Que tal trazer um estalo em nossas consciências e um rasgo em nossos corações, por ocasião do dia da consciência negra em nosso país, nos lampejos de um escritor negro com alma de brasileiro, Machado de Assis:
A abolição
da escravatura (1888)
"Houve sol, e grande sol, naquele domingo
de 1888, em que o Senado votou a lei, que a regente
sancionou, e todos saímos à rua. Sim,
também eu saí à rua, eu o mais
encolhido dos caramujos, também eu entrei no
préstito, em carruagem aberta (...) Verdadeiramente,
foi o único dia de delírio público
que me lembra ter visto."
Crônica de A SEMANA,
de 14 de maio de 1893
"Nunca
fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição,
mas confesso que senti grande prazer quando soube da
votação final do Senado e da sanção
da Regente. Estava na Rua do Ouvidor, onde a agitação
era grande e a alegria geral. Um conhecido meu, homem
de imprensa, achando-me ali, ofereceu-me lugar no seu
carro (...) Estive quase, quase a aceitar, tal era o
meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos,
os costumes diplomáticos, a própria índole
e a idade me retiveram."
MEMORIAL DE AIRES. O fim
da escravatura foi capaz de levar o retraído
escritor às celebrações de rua
– mas não o reticente conselheiro Aires
"Era
um preto que vergalhava outro na praça. O outro
não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas
palavras: — "Não, perdão meu
senhor; meu senhor, perdão!" Mas o primeiro
não fazia caso, e, a cada súplica, respondia
com uma vergalhada nova. (...) Quem havia de ser o do
vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio,
– o que meu pai libertara alguns anos antes. (...)
Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer
das pancadas recebidas, – transmitindo-as a outro."
MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS
CUBAS. É uma das páginas de ficção
mais perturbadoras já escritas sobre a psicologia
do escravismo: o liberto compra seu próprio escravo
para tirar sua desforra
"A escravidão
levou consigo ofícios e aparelhos, como terá
sucedido a outras instituições sociais.
Não cito alguns aparelhos senão por se
ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro
ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia
também a máscara de folha-de-flandres.
A máscara fazia perder o vício da embriaguez
aos escravos, por lhes tapar a boca. (...) Era grotesca
tal máscara, mas a ordem social e humana nem
sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez
o cruel."
Do conto PAI CONTRA MÃE.
Publicado em 1905, depois da abolição,
é um dos mais fortes que Machado escreveu sobre
o tema
"O motivo
da vinda do barão é consultar o desembargador
sobre a alforria coletiva e imediata dos escravos de
Santa-Pia. (...)
– Quero deixar provado que julgo o ato do governo
uma exploração, por intervir no exercício
de um direito que só pertence ao proprietário,
e do qual uso com perda minha, porque assim o quero
e posso."
MEMORIAL DE AIRES. O barão
de Santa-Pia é a síntese da mentalidade
senhorial: prefere libertar seus escravos para não
deixar que o governo o faça
"Chamei
o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
– Tu és livre, podes ir para onde quiseres.
Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais
um ordenado, um ordenado que...
– Oh! meu senhô! fico.
(...) Pancrácio aceitou tudo; aceitou até
um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não
escovar bem as botas; efeitos da liberdade."
Diálogo entre um
escravo alforriado e seu senhor, em crônica de
BONS DIAS!, 19 de maio de 1888. O texto ironiza a hipocrisia
de alguns abolicionistas de fachada
Em 23 de novembro de 2012 às 3h38min