simplesmente proibiram o trote e colocaram uma faixa na porta da escola: “Aqui o calouro não pode ser humilhado, se você é calouro e sofreu violência física ou moral, denuncie”. Em lugares assim, a porta da civilização casou-se com a porta da universidade. Bem melhor.
Mas, é claro, nas escolas de beira de esquina, em cursos de pouca tradição humanística e de garotos saradões que, não raro, podem à noite vir a atacar homossexuais, há ainda um sorrateiro movimento contra as autoridades universitárias que proíbem o trote. A cultura da humilhação e da covardia dos mais fortes contra os supostos mais fracos tenta entrar pela janela quando expulsa pela porta. Uma faculdade assim, que, não raro, pode ser a do “papai pagou passou”, é o único lugar que o Rafa conseguiu entrar. E toda a Rede Globo está em festa com o menino. Ele e a mãe dele e todo mundo. Enfim, um vestibulando autêntico que vira um “bixo” autêntico. Rafa mostra seu corpo sarado e pintado após o trote. E como é bom o trote, não? Ele esbanja felicidade.
Eu imagino que poucos foram os cavalos que, uma vez colocados para trotar, na Idade Média, na origem do “trote”, tenham pensado em abolir tal prática. Penso que uma parte dos cavalos reclamou, mas, enfim, ao ganhar a armadura e o cavaleiro em cima, tais cavalos ficaram orgulhosos de poderem ser vassalos do homem e ir para as batalhas, tomar esporadas na barriga. Aprender a trotar – eis aí a forma de participar, mesmo sendo cavalo, da marcha da civilização.
Rafa vai por essa via em “Insensato Cérebro”. Ôps, é “Insensato Coração”. Ele está exultante. Temos de torcer para que ele não saia dos barzinhos próximos da universidade. Caso entre na aula, teremos de ver aquelas cenas de “educação moral e cívica”, onde a Rede Globo explica para a população o que faz um professor universitário e como funciona uma sala de aula no Brasil. Desse modo, temos de torcer para que a vida universitária de Rafa não progrida. Que fique no trote! Antes a violência nesse sentido que a violência contra nós, ao sermos obrigados a participar de uma aula na Rede Globo.
Não quero de modo algum abolir o trote em novela de TV. Menos ainda quero ver a novela condenando o trote do Rafa – isso seria até pior do que o próprio trote. O que há, mesmo, de insuportável nesse tipo de peça teatral brasileira, é o amadorismo com que a TV trata o mundo acadêmico.
Toda novela da Globo dá um show quando tem de retratar qualquer ambiente brasileiro que não seja o da escola. A escola ou a universidade, realmente, é um mundo estranho à TV. Quando ela tenta fazer uma cena que tenha a ver com a universidade, ela não consegue escapar da caricatura, do pastiche, do pastelão ou simplesmente do puro despreparo. A Globo, por questões de qualidade interna, deveria se proibir de exibir qualquer cena que pudesse ser escolar. Situações de bullying e trote, então, nem se fale. Aí o amadorismo se torna o berço do cultivo ao mau gosto.
Paulo Ghiraldelli Jr
* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
http://jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2011/04/14/rafa-trotando/
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sexta-feira, 15 de abril de 2011
Rafa trotando
Há uma campanha nacional contra o bullying – todos nós sabemos disso. Que se fale qualquer coisa contra os que estão nessa campanha, mas que a idéia básica é correta, disso não tenho dúvida. Não penso que deva existir um lugar na Terra onde o império da humilhação seja louvado. Então, como a escola está no Planeta, por conseguinte não vejo como eu teria de achar graça ou ver normalidade na existência do bullying.
Esse movimento contra o bullying é novo no Brasil. Mas, antes dele, as universidades começaram o movimento contra o trote. As origens do trote são medievais: um cavalo novo, ao ser colocado em serviço, precisa aprender a trotar. Para tal, nada melhor que fazê-lo sentir, logo de cara, o peso dos arreios. O mesmo se faz com o calouro universitário, uma tradição que absorvemos, é claro, de Portugal. Trata-se de um rito de iniciação que, enfim, nunca foi tão saboreado senão dentro dos regimes nazi-fascistas. Como esse tipo de prática levou vários estudantes a se ferirem ou mesmo morrerem, nossas universidades foram, aos poucos, tentando coibir o trote. Algumas universidades inventaram maneiras de canalizar energias dos estudantes para atividades sociais. Outras simplesmente proibiram o trote e colocaram uma faixa na porta da escola: “Aqui o calouro não pode ser humilhado, se você é calouro e sofreu violência física ou moral, denuncie”. Em lugares assim, a porta da civilização casou-se com a porta da universidade. Bem melhor.
Mas, é claro, nas escolas de beira de esquina, em cursos de pouca tradição humanística e de garotos saradões que, não raro, podem à noite vir a atacar homossexuais, há ainda um sorrateiro movimento contra as autoridades universitárias que proíbem o trote. A cultura da humilhação e da covardia dos mais fortes contra os supostos mais fracos tenta entrar pela janela quando expulsa pela porta. Uma faculdade assim, que, não raro, pode ser a do “papai pagou passou”, é o único lugar que o Rafa conseguiu entrar. E toda a Rede Globo está em festa com o menino. Ele e a mãe dele e todo mundo. Enfim, um vestibulando autêntico que vira um “bixo” autêntico. Rafa mostra seu corpo sarado e pintado após o trote. E como é bom o trote, não? Ele esbanja felicidade.
Eu imagino que poucos foram os cavalos que, uma vez colocados para trotar, na Idade Média, na origem do “trote”, tenham pensado em abolir tal prática. Penso que uma parte dos cavalos reclamou, mas, enfim, ao ganhar a armadura e o cavaleiro em cima, tais cavalos ficaram orgulhosos de poderem ser vassalos do homem e ir para as batalhas, tomar esporadas na barriga. Aprender a trotar – eis aí a forma de participar, mesmo sendo cavalo, da marcha da civilização.
Rafa vai por essa via em “Insensato Cérebro”. Ôps, é “Insensato Coração”. Ele está exultante. Temos de torcer para que ele não saia dos barzinhos próximos da universidade. Caso entre na aula, teremos de ver aquelas cenas de “educação moral e cívica”, onde a Rede Globo explica para a população o que faz um professor universitário e como funciona uma sala de aula no Brasil. Desse modo, temos de torcer para que a vida universitária de Rafa não progrida. Que fique no trote! Antes a violência nesse sentido que a violência contra nós, ao sermos obrigados a participar de uma aula na Rede Globo.
Não quero de modo algum abolir o trote em novela de TV. Menos ainda quero ver a novela condenando o trote do Rafa – isso seria até pior do que o próprio trote. O que há, mesmo, de insuportável nesse tipo de peça teatral brasileira, é o amadorismo com que a TV trata o mundo acadêmico.
Toda novela da Globo dá um show quando tem de retratar qualquer ambiente brasileiro que não seja o da escola. A escola ou a universidade, realmente, é um mundo estranho à TV. Quando ela tenta fazer uma cena que tenha a ver com a universidade, ela não consegue escapar da caricatura, do pastiche, do pastelão ou simplesmente do puro despreparo. A Globo, por questões de qualidade interna, deveria se proibir de exibir qualquer cena que pudesse ser escolar. Situações de bullying e trote, então, nem se fale. Aí o amadorismo se torna o berço do cultivo ao mau gosto.
Paulo Ghiraldelli Jr
* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
http://jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2011/04/14/rafa-trotando/
Esse movimento contra o bullying é novo no Brasil. Mas, antes dele, as universidades começaram o movimento contra o trote. As origens do trote são medievais: um cavalo novo, ao ser colocado em serviço, precisa aprender a trotar. Para tal, nada melhor que fazê-lo sentir, logo de cara, o peso dos arreios. O mesmo se faz com o calouro universitário, uma tradição que absorvemos, é claro, de Portugal. Trata-se de um rito de iniciação que, enfim, nunca foi tão saboreado senão dentro dos regimes nazi-fascistas. Como esse tipo de prática levou vários estudantes a se ferirem ou mesmo morrerem, nossas universidades foram, aos poucos, tentando coibir o trote. Algumas universidades inventaram maneiras de canalizar energias dos estudantes para atividades sociais. Outras simplesmente proibiram o trote e colocaram uma faixa na porta da escola: “Aqui o calouro não pode ser humilhado, se você é calouro e sofreu violência física ou moral, denuncie”. Em lugares assim, a porta da civilização casou-se com a porta da universidade. Bem melhor.
Mas, é claro, nas escolas de beira de esquina, em cursos de pouca tradição humanística e de garotos saradões que, não raro, podem à noite vir a atacar homossexuais, há ainda um sorrateiro movimento contra as autoridades universitárias que proíbem o trote. A cultura da humilhação e da covardia dos mais fortes contra os supostos mais fracos tenta entrar pela janela quando expulsa pela porta. Uma faculdade assim, que, não raro, pode ser a do “papai pagou passou”, é o único lugar que o Rafa conseguiu entrar. E toda a Rede Globo está em festa com o menino. Ele e a mãe dele e todo mundo. Enfim, um vestibulando autêntico que vira um “bixo” autêntico. Rafa mostra seu corpo sarado e pintado após o trote. E como é bom o trote, não? Ele esbanja felicidade.
Eu imagino que poucos foram os cavalos que, uma vez colocados para trotar, na Idade Média, na origem do “trote”, tenham pensado em abolir tal prática. Penso que uma parte dos cavalos reclamou, mas, enfim, ao ganhar a armadura e o cavaleiro em cima, tais cavalos ficaram orgulhosos de poderem ser vassalos do homem e ir para as batalhas, tomar esporadas na barriga. Aprender a trotar – eis aí a forma de participar, mesmo sendo cavalo, da marcha da civilização.
Rafa vai por essa via em “Insensato Cérebro”. Ôps, é “Insensato Coração”. Ele está exultante. Temos de torcer para que ele não saia dos barzinhos próximos da universidade. Caso entre na aula, teremos de ver aquelas cenas de “educação moral e cívica”, onde a Rede Globo explica para a população o que faz um professor universitário e como funciona uma sala de aula no Brasil. Desse modo, temos de torcer para que a vida universitária de Rafa não progrida. Que fique no trote! Antes a violência nesse sentido que a violência contra nós, ao sermos obrigados a participar de uma aula na Rede Globo.
Não quero de modo algum abolir o trote em novela de TV. Menos ainda quero ver a novela condenando o trote do Rafa – isso seria até pior do que o próprio trote. O que há, mesmo, de insuportável nesse tipo de peça teatral brasileira, é o amadorismo com que a TV trata o mundo acadêmico.
Toda novela da Globo dá um show quando tem de retratar qualquer ambiente brasileiro que não seja o da escola. A escola ou a universidade, realmente, é um mundo estranho à TV. Quando ela tenta fazer uma cena que tenha a ver com a universidade, ela não consegue escapar da caricatura, do pastiche, do pastelão ou simplesmente do puro despreparo. A Globo, por questões de qualidade interna, deveria se proibir de exibir qualquer cena que pudesse ser escolar. Situações de bullying e trote, então, nem se fale. Aí o amadorismo se torna o berço do cultivo ao mau gosto.
Paulo Ghiraldelli Jr
* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
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