Mais do que em todos os dias e em grandes momentos do ano,
as festividades natalinas e as ligadas ao Réveillon
causam em nós uma sensação diferente. E o mais interessante é que não apenas
representamos ou idealizamos estes eventos, mas os concretizamos, fazemos
acontecer momentos de inteira generosidade, gratidão a Deus e às pessoas com as
quais convivemos. Expressões de paz, amor, bondade, alegria e esperança nos
conectam uns aos outros de uma forma tão objetiva que somos movidos para gestos
de exuberância humana: Trocamos presentes; organizamos jantares beneficentes; sorteamos
cestas natalinas; realizamos passeios ou viagens com quem amamos; abrimos a
casa, etc. Sem contar as centenas de beijos e abraços muito comuns desta época
do ano.
Essa sensação extremamente humana nos faz lembrar de como
deve ser um lar. Não, às vezes, de como ele é, sujo, violento, insuportável,
detestável, mas de como deveria ser, limpo, pacífico, agradável, seguro,
acolhedor. A casa da gente precisa ser bem tratada, principalmente em tempos de
festa, quando recebemos pessoas queridas que não víamos há anos. É preciso
olhar mais para casa, onde as distâncias diminuem e tudo fica mais próximo. É
exatamente o que acontece agora, no devido instante em que somos arrancados de
nosso próprio mundo, de um mundo fechado, totalitário, racionalista, egoísta
para nos relacionarmos com o que há para além de nós mesmos, alcançando assim
uma abertura para a alteridade, uma abertura infinita.
Emmanuel Levinas, filósofo, leitor da Bíblia e de
Dostoievski, entendia a casa como um ponto de referência, segundo a qual o eu
vai em direção à exterioridade do mundo. “O
papel privilegiado da casa não consiste em ser o fim da atividade humana, mas
em ser a condição e, nesse sentido, o seu começo” (Totalidade e Infinito, p. 144).
A casa que sou eu e a casa que é o mundo vivem agora uma conexão tão intensa a
ponto de um querer humanizar o outro e vice-versa. “Simultaneamente fora e dentro, vai para fora a partir de uma
intimidade. Por outro lado, a intimidade abre-se dentro de uma casa, que se
situa nesse fora” (idem, p. 145).
A ilustração da casa, sugerida por Levinas, para demonstrar
a pertinência de nossas relações com os excluídos, com as minorias
desfavorecidas, os pobres, a viúva, o órfão e o estrangeiro é cada vez mais
significativa e atual. A recorrente imagem da “casa aberta”, neste período do
ano, tal como deve ser em toda a vida, receptiva ao outro, é muito viva na
música de Arnaldo Antunes, “a casa é sua”:
Não me falta cadeira/ Não me falta sofá /Só falta você/
sentada na sala/
Só falta você estar
Não me falta parede/ E
nela uma porta pra você entrar/ Não me falta tapete/ Só falta o seu pé descalço pra pisar
Não me falta cama/ Só
falta você deitar/ Não me falta o sol da manhã/ Só falta você acordar
Pras janelas se
abrirem pra mim/ E o vento brincar no quintal/ Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal
A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora
A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio
Não me falta banheiro,
quarto/ Abajur, sala de jantar/ Não me falta cozinha/ Só falta a campainha
tocar
Não me falta cachorro/
Uivando só porque você não está/ Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar
Não me falta casa/ Só
falta ela ser um lar/ Não me falta o tempo que passa/ Só não dá mais para tanto
esperar
Para os pássaros
voltarem a cantar/ E a nuvem desenhar um coração flechado/ Para o chão voltar a
se deitar/ E a chuva batucar no telhado
Numa sociedade imensamente carente de referências, a casa
cheia de gente, onde as famílias se encontram e se transformam a cada encontro,
é a realização de qualquer Natal e passagem de ano para alguém, na medida em
que simboliza recomeço, renovo, revitalização. Também é uma oportunidade de
resgate das referências familiares, a partir das quais ressignificamos nosso
mundo, nossa casa, nosso lugar no mundo e passamos a ser mais humanos com
respeito, amor, tolerância, bondade, justiça e paz.
Enquanto escrevia esse texto, duas figuras clássicas da
literatura não me saíam da cabeça, a do filho pródigo usada por Jesus Cristo e a
de Ulisses usada por Homero. As duas falam desse regresso ao lar e,
curiosamente, a casa estava aberta, no sentido de mostrar uma nova maneira de
reaprender a ver o mundo.
Jackislandy Meira de M. Silva, professor, filósofo e
teólogo.