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quarta-feira, 30 de abril de 2014

20 anos da morte de AYRTON SENNA do Brasil



Nestes 20 anos sem Ayrton Senna nas pistas de automobilismo da F1, é preciso fazer uma possível reflexão sobre a sua morte ao destacarmos os outros 34 anos de sua vida como os que permitiram fazê-lo nascer todos os dias na memória do povo brasileiro e do mundo. Segundo Lucrécio, discípulo de Epicuro, são os anos de nossas vidas responsáveis por escaparmos da “mors aeterna”. Há 20 anos não, mas há 54 anos que Ayrton certamente escapou natural e conscientemente da “mors aeterna”.
Por isso, fiquemos a pensar um precioso texto de Fernando Savater in Perguntas da vida: “ ‘Vê também os séculos infinitos que precederam nosso nascimentos e nada são para a vida nossa. Natureza neles nos oferece como um espelho do futuro tempo, por último, depois de nossa morte. Há algo aqui de horrível e enfadonho? Não é mais seguro do que um profundo sonho?’[Lucrécio, De rerum natura, livro III]. Preocupar-nos com os anos e os séculos em que já não estaremos entre os vivos é tão infundado quanto preocupar-nos com os anos e os séculos em que ainda não tínhamos vindo ao mundo. Nem antes nos doeu não estar nem é razoável supor que depois vá nos doer nossa ausência definitiva. No fundo, quando a morte nos fere através da imaginação – coitado de mim, todos tão felizes desfrutando do sol e do amor, todos menos eu, que nunca mais, nunca mais...! – é precisamente agora que ainda estamos vivos. Talvez devêssemos refletir um pouco mais sobre o assombro de ter nascido, que é tão grande quanto o espantoso assombro da morte. Se a morte é não ser, já a vencemos uma vez: no dia em que nascemos. É o próprio Lucrécio que fala, em seu poema filosófico, da mors aeterna, a morte eterna do que nunca foi nem será. Pois bem, nós seremos mortais, mas da morte eterna já escapamos. A essa morte enorme roubamos um certo tempo – os dias, meses ou anos que vivemos, cada instante que continuamos vivendo – , e esse tempo, aconteça o que acontecer, sempre será nosso, dos triunfalmente nascidos, e nunca seu, apesar de que depois também devamos, irremediavelmente, morrer. No século XVIII, um dos espíritos mais perspicazes que já houve – Lichtenberg – dava razão a Lucrécio em um de seus célebres aforismos: “Por acaso já não ressuscitamos? De fato, provimos de um estado em que sabíamos do presente menos do que sabemos do futuro. Nosso estado anterior é para o presente o que o presente é para o futuro”(p. 23-24).

segunda-feira, 28 de abril de 2014

YES, QUEREMOS BANANAS

Daqui a 45 dias, a Copa do Mundo vai começar no Brasil. Brasil é aquele país da América Latina onde os estádios demoram a ficar prontos, em que quase tudo fica mais caro do que o previsto, onde lutamos contra a corrupção há 500 anos... mas em que ninguém é branco. Ou não deveria ser. Ninguém é preto - ou não deveria ser. Ninguém é azul, amarelo, verde ou vermelho. Temos todas as cores. Ou deveríamos ter.
E hoje... todos nos chamamos Daniel Alves. Todos temos pele mulata, olhos claros e cabelo pixaim. Todos nascemos na Bahia - com sangue negro, branco e índio a correr pelas veias. E todos comemos a banana metafórica lançada no chão.
Essa banana é o Brasil viajando no tempo e no espaço. Comer o racismo e metaforicamente descomê-lo com a melhor das ironias - é esse o Brasil moleque, o Brasil bailarino - capaz de driblar num espaço de guardanapo, de sambar na cara do velho mundo, capaz de superfaturar estádios, metrôs e refinarias, de produzir mensalões e mensalinhos... mas incapaz... ou quase sempre incapaz de aceitar a intolerância.
A intolerância nos agride mais que a corrupção. No Brasil se fala português com açúcar - escreveu Eça de Queiroz. Somos dóceis, somos ternos - e preferimos ser. Nossos pecados são disfarçados - e é bom que assim seja. Desprezamos o alcagüete mais do que o criminoso. Precisamos de leis para impedir que existam elevadores sociais e de serviço - mas não admitimos a humilhação pública. Não admitimos o lançamento de banana.
Podemos ser a PM subindo o morro, podemos ser o tráfico atirando pra baixo... mas, quase sempre, somos o beijinho no ombro, a mão que afaga aqui e afana ali - mas não a que apedreja.
Vamos comer essa banana como Oswald de Andrade. Comê-la, digeri-la e transformá-la. Hoje somos todos macacos. Eu, você, o Neymar, o político, a presidente, o ministro, o empresário, o trabalhador, o senhor, a senhora, o presidiário, o ator, o ladrão, o policial, o bombeiro, o deputado de direita, o vereador de esquerda, o padeiro, o gari, o motorista, o preto, o branco, o azul, o cor-de-rosa.
Somos todos hélios de la peña - temos olhos azuis e pele negra. Somos todos marcos palmeira, mestiços de olhos castanhos e cabelo enrolado Somos todos preta gil, tais araújo, lázaro ramos. Somos todos giovanna antonelli, fernandas lima, tammy gretchen. A pele que nos habita ou a pele que habitamos não tem paradoxo.
Yes, Braguinha, nós temos banana. E hoje, o que importa é pegar essa banana no chão. E comê-la em vez de lançá-la de volta. É nesse pequeno momento em que dá pra acreditar naquela musiquinha de arquibancada - sou brasileiro... com muito orgulho... com muito amor. Porque é o humor que nos separa - é a alegria que nos permite encarar tudo-isso-que-aí-sempre-esteve.
Daqui a 45 dias, o mundo vem ao Brasil - que por causa de um monte de pretos e brancos e índios e mestiços chegou a 2014 como o país do futebol. Do futebol, do samba, da caipirinha, de praias lindíssimas e políticos nem tão belos... da corrupção, dos conchavos e doleiros e KKKKs.
E é esse nosso dilema. Com muito orgulho, com muito amor, o brasileiro segue sendo o narciso às avessas, capaz de cuspir em sua própria imagem com propriedade e de se entender com outro brasileiro em apenas uma frase:
- Brasil, né?
É - Brasil... terra onde em se plantando... tudo dá - menos intolerância. De todas as vilezas do mundo, o preconceito é aquele tipo de inimigo fácil de identificar e difícil de derrotar. O rei mais conhecido deste mundo é preto, atende por Édson e nasceu em Minas Gerais. É no altar dele que deposito meu voto e digo aos lançadores de banana:
Mandem mais.
Mandem mais banana.
Mandem que a gente mata no peito e transforma em bananaço. Numa bem-humorada e coletiva banana para todos aqueles que acreditam nessa bobagem de que cor da pele faz diferença.
Em suma - esta república federativa das bananas orgulhosamente agradece. E orgulhosamente reconhece: sim - essa terra tem mil problemas. Mas alguma coisa - alguma coisa a gente tem pra ensinar pra vocês - e não é futebol.
Muito obrigado pela lembrança.

Bem-vindos ao Brasil.

A ATITUDE QUE COMOVEU O MUNDO

O jogador brasileiro que atua pelo Barcelona, Daniel Alves, ironizou com estilo o horroroso ato de racismo, numa atitude de comer a banana jogada em campo de jogo. De modo sarcástico e humorístico, Daniel passa para o mundo, em contexto de copa, a mensagem urgente de que precisamos combater o racismo com inteligência. Sem falar uma palavra, ele o fez dignamente. Somos maiores que o racismo.  

Reação ao racismo no futebol

A 45 dias da Copa do mundo no Brasil, vivemos uma onda muito negativa de atos de racismo em estádios de futebol. Lamentável o que vimos acontecer com Daniel Alves na Espanha. Casos como este devem ser extirpados de qualquer atividade esportiva. Segundo Neymar Jr., que saiu em defesa de seu amigo, #somostodosmacacos Precisamos reagir ao racismo.


sexta-feira, 25 de abril de 2014

ESCOLAS RECORREM A "GAMBIARRAS"


São Paulo (AE) - Mais da metade dos professores do País não possui habilitação para dar aulas nas disciplinas que lecionam nos últimos anos da educação básica. É o que mostra um levantamento da ONG Todos pela Educação para o Observatório do PNE (Plano Nacional da Educação), com dados do Censo Escolar de 2013. Nos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º ano) o índice chega a 67,5% e, no ensino médio, a 51,7%. Os números revelam que um em cada cinco (21,5%) professores que atuam nos anos finais do ensino fundamental não tem curso superior. Esse número cai, no ensino médio, para 4,7%. Já o porcentual de professores com ensino superior, mas sem licenciatura nenhuma, é de 35,4% nos anos finais do ensino fundamental e 22,1% no ensino médio.

No ensino fundamental, Artes (92,3%) e Filosofia (90%) são as disciplinas em que há mais professores sem licenciatura na área. Já em Língua Portuguesa, que é a matéria que tem o melhor índice de professores habilitados, mais da metade dos professores não têm licenciatura na área: 53,3% contra 46,7% que têm.

Só no Nordeste o número de professores sem licenciatura para lecionar as disciplinas em que dão aula nos anos finais do ensino fundamental chega a 82,4%; no Norte é de 81,9%; Centro Oeste, 64,3%; no Sul, 49%; e no Sudeste, 47,1%. O Estado com o pior índice é o Acre, onde 89,9% dos professores não têm licenciatura na área em que atuam.

Já no ensino médio, as disciplinas em que há mais professores sem licenciatura na área são Física (80,8%) e Filosofia (78,8%). Os Estados com mais professores sem habilitação na disciplina em que lecionam são Bahia (89,3%), Mato Grosso (81,9%) e Acre (69%) Nordeste lidera por regiões do País (66%), seguido de Centro-Oeste (60,5%) e Norte (55%). Sudeste tem 42% e Sul, 41,9%.

O levantamento considera que professores com formação na disciplina em que atuam são aqueles cuja formação superior é em licenciatura na mesma matéria da disciplina. Para professores de Artes, considera-se aqueles formados em Educação Artística, Artes Visuais, Dança, Música ou Teatro. Para professores de Ciências, considera-se os professores formados em Ciências Naturais, Ciências Biológicas, Física ou Química.

DIÁRIO DE CLASSE
Professor com Licenciatura na área em que atua (%)

ENSINO FUNDAMENTAL
Matemática          35,9
Português            46,7
História               31,6
Geografia            28,1
Ciências              34,2
Filosofia              10,0
Educação Física    37,7
Artes                   7,7

ENSINO MÉDIO
Português                73,2
Educação Física        64,7
Matemática              63,4
História                   58,1
Geografia                56,8
Biologia                    51,6
Língua estrangeira    44,2
Química                   33,7
Filosofia                   21,2
Física                      19,2
Artes                      14,9

Fonte:  http://tribunadonorte.com.br/news.php?not_id=279975

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Nôach por Luiz Felipe Pondé


Os eleitos de Deus só têm problemas; a solidão os assola, o sofrimento os persegue

O Deus de Israel não gosta de covardes. Homem, mulher, criança, todos são chamados à coragem, à dor e a tomar decisões difíceis.

Noé (Nôach), foi um desses heróis. Erich Auerbach, no seu "Mímesis", afirma que Deus testa seus heróis e heroínas, levando-os ao limite do insuportável, para que, sobrevivendo ao teste, descubram por que foram eleitos. Deus funda, assim, a ideia de autoconhecimento na literatura ocidental.

"E os que vieram, macho e fêmea, de toda criatura vieram, como Deus lhe havia ordenado; e o Eterno o fechou para protegê-lo. E foi o dilúvio quarenta dias sobre a terra, e multiplicaram-se as águas, e alcançaram a arca, e levantou-se de sobre a terra" (Gênesis, 7; 16-17, edição hebraica).

O filme "Noé", de Darren Aronofsky, é sobre eleição. "Eleição" é um conceito, muitas vezes, pouco compreendido pelo mundo contemporâneo, maníaco por felicidade "projetos do self" e sucesso.

Os eleitos pelo Deus de Israel só têm problemas; a solidão os assola, o medo e o sofrimento os persegue. Erich Auerbach entende muito mais de "eleição" na literatura israelita do que muito rabino, pastor e padre por aí, obcecados por vender autoajuda espiritual. "Dificilmente, um deles não sofre, como Adão, a mais profunda humilhação...", afirma Auerbach.

O diretor do filme, faz licenças poéticas, e algumas delas (não tenho como saber o quão consciente ele estava quando as fez) muito sofisticadas, levando em conta a "dramaturgia" do Velho Testamento, como falam os cristãos quando se referem à Bíblia hebraica.

Uma delas, muito pontual, é o uso da pequena tira de couro que o pai de Noé, e depois o próprio, enrola no braço: uma referência direta ao "tefilin" (filactério). A palavra hebraica tem sua raiz em "tefilá", que significa prece. Hoje, ela "virou" um cordão de couro ligado a duas caixinhas que o judeu amarra daquele jeito e também na cabeça (é bem maior do que mostra o filme).

Uma das preces ali contidas é o famoso "Shemá Israel", a qual lembra aos judeus que Deus é um só: "Shemá Israel, Adonai eloheinu, Adonai echad" (Ouve Israel, Adonai é nosso D'us, Adonai é Um"), na tradução feita pelo movimento religioso judaico Chabab.

Outra liberdade de roteiro está na longa discussão acerca das mulheres e da infertilidade da personagem que casará com Sem, filho mais velho de Noé. Na narrativa bíblica sobre o dilúvio não existe esta controvérsia que domina o filme. Sem, Cam e Jafé, filhos de Noé, já entram na arca com suas mulheres.

Mas, se para o homem bíblico o drama é o coração reto que serve a Deus, para a mulher, o drama é a fertilidade. Muitos criticam esse enfoque porque entendem que o homem tem um drama moral acerca da liberdade da vontade (tema muito bem trabalhado no filme) e a mulher tem um drama "fisiológico", portanto, alheio à liberdade.

Mas, ao enfrentar o mal da infertilidade e ao ser objeto de milagre (como no filme e em vários casos na Bíblia), a mulher revela sua vocação de ser a (desesperada) terra (in)fértil onde Deus deixa sua marca.

O medo da infertilidade no mundo semítico antigo acompanha muitas heroínas, como Sara, mulher de Abraão, e Rachel, mulher preferida de Jacó (mais tarde, chamado Israel, pai das 12 tribos).

O profeta Isaías, 54:1-55:5, compara as agonias e posteriores alegrias da mulher infértil (ou desamparada ou solitária) às águas de Noé: "Canta, ó estéril que não deste à luz; rompe em cânticos, e clama com alegria, tu que não tiveste dores de parto; porque mais serão os filhos da mulher solitária do que os da casada, diz o Eterno".

Adiante, o profeta compara a promessa de Deus a Noé, de que não mais lançará águas sobre a face da terra, com a promessa feita à infeliz de que Ele não terá mais ira contra sua revolta nem a repreenderá.

Sabe-se que Deus escolhe Rachel como a que "amolece" Seu coração, quando Ele fica irritado com o povo israelita. Está aí o mistério da dor feminina que encanta até o Eterno.

Quando você ouvir alguém dizer que a Bíblia é um livro bobo, saiba que você está diante de um ignorante. Boa semana


Fonte: http://avaranda.blogspot.com.br/2014/04/noach-luiz-felipe-ponde.html

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Jesus, um homem da periferia


Diferente do que aponta radicalmente a tradição sobre a figura fascinante de Jesus; sem muita teologia; sem tantos adornos majestosos, fantásticos; entretanto, resgatar a referência de Jesus como um homem da periferia implica reter em sua história um contexto que lhe é próprio, modesto, mas que lhe fora negado por séculos. Somente agora nos últimos vinte ou trinta anos estamos reconstruindo um modo novo de revisitar os textos bíblicos à luz da historiografia em diálogo com a Arqueologia.
Trata-se, na verdade, de redescobrir em nossa vida o Jesus histórico. Do contrário, parece que legamos um cristianismo extremamente ideológico, moralista e autoritário sem abertura para o diferente de si, porém sistemático, fechado num esquema de autodefesa ortodoxa de algumas instituições religiosas que nos impedem de pensar um Jesus humano, trabalhador, atrelado à sua terra, aos seus valores e pronto a confrontar as estruturas econômicas, políticas, culturais e religiosas de sua época.
Os últimos estudos históricos de Jesus afirmam que era um homem do séc. I EC, um galileu situado numa região geograficamente delimitada na Palestina, sendo a Galileia este lugar no extremo norte dessa região, muito próxima às fronteiras explosivas de conflito em contato com outros impérios. É oportuno distinguir aqui um judeu nascido em Nazaré da Galileia de outro judeu nascido em Jerusalém da Judeia, visto serem duas regiões muito diferentes; de matrizes geográficas, econômicas, políticas e culturais muito diversas. Porque Nazaré encontra-se situada na periferia da Galileia e esta, por sua vez, na periferia da Palestina e do Império Romano, Jesus é historicamente um homem da periferia.
A partir dessa reflexão que ora fazemos, precisamos continuar avançando e reelaborando conceitos e valores. O que a tradição cristã elaborou sobre o Jesus “revelado” nos Evangelhos durante mais de dois mil anos se cristalizou em nossas cabeças pensantes, de tal modo que nos fez distanciar da tamanha riqueza de informações das origens de Jesus e do tipo de judaísmo que ele retinha. Ficamos refém de um discurso dogmático ou ortodoxo sobre Jesus por muito tempo, ao ponto de não nos interessarmos tanto por esse assunto.
Pressupondo que Jesus é basicamente um homem da periferia, mais precisamente um camponês de origens extremamente pobres, somando-se a isso o fato de ser carpinteiro, mas não um carpinteiro que tinha casa, um lugar para trabalhar, terras para cultivar, é possível pensá-lo de um contexto simples, concreto; de homens comuns. Embora a carpintaria na época fosse um ofício de “status” social, a de Jesus era diferente porque “as raposas têm tocas e as aves do céu, ninhos; mas o filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8.20). No caso de Jesus, o trabalho de carpinteiro era inferior ao do camponês, pois fazia ferramentas para a manutenção do campesinato. Não tendo nada, Jesus precisava andar, sair, migrar para outros lugares à procura de casas para construir. Provavelmente, devia ser um construtor em constante caminhar, pronto para trabalhar; um reino a desbravar.
Se nos deixarmos guiar por essa ideia catalisadora de um Jesus da periferia, veremos claramente seu projeto de salvação a caminho para a cruz e configurando-se como modelo para toda a humanidade. Ao pegarmos os movimentos, as ações e palavras de Jesus nos textos que nos alcançaram, certamente entenderemos a preocupação de Jesus com os mais pobres, doentes e excluídos. E somente quando recuperamos a figura histórica de Jesus como um camponês da periferia, carpinteiro ou artesão, de Nazaré da Galileia que andou e pregou para muita gente é que, de fato, conseguimos ver a autenticidade e a coerência de seu discurso político, econômico, ético, religioso e cultural.
Lembremos: “Mostrai-me um denário. De quem traz a imagem e a inscrição? Responderam: De César. Ele disse então: Devolvei, pois, o que é de César a César, e o que é de Deus a Deus” (Lc 20. 24-25); “Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no Reino dos Céus. E vos digo ainda: é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mt 19. 23-24); “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7. 12); “Destruí este templo, e em três dias eu o levantarei” (Jo 2. 19); “Uma mulher da Samaria chegou para tirar água. Jesus lhe disse: Dá-me de beber!(...) Diz-lhe então a Samaritana: Como, sendo judeu, tu me pedes de beber, a mim que sou samaritana?” (Jo 4. 7-8).
Especialmente nesta semana santa, possamos reconstruir uma imagem diferente e inovadora de um Jesus que experimenta a vasta onda do helenismo de seu tempo; um Jesus que coexiste com o judaísmo e com toda a cultura Greco-macedônica; um Jesus inserido em seu contexto histórico-cultural bastante diverso e plural; um Jesus que nasceu judeu, viveu judeu e morreu judeu. Mas tudo que conhecemos de Jesus está em grego, porém só falou aramaico, provavelmente não leria nada do que fora escrito sobre ele. Esse Jesus, fonte das pesquisas recentes da História, da Antropologia e da Arqueologia desconstrói toda aquela grandeza de um Jesus quase intocável, herdeiro de um discurso glorioso, mágico e fabuloso de algumas culturas religiosas.

Prof. Jackislandy Meira de M. Silva
Bel. e Licenciado em Filosofia, Bel. em Teologia, Esp. em Metafísica e em Estudos Clássicos



domingo, 6 de abril de 2014

Oh, o outro!



Às vezes até mesmo os filósofos cedem à facilidade. Quando estão totalmente perdidos, quando não sabem mais como imperar e se fazer ouvir, sacam suas formulazinhas mágicas. A mais “hype”, nos dias de hoje, é tão simples quanto “bom dia” ou “obrigado”; é “o Outro” ou ainda “Outrem”. Nosso filósofo, que no início da noite se apresentou modestamente como fenomenólogo, não fará uso dela senão com prudência. Aliás, o fenomenólogo é por natureza um sujeito circunspecto: é o cara que sabe que, sob o mapa rodoviário, há florestas, lagos, rios, em suma, que olha para a estrada e não confia exclusivamente no GPS. Eis por que ele saberá evitar pronunciar “o Outro” com demasiada ênfase, pois, se vocalizarmos pesadamente o O maiúsculo, a palavra fica ridícula. Mas tampouco a lançará com a displicência dos que dizem “o Outro” como se falassem dos “outros”, das “pessoas”, do “povo” ou dos “burgueses”, pois seu território é a terra escarpada da ética e não a sala de espera da banalidade social. Imporá a fórmula sem “pathos” e sem despudor. Apresentá-la no momento oportuno é fundamental. Cedo demais, o filósofo seria tomado por laborioso charlatão. Tarde demais, quando cada um só pensa em si, ninguém irá ouvi-lo. “O Outro” casa perfeitamente com uma salada, quando já comemos o suficiente para ansiar por um pouco de transcendência. Ele pode começara afirmando: “Temos que saber respeitar a alteridade do outro”(durante uma conversa sobre assimilação dos imigrantes); “O mais bonito é encontrar o Outro”(sobre férias na Tailândia); “Precisamos sair da ditadura do Mesmo e conseguir pensar no Outro” (sobre geopolítica); ou ainda: “É impossível apreender plenamente a alteridade do Outro” (sobre um caso de adultério). Que azar, nosso herói esbarra com uma dificuldade: um beócio fanático por fenomenologia transcendental. O qual está se lixando para a inobstante respeitável alteridade do Outro e rebate num tom de gangue de rua: “Oh, o outro!” O fenomenólogo não se desarma e aceita o diálogo (o que, em linguagem filosófica, significa o monólogo): “O que é o Outro? Nada. Porque não é uma coisa.” E abram alas! “Claro, podemos reificar o Outro homem, o outro eu, o alter ego, fazer dele um mero objeto, de prazer ou de ódio. É tão mais simples assimilar o outro a um papel social... Mas então você reduz um sujeito humano ao cognoscível. Ora, o Outro me escapa por princípio.” Se o intrometido não responder nada, é porque está desestabilizado. O fenomenólogo pode então pronunciar o nome do grande pensador do Outro sem temor de desencadear a hilaridade geral: Levinas, prenome Emmanuel, filósofo do século XX nascido na Lituânia (daí seu sobrenome esquisito) e naturalizado francês em 1930. “Para Levinas”, continua o alterófilo, “a ética não é uma seção entre outras da Filosofia, mas seu eixo principal. Por quê? Porque a ética não é fruto de uma reflexão abstrata sobre os nossos atos, mas da experiência perceptiva do Outro homem, de Outrem. Quem é o Outro? É alguém que possui todas as minhas características, um outro eu, com suas percepções, seus sentimentos, seus pensamentos. Mas que todavia escapa à inspeção geral promovida pelo Outro. Na experiência mais simples, o Outro me desafia. Descrever o que se passa permite, então, descobrir tesouros éticos. O Outro apresenta-se normalmente sob o aspecto de um rosto. Esse rosto não é uma coisa a ser analisada, mas um Outro encontrar. Claro, tenta-se frequentemente mascarar essa indigência do rosto conferindo-lhe conteúdo. Mas o rosto é a oferenda de uma vulnerabilidade essencial. Não são as religiões que fundam a moral, mas é a percepção do rosto do Outro que decreta regras, de maneira imanente: ‘O rosto é o que não podemos matar, ou pelo menos aquilo cujo sentido consiste em dizer: Não matarás’, escreve Levinas.” Se o chato não pagar uma penitência depois dessa bela tirada e continuar sem compreender a beleza do Outro, só resta ao nosso filósofo consolar-se dizendo que, decididamente, os Outros são sempre os Mesmos.

In ORTOLI, Sven. Pequeno Manual para Sobreviver a um Papo-cabeça. Trad. de André Telles. Rio de Janeiro: Agir, 2008. p. 89-92