A rigor, os casos extraconjugais dos filósofos Jean-Paul Sartre
(1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986) são por demais conhecidos
para surpreender seus leitores. Felizmente, para esses, a biógrafa e
historiadora escocesa Carole Seymour-Jones reserva outras revelações
capazes de chocar ainda mais que a hiperatividade sexual da dupla, além
de oferecer uma ousada análise da “necessidade simbiótica de Beauvoir e
Sartre um pelo outro”, firmada num pacto que durou meio século e passou
como um trator sobre os amantes do casal. Carole Seymour-Jones foi atrás
de alguns deles, que sobreviveram à crueldade dos dois pensadores
franceses, comparados pela biógrafa aos personagens centrais do romance
de Chordelos de Laclos, As Ligações Perigosas, a marquesa De
Merteuil e o visconde de Valmont, dois pérfidos aristocratas que usam e
humilham seus amantes. Tanto que batizou seu livro de Uma Relação Perigosa, que chega às livrarias no dia 17.
A exemplo da dupla do romance epistolar do século 18, Sartre e
Simone de Beauvoir manipulavam suas conquistas e ainda usavam as
vítimas como personagens em seus livros. Foi assim que uma jovem aluna
de 17 anos, Olga Kosackiewicz, vinda da Rússia, acabou inspirando o
primeiro romance de Simone de Beauvoir, A Convidada (1943). Sem
pretender ser original, ela conta no livro a relação de dois
intelectuais, abalada pela formação de um triângulo amoroso com uma
estudante. Dois anos depois Olga migrou para uma das mais conhecidas
obras de Sartre, A Idade da Razão (1945), em que um professor
de filosofia deve bancar o aborto de sua amante, pretexto para Sartre
discutir conceitos como liberdade e existencialismo.
Garoto feio. Deslumbrada com a professora progressista, cheia de
ideias libertárias – posteriormente exploradas no clássico O Segundo Sexo
(1949) –, Olga caiu na rede de Simone, pulando de sua cama para a de
Sartre. Esse esquema, de seduzir as alunas para o companheiro (os dois
não moravam juntos), foi repetido inúmeras vezes, mas Olga acabou
levando o filósofo à loucura. Essa obsessão despertou ciúme na
companheira. Contudo, o padrão de relacionamento aberto continuou.
Sartre se considerava feio demais para caçar sozinho suas presas. Quando
pequeno, sua mãe tentava disfarçar o estrabismo do filho deixando
crescer seus cachos loiros, até que o avô, cansado de ver o neto ser
confundido com uma menina, levou-o ao barbeiro.
Albert Camus, que pretendia escrever uma enciclopédia de ética
com Sartre, até ousou criticar a ação predatória do promíscuo amigo (com
quem rompeu em 1952 por divergências políticas). Recebeu como resposta
do filósofo um rosto marcado pela feiura e uma pergunta de volta: “Você
já deu uma olhada na minha cara?”. Sartre era um Cyrano em busca de uma
Roxane virgem para compensar o aleijão. A biógrafa, para quem o físico
de Sartre determinou sua conduta, revela uma carta em que Sartre admite
ser um “canalha desprezível”, um “funcionário público sádico e nojento”.
Camus, ao contrário, era bonitão e namorava mulheres lindas (como as
atrizes Catherine Sellers e Maria Casarès). Além disso, era melhor
romancista que Sartre, um homem de ação comprometido com a Resistência.
Sartre viu nele o combatente que aspirava ser, segundo a biógrafa. Camus
não pegou em armas, mas arriscou a vida, escrevendo contra os nazistas,
enquanto Sartre bebia com os oficiais alemães, de acordo com Carole
Seymour-Jones.
O período da Ocupação alemã é o ponto nevrálgico da biografia de
Sartre e Simone de Beauvoir. Ambos continuaram a viver confortavelmente
em Paris durante o período em que os alemães desfilavam suas fardas e
arrogância pela capital francesa. Sartre comprava comida no mercado
negro e não hesitou em tomar o posto de um professor judeu no Liceu
Condorcet, Henri Dreyfus Lefoyer (sobrinho-neto do famoso capitão Alfred
Dreyfus), destituído do cargo durante a Ocupação. A biógrafa não o
acusa de frequentar os salões dos nazistas, mas lembra que existiam
outras escolhas a fazer. E, como para reafirmar o compromisso de Sartre
com a própria obra, ela cita a noite de 3 de junho de 1943, quando
inúmeros nazistas uniformizados brindaram ao sucesso da peça As Moscas,
de Sartre, no teatro de Charles Dullin, considerado “deutschfreundlich”
(amigável) pelos alemães. Marc Bénard, que esteve preso com o filósofo,
reconheceu Sartre retribuindo os brindes dos alemães. Ele mesmo enviou o
texto da peça aos censores nazistas, garantindo não existir “nada
antigermânico” nela.
Político. A biógrafa usa a relação de amizade de Camus e Sartre
para mostrar justamente que entre os dois era impossível estabelecer um
vínculo frouxo como o do filósofo com os alemães ou suas amantes. Era
tudo ou nada. Camus não foi um teórico, mas um ativista político
bastante crítico em relação aos crimes de Stalin. Sartre, neutro sobre
Vichy, também silenciou sobre a ditadura soviética mesmo quando o mundo
já conhecia a história dos dissidentes russos, permanecendo um
apologista do regime comunista. Se, ao tomar o lugar de Dreyfus durante a
Ocupação, ainda que temporariamente, ele tirou proveito das leis
raciais de Vichy, que proibiam professores judeus de lecionar – mesmo
não precisando do emprego –, ao defender a indefensável ditadura do
proletariado, Sartre admitiu que Camus foi o verdadeiro combatente da
Resistência.
O que sobra do mito é pouco, depois da demolição conjunta de
Sartre e Simone. Carole Seymour-Jones insinua que o romance do filósofo
com uma agente da KGB, Lena Zorin, foi mais que um caso passageiro. Foi,
segundo ela, a submissão final de um homem de natureza servil ao regime
soviético. Raymond Aron, colega de Sartre, dizia que Sartre e Simone
eram a “Resistência do Café de Flore”, o que equivale, no Brasil, a
classificar a dupla de esquerda festiva.
Pode ser que Aron tenha exagerado, mas, voltando à cama de
Sartre, a biógrafa faz uma lista trágica do destino de suas amantes,
arregimentadas pela companheira: uma se matou, outra virou viciada e uma
outra ficou tão traumatizada que até a fria professora sentiu culpa. A
biógrafa assume ter ficado “perplexa com a profundidade do abismo entre a
lenda pública e as vidas privadas do casal”. Mas esclarece que sua
admiração – tanto por Sartre como por Beauvoir – não sofreu desgaste.
Difícil acreditar.
Os Amantes de Simone
Nelson
O escritor americano Nelson Algren (1909-1981) tem um lugar
especial na vida sexual da filósofa. Ela o conheceu em sua viagem aos
EUA, em 1947. Boêmio, fez com ela a ronda dos bares de Chicago e
presenteou a amante com um anel mexicano que ela usou pelo resto da
vida. Rude, ele era a “virilidade encarnada”, segundo Simone. Algren a
chamava de “rãzinha tagarela”. Ela o apelidou de “doce crocodilo”.
Claude
O diretor do documentário Shoah, Claude Lanzmann,
fez o elogio fúnebre de Simone. De sua mesa, num restaurante de
Saint-Tropez, o cineasta ouvia a amante contar a Sartre tudo o que fazia
com ele durante o dia (Simone falava alto). À noite, ela revelava a ele
o que contava a Sartre. O diretor devolveu a juventude a Beauvoir, diz a
biógrafa. Seus ataques de ansiedade desapareceram milagrosamente.
Bianca
A escritora Bianca Bienenfeld (1921-2011) é citada por Simone de Beauvoir em Memórias de Uma Moça Bem-comportada.
Sua aluna formou um triângulo amoroso com Sartre e Simone, que a
descartou por sua “frigidez”, comparando-a a um foie gras – “de
qualidade ruim, ainda por cima”. Sua aversão física por Bianca chegou a
tal ponto que, numa carta a Sartre, ela descreve o odor do corpo da
amante como “fecal”. Bianca, entrevistada pela biógrafa, não conseguiu
esquecer as “frases horríveis” de Simone 60 anos depois.
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/arte-e-lazer,biografia-compara-sartre-e-simone-de-beauvoir-aos-amantes-crueis-de-laclos,1128691,0.htm
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