O mundo, às vezes, pode parecer um lugar assustador. Um lugar onde não
conseguimos ver espaço para nossa vida. A alma, então, fica ofegante,
sem ar, buscando um lugar onde o horror não seja a regra.
Esse lugar pode ser um mundo invisível, o passado, um paraíso, a pessoa
desejada, ou, o que às vezes é a mesma coisa, um outro inferno, como o
mundo, ainda que feito da substância dos pesadelos. Quando esse terreno
encontra gênios literários, o horror pode virar beleza.
A descrição acima está muito próxima do que o filósofo judeu britânico
Isaiah Berlin (século 20) pensava da Alemanha (ainda que neste momento a
Alemanha não existisse como unidade política) dos séculos 17 e 18,
devido as terríveis guerras religiosas entre católicos e protestantes,
"a Guerra dos 30 Anos".
O resultado foi uma Alemanha devastada e reduzida à "Idade Média".
Enquanto França e Inglaterra nadavam de braçada em direção à
modernização burguesa industrial, os alemães se afogavam no
ressentimento e na melancolia. Nascia o romantismo. Essa Alemanha foi
seu o berço.
A historiografia marxista costuma dizer (com razão) que o romantismo é a
primeira grande ressaca da Europa com a modernização burguesa. A tese
de Berlin não nega este fato, mas ilumina elementos sutis com relação
aos afetos românticos.
A modernidade é bipolar. Quando acorda bem, é iluminista, científica e
progressista, assim como nós quando acordamos acreditando em nossa
capacidade de produzir o sucesso material em nossas vidas.
Mas quando ela acorda mal, é romântica, ciente da hostilidade do mundo e
em dúvida com relação à capacidade de sua grande criação, o iluminismo
racionalista e técnico-científico. Assim como nós quando acordamos em
meio a madrugada sentindo a solidão de quem investiu a vida em dinheiro,
profissão e sucesso material às custas dos vínculos afetivos pouco
eficazes.
Mas, se o romantismo é mal-estar com o mundo burguês, ele é também fruto
do mesmo mundo burguês e sua esperança na capacidade do indivíduo criar
sua própria vida e sonhar com um futuro que seja autêntico e livre de
convenções limitantes. O romantismo é antes de tudo uma afetividade
angustiada com um mundo que nega aos homens e mulheres sua
espontaneidade. Uma espontaneidade recém-adquirida graças à liberdade
moderna.
Em março e abril de 1965, Berlin deu um série de conferências na
National Gallery of Art em Washington, EUA, como parte do programa
conhecido como The A. W. Mellon Lectures in the Fine Arts. Estas
conferências foram publicadas em 2001 com o título "The Roots of
Romanticism", Princeton University Press, organizadas pelo editor da
obra de Berlin, Henry Hardy. São quatro conferências imperdíveis tanto
para os interessados no romantismo quanto para os interessados no
pensamento do próprio Berlin.
O romantismo é um grande ataque ao iluminismo e sua fé na eficácia e na
ciência da razão. Por isso, na segunda das conferências, Berlin
identifica no pietismo alemão do século 17 a grande matriz romântica e
não nos delírios das caminhadas do solitário Rousseau. Os pietistas eram
de classe média baixa, homens de letras, que liam a mística alemã
medieval, principalmente autores como o místico do século 14 Meister
Eckhart.
Os petistas viam o mundo como um lugar tomado pelos horrores do mal e
por isso fugiam para o campo, viviam em silêncio, estudavam, e por isso
mesmo tinham uma vida interior de enorme força e violência. A vida como
drama, e não como "uma agenda" (como viam os iluministas).
Em especial, o teólogo e poeta piestista J.G. Hamann (1730-1788), amigo
pessoal de Immanuel Kant, lerá o conceito de "Abgrund" ekhartiano,
entendido pelo medieval como "abismo sem fundo" de uma alma que se
descobre feita da matéria de Deus, como sendo a realidade de uma alma
obscura e misteriosa que não cabe na razão, mas que é presa num mundo
que não é sua casa. O exílio no mundo é a marca deste "mago do Norte",
como ficou conhecido.
O romantismo nos legou esse sentimento sem cura de que criamos um mundo no qual não nos reconhecemos.
Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e
ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas
como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de
vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve
às segundas na versão impressa de "Ilustrada".
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