A escrita nasceu da necessidade de não esquecer. O primeiro hominídeo
que pensou "preciso me lembrar disto" deve ter olhado em volta e
procurado alguma coisa que ele não sabia o que era. Era lápis e papel,
que ainda não tinham sido inventados. A angústia primordial da
humanidade foi a de perder o pensamento fugidio. Imagine quantas boas
ideias não desapareceram para sempre por falta de algo que as retivesse
na memória e no mundo. A história da civilização teria sido outra se,
antes de inventar a roda, o homem tivesse inventado a Bic e o bloco de
notas.
*
As espécies que não desenvolveram a escrita se valem da memória
instintiva. O salmão sabe o caminho do lugar onde nasceu sem consultar
um parente ou um mapa. Já o homem pode ser definido como o animal que
precisa consultar as suas notas. Nas sociedades não letradas as
lembranças sobrevivem na recitação familiar e nos mitos tribais, que são
a memória ritualizada. Todas as outras dependem do memorando. Mas mesmo
com todas as formas de anotações inventadas pelo homem desde o tempo
das cavernas, inclusive, hoje, o "notebook" eletrônico, a angústia
persiste.
*
O que está aí em cima é o resumo de um texto que escrevi há anos,
depois de ter uma ideia para crônica, confiar que bastaria anotar uma
frase para me lembrar da ideia - e imediatamente esquecê-la. Eu já havia
desistido de ter um bloco de notas sempre à mão para o caso de sonhar
com uma boa ideia ou ter um lampejo criativo, porque minha experiência
era que nenhuma ideia sonhada resiste à luz do dia e os lampejos
aproveitáveis aconteciam invariavelmente no chuveiro. Mas desta vez o
lampejo foi num lugar seco e anotei a frase: "Conhece-te a ti mesmo, mas
não fique íntimo". Boa, boa. Só que quando sentei para escrever a
crônica a frase tinha perdido o sentido. Não me ajudava a me lembrar de
nada. E não me lembrou de nada até agora, quando, por acaso, a vi
escrita num bloco de notas antigo e finalmente me entendi.
*
O que eu quis dizer, eu acho, é que é positivo e saudável o ser
humano se conhecer, desvendar todo os seus mistérios e exorcizar todas
as suas culpas, com ou sem orientação cientifica ou religiosa. Ou será
que é mesmo? Talvez o conselho mais prático e racional seja se conhecer,
sim, mas evitar muita intimidade com esse ser que atende pelo nosso
nome, tem os mesmos pais e o mesmo CPF, torce pelo mesmo time e nos
levará junto quando morrer. Como em qualquer relacionamento humano, nas
nossas relações com nós mesmos deve haver um certo recato, e cuidado
para evitar mal-entendidos. Familiaridade demais pode gerar desprezo e
revolta. Quem sabe o que nos espera lá no fundo sombrio, nos nossos
mergulhos de autoconhecimento? Melhor ficar na superfície, que é mais
clara e tranquila.
*
Junto com a frase anotada anos atrás há outra, também para me lembrar
de uma ideia para crônica. A frase é: "O abacaxi é fruta a
contragosto". Mas esta eu não tenho a menor ideia do que queria dizer.
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,sem-intimidades,1130947,0.htm
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