terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Relojoeiro cego

Ilustração de Ricardo Cammarota para o artigo de hoje

Você vai ao médico, ele pede um exame de sangue e você descobre que seu filho terá síndrome de Down. O que você faria? Pensará nos custos? Você não é uma pessoa excepcionalmente egoísta, mas, em meio a sua agenda, como conseguirá lidar com uma criança assim? A agenda já é pesada com trabalho, sexo top (lembre-se: gostosa sempre!), estudos na pós-graduação (afinal, hoje em dia é imperativo agregar valor à vida profissional e pessoal), férias…
Quem tomará conta da criança? Você tem alguém com quem possa contar? Irmãs, mãe, marido? Escola especial? Psicoterapeuta, psicopedagoga?
Claro que essa questão não diz respeito a quem tem já filhos com esse quadro clínico, mas sim àqueles que um dia passarão por isso. Tampouco cabe aqui o argumento de que aqueles que já têm um filho assim o amam e aprenderam a conviver bem com essa situação. Enfim, não se trata de amar ou não os filhos que já se tem, mas sim de escolher os filhos que teremos.
No Brasil, sendo o aborto ilegal numa situação como está, a tendência, com a chegada até nós desse tipo de exame, é o aumento do aborto ilegal.
A ciência vive pressionando a ética: trata-se aqui da ampliação do poder de escolha informada. Aumentando os recursos técnicos da medicina pré-natal, aumenta-se proporcionalmente a possibilidade de se evitar determinados tipos de gravidez. O nome disso, segundo o filósofo americano Francis Fukuyama, é “design babies” (bebês de prancheta, na tradução brasileira): bebês ao portador, com grau máximo de saúde.
Católicos dirão que a vida pertence a Deus. Quem não crê nisso tem diante de si a seguinte questão: por que devo me submeter ao mero acaso? Afinal, a criança não foi fruto de um orgasmo (masculino, no mínimo)? Se o acaso decidiu qual óvulo e espermatozoide que estariam a postos, por que devo eu me submeter a tamanho capricho cego? Não seria essa criança apenas uma carta triste no baralho, baralho este criado por um relojoeiro cego?
Explico: a teoria do design inteligente (Deus criou o universo) afirma que sendo o universo organizado, não seria possível imaginar que ele teria surgido sem um criador inteligente (o relojoeiro criador). Ateus em geral, ironizando, até aceitam que exista uma ordem, mas esta ordem seria fruto do acaso cego, daí o “relojeiro cego” que fala o darwinista Richard Dawkins em seu livro “Blind Watchmaker” (relojoeiro cego).
Se não devemos nada a ninguém, por que não tomarmos nosso destino nas mãos e ter o “melhor filho” possível? Tomar o destino em nossas mãos é optarmos pelos ganhos técnicos à mão, ou seja, a artificialização da vida. Quanto aos crentes, em tempo abraçarão a causa, dirão que Deus nos fez inteligentes para tomarmos decisões inteligentes. A Igreja Católica, mais lenta, 500 anos depois também aceitará, como aceitou Galileu.
O processo de ampliação de escolha informada implica, num prazo de tempo não muito preciso, a crescente artificialização da atividade reprodutiva humana. Isso é tão inevitável como a ampliação dos direitos civis, tais como voto das mulheres, casamentos gays, direitos da mulher sobre seu corpo, e afins.
Se você vê um dia um homem aparentando 60 anos, mas com corpo e disposição de 40, correndo no Ibirapuera ao lado de uma gostosa de 25, você talvez não imagine quantos remédios ele tomou quando acordou, entre eles, um Viagra. Isto é a artificialização da vida. Dito assim, parece um absurdo do cinema de ficção científica, mas na prática, é banal como tomar vitaminas e vacinas.
Num futuro próximo, ter filhos pelo método do acaso será como negar vacinas aos filhos. Um ato de irresponsabilidade reprodutiva. Empresas de seguro cobrarão mais caro por apólices de crianças geradas pelo relojoeiro cego. Ou simplesmente recusarão estas apólices. ONGs farão campanhas para criminalização da reprodução não assistida pela medicina pré-natal genética em nome da sustentabilidade social das crianças geradas e dos custos de saúde pública.
Vejo mesmo o comercial: “Dê a seu filho o que você tem de melhor, Bradesco Biotecnologia”.


Luiz Felipe Pondé (jornal FSP – 04.02.2012)

Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/

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terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Relojoeiro cego

Ilustração de Ricardo Cammarota para o artigo de hoje

Você vai ao médico, ele pede um exame de sangue e você descobre que seu filho terá síndrome de Down. O que você faria? Pensará nos custos? Você não é uma pessoa excepcionalmente egoísta, mas, em meio a sua agenda, como conseguirá lidar com uma criança assim? A agenda já é pesada com trabalho, sexo top (lembre-se: gostosa sempre!), estudos na pós-graduação (afinal, hoje em dia é imperativo agregar valor à vida profissional e pessoal), férias…
Quem tomará conta da criança? Você tem alguém com quem possa contar? Irmãs, mãe, marido? Escola especial? Psicoterapeuta, psicopedagoga?
Claro que essa questão não diz respeito a quem tem já filhos com esse quadro clínico, mas sim àqueles que um dia passarão por isso. Tampouco cabe aqui o argumento de que aqueles que já têm um filho assim o amam e aprenderam a conviver bem com essa situação. Enfim, não se trata de amar ou não os filhos que já se tem, mas sim de escolher os filhos que teremos.
No Brasil, sendo o aborto ilegal numa situação como está, a tendência, com a chegada até nós desse tipo de exame, é o aumento do aborto ilegal.
A ciência vive pressionando a ética: trata-se aqui da ampliação do poder de escolha informada. Aumentando os recursos técnicos da medicina pré-natal, aumenta-se proporcionalmente a possibilidade de se evitar determinados tipos de gravidez. O nome disso, segundo o filósofo americano Francis Fukuyama, é “design babies” (bebês de prancheta, na tradução brasileira): bebês ao portador, com grau máximo de saúde.
Católicos dirão que a vida pertence a Deus. Quem não crê nisso tem diante de si a seguinte questão: por que devo me submeter ao mero acaso? Afinal, a criança não foi fruto de um orgasmo (masculino, no mínimo)? Se o acaso decidiu qual óvulo e espermatozoide que estariam a postos, por que devo eu me submeter a tamanho capricho cego? Não seria essa criança apenas uma carta triste no baralho, baralho este criado por um relojoeiro cego?
Explico: a teoria do design inteligente (Deus criou o universo) afirma que sendo o universo organizado, não seria possível imaginar que ele teria surgido sem um criador inteligente (o relojoeiro criador). Ateus em geral, ironizando, até aceitam que exista uma ordem, mas esta ordem seria fruto do acaso cego, daí o “relojeiro cego” que fala o darwinista Richard Dawkins em seu livro “Blind Watchmaker” (relojoeiro cego).
Se não devemos nada a ninguém, por que não tomarmos nosso destino nas mãos e ter o “melhor filho” possível? Tomar o destino em nossas mãos é optarmos pelos ganhos técnicos à mão, ou seja, a artificialização da vida. Quanto aos crentes, em tempo abraçarão a causa, dirão que Deus nos fez inteligentes para tomarmos decisões inteligentes. A Igreja Católica, mais lenta, 500 anos depois também aceitará, como aceitou Galileu.
O processo de ampliação de escolha informada implica, num prazo de tempo não muito preciso, a crescente artificialização da atividade reprodutiva humana. Isso é tão inevitável como a ampliação dos direitos civis, tais como voto das mulheres, casamentos gays, direitos da mulher sobre seu corpo, e afins.
Se você vê um dia um homem aparentando 60 anos, mas com corpo e disposição de 40, correndo no Ibirapuera ao lado de uma gostosa de 25, você talvez não imagine quantos remédios ele tomou quando acordou, entre eles, um Viagra. Isto é a artificialização da vida. Dito assim, parece um absurdo do cinema de ficção científica, mas na prática, é banal como tomar vitaminas e vacinas.
Num futuro próximo, ter filhos pelo método do acaso será como negar vacinas aos filhos. Um ato de irresponsabilidade reprodutiva. Empresas de seguro cobrarão mais caro por apólices de crianças geradas pelo relojoeiro cego. Ou simplesmente recusarão estas apólices. ONGs farão campanhas para criminalização da reprodução não assistida pela medicina pré-natal genética em nome da sustentabilidade social das crianças geradas e dos custos de saúde pública.
Vejo mesmo o comercial: “Dê a seu filho o que você tem de melhor, Bradesco Biotecnologia”.


Luiz Felipe Pondé (jornal FSP – 04.02.2012)

Fonte: http://luizfelipeponde.wordpress.com/

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