O
Prof. Gabriele Cornelli, com cândida felicidade, nos permite
refletir sobre uma personagem
riquíssima
e emblemática da literatura platônica porque arrebata a todos os
convivas do Sympósion(Banquete)
com sua famosa declaração de amor a Sócrates.
Alcebíades é esta personagem extremamente dramática e
arrebatadora, segundo a qual, Cornelli, in Seduzindo
Sócrates: retórica de gênero e política da memória no Alcebíades
platônico,
abre o leque de possibilidades para uma acertada construção dos
reais motivos que tenham injustamente levado Sócrates à morte, bem
como, a partir do diálogo Banquete, investiga o desenho do tecido
dramático e retórico dos discursos entre paideia
e
éros, de
modo especial, como já disse, pinta um belo quadro da relação
entre Sócrates e Alcebíades.
Especificamente,
na altura do texto sobre a política da memória no Alcebíades,
Cornelli aponta, para além dos outros simposiarcas e através dos
discursos eróticos, para algo muito preciso: Uma relação
significativa entre Sócrates e Alcebíades(Cf. p. 09). Segundo
Cornelli, todos os discursos do Banquete
ansiavam e sentiam falta da entrada da própria máscara do amante,
encarnação de Eros: Alcebíades. No dizer de Cornelli, Platão
parece conseguir fazer convergir todos os discursos para o
mise-en-scène final
da entrada de Alcebíades. Veja que Alcebíades, embriagado, muda o
rumo do jogo do diálogo dos erotikoí
lógoi,
admitindo falar só de Sócrates, isto é, somente da verdade. Há
uma mudança na conversa: da teoria para a história, do elogio para
a verdade(uma verdade dionisíaca, marcada pela mania
e
parresía
da
embriaguez):
“Ouve
então, disse Erixímaco. Entre nós, antes de chegares, decidimos
que devia cada um à direita proferir em seu turno um discurso sobre
o Amor, o mais belo que pudesse, e lhe fazer o elogio. Ora, todos nós
já falamos; tu porém como não o fizeste e já bebeste tudo, é
justo que fales, e que depois do teu discurso ordenes a Sócrates o
que quiseres, e este ao da direita, e assim aos demais.
Mas,
Erixímaco! tornou-lhe Alcibíades, é sem dúvida bonito o que
dizes, mas um homem embriagado proferir um discurso em confronto com
os de quem está com sua razão, é de se esperar que não seja de
igual para igual. E ao mesmo tempo, ditoso amigo, convence-te
Sócrates em algo do que há pouco disse? Ou sabes que é o contrário
de tudo o que afirmou? É ele ao contrário que, se em sua presença
eu louvar alguém, ou um deus ou um outro homem fora ele, não tirará
suas mãos de mim.
Não
vais te calar? disse Sócrates.
Sim,
por Posidão, respondeu-lhe Alcibíades; nada digas quanto a isso,
que eu nenhum outro mais louvaria em tua presença.
Pois
faze isso então, disse-lhe Erixímaco, se te apraz; louva
Sócrates.”(PLATÃO. O Banquete ou Do Amor. Trad. J. Cavalcante de
Souza. 7ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 181,
214c-d).
O fio
condutor de leitura do grande novelo da obra platônica, o Banquete,
proposto por Cornelli é um dado bastante inovador, haja vista sua
preocupação política, literária e histórica com que delineia
toda a investigação, não só teorética, mas profundamente
prática, recheada de detalhes. Num destes detalhes, o que me salta
aos olhos é o caso da travessura das hermas e suas implicações
histórico-políticas para o tempo de Sócrates: “Enquanto
Sócrates e outros passam a noite bebendo em casa, e moderadamente,
Alcebíades chega de madrugada, bêbado e – é o que sugere o texto
– tendo perambulado por Atenas em estado alterado. Não era preciso
muita fantasia para um ateniense imaginar Alcebíades e os seus,
bêbados, cometendo qualquer tipo de profanação. A insistência de
Platão com esta versão deve ser também um dos motivos da narração
da segunda interrupção do banquete, no final dele(223b), realizada
também por diversos outros jovens bêbados. Isto é, Platão parece
querer insistir em representar em seu diálogo noites de baderna na
rua, e justamente na época da mutilação das hermas, referendando
assim a versão mais light relativa aos motivos que estavam por trás
do sacrilégio.(...) Nas fontes da época, de fato, a suspeita pela
profanação não recaía tanto sobre jovens bêbados: ao contrário,
pensava-se mais facilmente em um complô, urdido de maneira
articulada, por grupos que, querendo com isso enfraquecer a confiança
de Atenas e sua democracia num momento tão delicado de sua história,
pretendiam com isso restaurar a oligarquia ou a tirania”(CORNELLI,
Gabriele. Seduzindo
Sócrates: retórica de gênero e política da memória no Alcebíades
platônico.UnB.
p. 11)
Não nos
esqueçamos que o ilustre Alcebíades estava em plena prosperidade
política à frente do movimento democrático de então. Sob o
fascínio daquela beleza interior mencionada no Sympósion,
o ambicioso e belo jovem
Alcebíades tenta conquistá-la, através do lógos
socratikós, na
estranha ideia de cumular o acervo de seus dotes e atingir assim a
plenitude de poder nos negócios da pólis.
Político arrebatador das Assembleias, Alcebíades extravasa na
bebida e na declaração de amor a Sócrates, uma vez que o mesmo não
corresponde ao afeto que lhe
é dedicado.
Todavia,
o elogio de Sócrates por Alcebíades, conforme G. Cornelli, pode ser
considerado mais uma apologia do primeiro. “Se
pense, por exemplo, ao próprio uso das imagens das estátuas dos
silênos, que ilustram a necessidade de superar a aparência, a
máscara histórica incômoda de Sócrates, para olhar para uma
verdade sobre sua vida e seu legado, que ainda permanece escondida
para a maioria. Pois afirma Alcebíades 'nenhum
de vocês o conhece'(216c-d).
Não é difícil pensar que, na voz de Alcebíades, seja o próprio
Platão a dizer isso para Atenas”(idem,
p. 15).
Prof. Jackislandy Meira de Medeiros Silva
Especialista em Metafísica, Licenciado em
Filosofia, Bacharel em Teologia e Pós-graduando em Estudos Clássicos
pela UnB em parceria com Archai Unesco.
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