quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Política é política, filosofia é filosofia.


É difícil encontrar um pragmatista que não queira ver Platão pelas costas. E não é para menos. O platonismo está identificado com a idéia da separação entre o homem culto e o filósofo, e dá ao segundo o direito e o poder de governo sobre o primeiro. Por isso mesmo, o platonismo está aliado à idéia de vanguarda. O filósofo tem legitimidade para a condução da cidade. O rei-filósofo é o cume de uma vanguarda. Os pragmatistas tendem a não gostar do platonismo exatamente por causa disso. Comunidades comandadas por vanguardas políticas tendem a se uniformizar. A uniformidade reduz a riqueza da experiência que está, justamente, na pluralidade de idéias e perspectivas e na diversidade da prática. E o pragmatista é aquele filósofo que acredita que o que faz diferença faz diferença na prática. Ele teme como ninguém situações que podem nos levar a não ver mais diferença em nada, pois a prática se tornou, como um todo, o mundo da mera repetição. O platonismo, para o pragmatista, é exatamente a filosofia das sociedades que detém pouco apreço pela liberdade individual enquanto uma liberdade de produzir o diferente. Em termos gerais, esses óculos pelo qual o pragmatista mira o platonismo está correto. Todavia, esses óculos podem embaçar nossa visão quando Platão é absorvido nesse quadro. Platão não foi um platonista fanático. Há uma longa polêmica sobre se Platão se manteve adepto da Teoria das Formas e da ligação disto com a idéia de uma sociedade comandada pelo rei-filósofo, aquele que, enfim, podia vislumbrar a Forma das Formas – o Bem. Mas, o que não se pode perder de vista, é que essa questão é antes uma preocupação da filosofia política que da política. E quando os pragmatistas falam de filosofia política, eles, talvez diferentemente de outros tipos de filósofos, já estão bem próximos da política. Muitas vezes o pragmatista quer antes olhar as mentalidades, os ideários e as ideologias que propriamente o refinamento filosófico delas. A atenção para com a prática os leva a isso. Assim, não raro, antes se interessam pelo platonismo que por Platão. E neste campo mais pedestre da filosofia, em que esta transita próximo da história, da sociologia e da antropologia, ou seja, o campo da filosofia social que Dewey e os frankfurtianos desenvolveram, o problema da vanguarda continua sendo preocupante. A legitimação e a atuação da vanguarda são semelhantes na política, na religião e na educação. Na política, o partido revolucionário enxerga a Verdade e, no limite, um dos membros do partido, ao galgar a chefia, representa a culminância dessa capacidade de visão. Na religião, as igrejas fazem o mesmo, e os pastores e padres hierarquicamente fixados substituem a burocracia do partido. Na educação alguém na estrutura escolar cria algo parecido, e os professores, também hierarquicamente postos, atuam platonisticamente. Se nós aceitamos que um grupo, por diversas razões, tem acesso ao Bem, ao Belo e ao Verdadeiro, e que outros, incapazes, terão de seguir de modo obediente e pouco questionador esse grupo mais apto que, no limite, é chefiado por um tipo de rei-filósofo, então estamos longe do pragmatismo. E, para os pragmatistas, estamos no interior do platonismo. Em termos grosseiros, é esta a relação entre pragmatistas e o platonismo no campo da filosofia política. Por isso mesmo, quando nos anos 70, 80 e 90 do século XX se desenvolveu o “pós-modernismo”, alguns pragmatistas foram tomados como pós-modernos. É que a ordem do pós-modernismo era a de colocar abaixo o platonismo. E assim Richard Rorty foi chamado de filósofo pós-moderno. O problema surgido naquela época foi que a maioria dos pós-modernos eram críticos do platonismo e, no entanto, aos olhos de Rorty – e eu o acompanho nisso – estavam inseridos no platonismo de um modo peculiar. Eles criticavam o platonismo pelo seu realismo metafísico e, então, por causa de que no platonismo isto conduz à sociedade não pluralista e diversificada, eles também passaram a criticar a sociedade democrática moderna, pois a caracterizaram como uma sociedade uniformizada ou, para usar um termo caro aos frankfurtianos, a “sociedade da total administração” ou “sociedade administrada”. Por que isso era um problema? Por duas coisas: primeira, essa ligação que a maioria dos filósofos acredita, de que uma posição metafísica conduz à uma posição política, é própria do platonismo, e não de toda a filosofia; segunda, não é tão evidente que a sociedade moderna e democrática possa ser equiparada a uma sociedade falsamente pluralista e diversificada, falsamente livre. Rorty enfrentou essas questões. Ele fez seu discurso na defesa da sociedade democrática moderna, e assim se aliou a Habermas. E ele continuou fazendo sua defesa de uma posição não platonista, e assim elogiou Derrida. Mas ele se manteve eqüidistante de ambos na medida em que ele foi muito mais anti-platonista que Habermas e Derrida e, talvez, mais que qualquer outro filósofo de nossa época. Rorty nunca admitiu a essência do platonismo, que é a idéia de que uma posição metafísica arrasta com laço de necessidade uma posição política. O platonismo ligou a metafísica realista à política não democrática, e instituiu como uma característica da visão filosófica essa articulação, por meio de um elo de necessidade, entre metafísica e política. Rorty negou o caráter necessário desse elo. Para argumentar por isso, Rorty utilizou o próprio pragmatismo. Ele qualificou o pragmatismo como uma teoria filosófica ad hoc e, de certo modo, indicou que esse seria o melhor caminho para a filosofia. Por exemplo, se gostamos da democracia e queremos convencer outros que ela também é um bom modo de vida para eles, podemos evocar razões pragmáticas para tal. Talvez estas sejam as melhores razões para convencê-los. Mas essas razões pragmáticas, exatamente por serem pragmáticas, não são necessárias. Posso dizer a um amigo que não gosta da democracia que ele vive bem com a família na democracia, e que fora dela ele teria uma vida pior. Assim, não estou dizendo para ele que a democracia é o regime mais legítimo perante as leis do universo ou perante as leis de Deus ou que é o regime mais natural ao homem etc. Não há nisso nenhuma grande meta-narrativa filosófica ou religiosa para justificar a posição democrática, há apenas o argumento de que cada um de nós tem mais chances de se sair melhor na democracia que em outro regime. Ou seja, coloco um argumento pragmático como adendo, não como uma dito “escrito nas estrelas” para legitimar a democracia (eis então o caráter ad hoc do pragmatismo em relação ao que ele vem empurrar, no caso, a democracia). Tal argumento é quase como o que John Rawls evoca ao solicitar do legislador que use o “véu da ignorância”. No jargão de Rorty, para os fins aqui postos, falaríamos assim: é melhor a democracia, mesmo que não saibamos qual posição eu, que estou no momento como legislador, irei ocupar na sociedade após tirar o “véu da ignorância” e, então, deixar de ser o legislador para descobrir em que classe social estarei posto nesta sociedade que criei. E isso por uma razão simples: na democracia, ainda que eu tenha o azar de cair na classe dos pobres, terei a chance de mobilidade social ou, ao menos, de alguma liberdade para tal. Portanto, como legislador, e ignorante a respeito da minha posição na sociedade que estou criando, é melhor que eu a crie como uma democracia. Caso eu tenha o azar de cair no campo dos pobres, ainda assim perderei menos que se eu legislar em favor de uma sociedade de castas, por exemplo. Agora, quando tentamos convencer alguém em aceitar minimamente uma posição política nossa, evocar razões metafísicas e tentar torná-las necessárias para que, em nome da coerência, alguém com determinada posição filosófica tenha que ter determinada posição política, não é uma boa forma de agir. Em tempos pós-modernos, onde todos nós desconfiamos que as meta-narrativas, ou seja, as grandes filosofias (o Humanismo, o Marxismo, o Cristianismo etc.), não passam de “mais uma narrativa”, sem que possam afirmar que são mais verdadeiras ou reivindicar o monopólio da verdade, o argumento que busca em uma dessas metanarrativas uma força para legitimar uma posição política não acrescenta muito. Em alguns casos, chega até a pesar contra. Assim, em filosofia política, Rorty foi o filósofo que poderia ter afirmado: “política é política, filosofia é filosofia”. De certa maneira foi isso que ele disse mesmo, aliás, quando do brilhante artigo sobre Heidegger. “Em “o Fedor de Heidegger”, Rorty inventou uma história de vida para Heidegger, um pouco diferente daquela que Heidegger realmente levou, e mostrou que, tendo uma história de vida segundo esta ficção, ele não teria aderido ao nazismo, no máximo teria sido um conservador e, no entanto, em nada a filosofia dele teria de ser mudada. O objetivo do artigo era exatamente este: mostrar que não há elo de necessidade entre a posição política de um filósofo (ou de qualquer pessoa) e sua posição a respeito de questões metafísicas e epistemológicas, ou seja, questões que nós dizemos que são “propriamente filosóficas”. Ou seja, relação há, mas não relação necessária. Essa postura de Rorty foi a grande contribuição do pragmatismo atual para a filosofia política. O trabalho de Rawls em filosofia política poderia ser um dos exemplos dessa atitude, em que a metafísica não se faz presente para que se possa construir um sistema de legitimidade política.


Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo http://ghiraldelli.org

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Política é política, filosofia é filosofia.


É difícil encontrar um pragmatista que não queira ver Platão pelas costas. E não é para menos. O platonismo está identificado com a idéia da separação entre o homem culto e o filósofo, e dá ao segundo o direito e o poder de governo sobre o primeiro. Por isso mesmo, o platonismo está aliado à idéia de vanguarda. O filósofo tem legitimidade para a condução da cidade. O rei-filósofo é o cume de uma vanguarda. Os pragmatistas tendem a não gostar do platonismo exatamente por causa disso. Comunidades comandadas por vanguardas políticas tendem a se uniformizar. A uniformidade reduz a riqueza da experiência que está, justamente, na pluralidade de idéias e perspectivas e na diversidade da prática. E o pragmatista é aquele filósofo que acredita que o que faz diferença faz diferença na prática. Ele teme como ninguém situações que podem nos levar a não ver mais diferença em nada, pois a prática se tornou, como um todo, o mundo da mera repetição. O platonismo, para o pragmatista, é exatamente a filosofia das sociedades que detém pouco apreço pela liberdade individual enquanto uma liberdade de produzir o diferente. Em termos gerais, esses óculos pelo qual o pragmatista mira o platonismo está correto. Todavia, esses óculos podem embaçar nossa visão quando Platão é absorvido nesse quadro. Platão não foi um platonista fanático. Há uma longa polêmica sobre se Platão se manteve adepto da Teoria das Formas e da ligação disto com a idéia de uma sociedade comandada pelo rei-filósofo, aquele que, enfim, podia vislumbrar a Forma das Formas – o Bem. Mas, o que não se pode perder de vista, é que essa questão é antes uma preocupação da filosofia política que da política. E quando os pragmatistas falam de filosofia política, eles, talvez diferentemente de outros tipos de filósofos, já estão bem próximos da política. Muitas vezes o pragmatista quer antes olhar as mentalidades, os ideários e as ideologias que propriamente o refinamento filosófico delas. A atenção para com a prática os leva a isso. Assim, não raro, antes se interessam pelo platonismo que por Platão. E neste campo mais pedestre da filosofia, em que esta transita próximo da história, da sociologia e da antropologia, ou seja, o campo da filosofia social que Dewey e os frankfurtianos desenvolveram, o problema da vanguarda continua sendo preocupante. A legitimação e a atuação da vanguarda são semelhantes na política, na religião e na educação. Na política, o partido revolucionário enxerga a Verdade e, no limite, um dos membros do partido, ao galgar a chefia, representa a culminância dessa capacidade de visão. Na religião, as igrejas fazem o mesmo, e os pastores e padres hierarquicamente fixados substituem a burocracia do partido. Na educação alguém na estrutura escolar cria algo parecido, e os professores, também hierarquicamente postos, atuam platonisticamente. Se nós aceitamos que um grupo, por diversas razões, tem acesso ao Bem, ao Belo e ao Verdadeiro, e que outros, incapazes, terão de seguir de modo obediente e pouco questionador esse grupo mais apto que, no limite, é chefiado por um tipo de rei-filósofo, então estamos longe do pragmatismo. E, para os pragmatistas, estamos no interior do platonismo. Em termos grosseiros, é esta a relação entre pragmatistas e o platonismo no campo da filosofia política. Por isso mesmo, quando nos anos 70, 80 e 90 do século XX se desenvolveu o “pós-modernismo”, alguns pragmatistas foram tomados como pós-modernos. É que a ordem do pós-modernismo era a de colocar abaixo o platonismo. E assim Richard Rorty foi chamado de filósofo pós-moderno. O problema surgido naquela época foi que a maioria dos pós-modernos eram críticos do platonismo e, no entanto, aos olhos de Rorty – e eu o acompanho nisso – estavam inseridos no platonismo de um modo peculiar. Eles criticavam o platonismo pelo seu realismo metafísico e, então, por causa de que no platonismo isto conduz à sociedade não pluralista e diversificada, eles também passaram a criticar a sociedade democrática moderna, pois a caracterizaram como uma sociedade uniformizada ou, para usar um termo caro aos frankfurtianos, a “sociedade da total administração” ou “sociedade administrada”. Por que isso era um problema? Por duas coisas: primeira, essa ligação que a maioria dos filósofos acredita, de que uma posição metafísica conduz à uma posição política, é própria do platonismo, e não de toda a filosofia; segunda, não é tão evidente que a sociedade moderna e democrática possa ser equiparada a uma sociedade falsamente pluralista e diversificada, falsamente livre. Rorty enfrentou essas questões. Ele fez seu discurso na defesa da sociedade democrática moderna, e assim se aliou a Habermas. E ele continuou fazendo sua defesa de uma posição não platonista, e assim elogiou Derrida. Mas ele se manteve eqüidistante de ambos na medida em que ele foi muito mais anti-platonista que Habermas e Derrida e, talvez, mais que qualquer outro filósofo de nossa época. Rorty nunca admitiu a essência do platonismo, que é a idéia de que uma posição metafísica arrasta com laço de necessidade uma posição política. O platonismo ligou a metafísica realista à política não democrática, e instituiu como uma característica da visão filosófica essa articulação, por meio de um elo de necessidade, entre metafísica e política. Rorty negou o caráter necessário desse elo. Para argumentar por isso, Rorty utilizou o próprio pragmatismo. Ele qualificou o pragmatismo como uma teoria filosófica ad hoc e, de certo modo, indicou que esse seria o melhor caminho para a filosofia. Por exemplo, se gostamos da democracia e queremos convencer outros que ela também é um bom modo de vida para eles, podemos evocar razões pragmáticas para tal. Talvez estas sejam as melhores razões para convencê-los. Mas essas razões pragmáticas, exatamente por serem pragmáticas, não são necessárias. Posso dizer a um amigo que não gosta da democracia que ele vive bem com a família na democracia, e que fora dela ele teria uma vida pior. Assim, não estou dizendo para ele que a democracia é o regime mais legítimo perante as leis do universo ou perante as leis de Deus ou que é o regime mais natural ao homem etc. Não há nisso nenhuma grande meta-narrativa filosófica ou religiosa para justificar a posição democrática, há apenas o argumento de que cada um de nós tem mais chances de se sair melhor na democracia que em outro regime. Ou seja, coloco um argumento pragmático como adendo, não como uma dito “escrito nas estrelas” para legitimar a democracia (eis então o caráter ad hoc do pragmatismo em relação ao que ele vem empurrar, no caso, a democracia). Tal argumento é quase como o que John Rawls evoca ao solicitar do legislador que use o “véu da ignorância”. No jargão de Rorty, para os fins aqui postos, falaríamos assim: é melhor a democracia, mesmo que não saibamos qual posição eu, que estou no momento como legislador, irei ocupar na sociedade após tirar o “véu da ignorância” e, então, deixar de ser o legislador para descobrir em que classe social estarei posto nesta sociedade que criei. E isso por uma razão simples: na democracia, ainda que eu tenha o azar de cair na classe dos pobres, terei a chance de mobilidade social ou, ao menos, de alguma liberdade para tal. Portanto, como legislador, e ignorante a respeito da minha posição na sociedade que estou criando, é melhor que eu a crie como uma democracia. Caso eu tenha o azar de cair no campo dos pobres, ainda assim perderei menos que se eu legislar em favor de uma sociedade de castas, por exemplo. Agora, quando tentamos convencer alguém em aceitar minimamente uma posição política nossa, evocar razões metafísicas e tentar torná-las necessárias para que, em nome da coerência, alguém com determinada posição filosófica tenha que ter determinada posição política, não é uma boa forma de agir. Em tempos pós-modernos, onde todos nós desconfiamos que as meta-narrativas, ou seja, as grandes filosofias (o Humanismo, o Marxismo, o Cristianismo etc.), não passam de “mais uma narrativa”, sem que possam afirmar que são mais verdadeiras ou reivindicar o monopólio da verdade, o argumento que busca em uma dessas metanarrativas uma força para legitimar uma posição política não acrescenta muito. Em alguns casos, chega até a pesar contra. Assim, em filosofia política, Rorty foi o filósofo que poderia ter afirmado: “política é política, filosofia é filosofia”. De certa maneira foi isso que ele disse mesmo, aliás, quando do brilhante artigo sobre Heidegger. “Em “o Fedor de Heidegger”, Rorty inventou uma história de vida para Heidegger, um pouco diferente daquela que Heidegger realmente levou, e mostrou que, tendo uma história de vida segundo esta ficção, ele não teria aderido ao nazismo, no máximo teria sido um conservador e, no entanto, em nada a filosofia dele teria de ser mudada. O objetivo do artigo era exatamente este: mostrar que não há elo de necessidade entre a posição política de um filósofo (ou de qualquer pessoa) e sua posição a respeito de questões metafísicas e epistemológicas, ou seja, questões que nós dizemos que são “propriamente filosóficas”. Ou seja, relação há, mas não relação necessária. Essa postura de Rorty foi a grande contribuição do pragmatismo atual para a filosofia política. O trabalho de Rawls em filosofia política poderia ser um dos exemplos dessa atitude, em que a metafísica não se faz presente para que se possa construir um sistema de legitimidade política.


Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo http://ghiraldelli.org

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