“História da Loucura na Idade Clássica”, escrita em 1961, foi a tese de doutorado em Filosofia do renomado pensador francês, admiradíssimo até por Gilles Deleuze quanto à luz que irradiava a todos por onde passava, Michael Foucault, dono de uma dissertação que vale a pena ser lida e re-lida antes de morrermos. Mais tarde é editada, como livro, com o nome “Histoire de la folie”. Nesta obra, Foucault analisa as experiências práticas dos séculos XVII e XVIII que levaram à exclusão dos que ele chama de “desprovidos de razão” do convívio social. Na obra, ele evidencia a “transformação” da loucura em doença mental, assim como o deslocamento dos poderes que atuam sobre os loucos e o conseqüente “lugar” a que são internados pela sociedade.
Na Idade Clássica, o período racionalista, a loucura é vista como desrazão e os loucos, que vítimas da grande internação, são acorrentados nos hospitais gerais. Com o advento da Modernidade, no século XIX, são criados os asilos ou hospitais psiquiátricos e os loucos são, por sua vez, tratados como doentes mentais.
Para Foucault, na Renascença, a loucura passa a ocupar os lugares que a lepra ocupara na Idade Média, lugares deixados sem utilidade bem como os ritos. É que, com a regressão da lepra, serão os pobres, os vagabundos, os presidiários e “cabeças alienadas” que assumirão o papel abandonado pelo lazarento. E, a partir do século XV, a face da loucura passa a assombrar a imaginação do homem ocidental. Segundo Foucault, até pouco depois do início da segunda metade do século XV, o tema da morte impera sozinho; nela, o fim do homem, o fim dos tempos assume o rosto das pestes e das guerras. Mas eis que nos últimos anos do século, essa grande inquietude gira sobre si mesma: o desatino da loucura substitui a morte e a seriedade que a acompanha. A partir de então, o insano desarma e o louco ri antes do riso da morte, pressagiando o macabro; trata-se de uma virada no interior da mesma inquietude, trata-se do vazio da existência, um vazio sentido do interior como forma contínua e constante da existência. O liame entre a loucura e o nada se estreita no século XV e subsiste por muito tempo no centro da experiência clássica da loucura.
Dentre outras, é na composição literária “Narrenschiff”(A nau dos loucos), de Brant, que Foucault situa a experiência trágica da loucura na Renascença. Na época, os loucos eram escorraçados e frequentemente confiados a barqueiros. O louco torna-se o passageiro por excelência, o prisioneiro da passagem, solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. Também entre os místicos do século XV imaginava-se a alma-barca, abandonada no mar infinito dos desejos, barca prisioneira da grande loucura do mar se não souber lançar sólidas âncoras, a fé, ou esticar suas velas espirituais para que o sopro de Deus a leve ao porto.
É na literatura erudita da Renascença, que Foucault vê a loucura em ação, principalmente nos textos humanistas entre os quais se destaca Erasmo, bem como na longa dinastia de imagens, de pinturas, sobretudo em Bosch e Brueghel. Nestas, Foucault percebe uma enorme proliferação de sentidos, de onirismo, onde as figuras simbólicas tornam-se silhuetas do pesadelo, uma interrogação a permanecer indefinidamente sem resposta, num silêncio habitado apenas pelo bulício do mundo.
Jackislandy Meira de M. Silva, professor e filósofo.
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