domingo, 6 de março de 2011

O vazio da intimidade, por Márcia Tiburi.


Intimidade é a categoria inventada para dar conta do aspecto mais interior da experiência pessoal humana. Diz-se íntimo do que não pode ser exposto. Fala-se da intimidade para expressar aquilo que não cabe na exterioridade das existências. Íntimo é sempre relativo ao que se esconde, ao reservado, ao que se preserva do contato com a esfera da vida pública. É uma instância de segredo, por meio da qual seres humanos se sentem donos de si mesmos. Íntimo é, pois, o lugar onde cada um se sente descoberto em sua subjetividade apenas para si mesmo, em uma espécie de contraposição ou negação da objetividade. Como na solidão na qual, em vez de sofrimento, encontra-se a salvaguarda de si. Por meio da intimidade cada um se sente em uma ilha deserta para a qual viajou voluntariamente.

Íntimo é aquilo que não pode ser simplesmente comunicado. É o que se aparta da comunidade mesmo permanecendo dentro dela. Íntima é, da vida, a parte silenciosa, a que não pode ser publicada. Ocorre que a cultura humana é marcada pela exigência de comunicabilidade. Relacionamo-nos uns aos outros e nesta ação linguística está o cerne da experiência humana enquanto ela é política e ética. Certamente deturpamos o sentido da comunicabilidade quando a compreendemos como mera relação de troca em um mundo de mercadorias.

Na cultura contemporânea em que as tecnologias da imagem aliadas aos meios de comunicação de alta difusão determinam as formas de vida na sociedade do espetáculo, em que a era digital define um padrão estético e ético de ação, em que a compulsão à exposição de si vai das revistas de celebridades às redes sociais, não é difícil pensar que vivemos no tempo da banalização da intimidade. Tal banalização é, na verdade, um interessante paradoxo. Se banal é aquilo que pode ser usado por todos, enquanto íntimo é aquilo que pertence apenas a um indivíduo, como seria possível banalizar o íntimo sem eliminá-lo? Em outras palavras, se banalizamos o íntimo e assim o eliminamos, será mesmo do íntimo e da intimidade que ainda estamos tratando? Ora, a expressão da intimidade sempre fez parte dos esforços poéticos e literários na história humana. Mas se não foi simples para os poetas, por que devemos achar que é tão alcançável e comunicável pelos internautas e usuários das mídias contemporâneas em geral?

A intimidade banal não existe. Aquilo que podemos chamar de compulsão à exposição representa-se na extinção do íntimo. Se íntimo é o que não se expõe não podemos considerar que a publicização da vida tem simplesmente o poder de extirpá-lo. A exposição de “intimidades” – como as partes íntimas, as mais ocultas no corpo de uma pessoa – são bem conhecidas nas representações de obscenidades que compõem a pornografia. Há que se considerar, no entanto, que o órgão sexual exposto já não é íntimo, mas obscenamente recortado, ele é qualquer coisa que se dá a conhecer como objeto, como algo não mais experimentado subjetivamente, mas objetivamente percebido. Íntima é uma experiência de subjetividade que não é facilmente medida em termos objetivos. Ela é conhecida apenas negativamente.

A pergunta é, portanto, em que momento o íntimo deixa de existir? Por que precisamos pensar que os tempos de miséria da subjetividade vencem tão facilmente o elemento misterioso que compõe a experiência de si a que denominamos intimidade e sobre a qual podemos falar apenas de fora, justamente porque as palavras apenas a tocam como algo externo à medida que ela se refere a um “dentro”? Que lógica seria esta que desconsidera tão facilmente sua potência? Discursar sobre seu fim é alerta contra um perigo que paira sobre ela ou mera propaganda niilista que inventa tê-la encontrado?
A intimidade é mais uma forma de relação do que uma instância. Assim, não podemos dizer que o ciberespaço, que a internet como “lugar” substitui o lugar da intimidade, porque a intimidade não é simplesmente algo que se encontra no espaço, não é, portanto, um objeto. Ela é, muito mais, aquilo que, do espaço não se pode simplesmente acessar. Tampouco é um dentro que se põe para fora. A chave da intimidade pertence unicamente a seu portador. Assim é que a intimidade é um modo de relacionar-se com espaços e objetos que se configura e reconfigura nos processos sociais. Ela é uma experiência pessoal.

Logo, as redes sociais não eliminam a intimidade pela sua hiperexposição porque intimidade é o que, sendo exposto, já não está ali. O que as pessoas expõem é a angústia do vazio enquanto a intimidade é algo que permanece na esfera de segredo de cada um. Logo, a exposição da intimidade na internet ou é mentira ou é compulsão à exposição. A intimidade mesma é uma força de negação que não se reduz a demandas objetivas sem resistência.

Márcia Tiburi, filósofa.

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domingo, 6 de março de 2011

O vazio da intimidade, por Márcia Tiburi.


Intimidade é a categoria inventada para dar conta do aspecto mais interior da experiência pessoal humana. Diz-se íntimo do que não pode ser exposto. Fala-se da intimidade para expressar aquilo que não cabe na exterioridade das existências. Íntimo é sempre relativo ao que se esconde, ao reservado, ao que se preserva do contato com a esfera da vida pública. É uma instância de segredo, por meio da qual seres humanos se sentem donos de si mesmos. Íntimo é, pois, o lugar onde cada um se sente descoberto em sua subjetividade apenas para si mesmo, em uma espécie de contraposição ou negação da objetividade. Como na solidão na qual, em vez de sofrimento, encontra-se a salvaguarda de si. Por meio da intimidade cada um se sente em uma ilha deserta para a qual viajou voluntariamente.

Íntimo é aquilo que não pode ser simplesmente comunicado. É o que se aparta da comunidade mesmo permanecendo dentro dela. Íntima é, da vida, a parte silenciosa, a que não pode ser publicada. Ocorre que a cultura humana é marcada pela exigência de comunicabilidade. Relacionamo-nos uns aos outros e nesta ação linguística está o cerne da experiência humana enquanto ela é política e ética. Certamente deturpamos o sentido da comunicabilidade quando a compreendemos como mera relação de troca em um mundo de mercadorias.

Na cultura contemporânea em que as tecnologias da imagem aliadas aos meios de comunicação de alta difusão determinam as formas de vida na sociedade do espetáculo, em que a era digital define um padrão estético e ético de ação, em que a compulsão à exposição de si vai das revistas de celebridades às redes sociais, não é difícil pensar que vivemos no tempo da banalização da intimidade. Tal banalização é, na verdade, um interessante paradoxo. Se banal é aquilo que pode ser usado por todos, enquanto íntimo é aquilo que pertence apenas a um indivíduo, como seria possível banalizar o íntimo sem eliminá-lo? Em outras palavras, se banalizamos o íntimo e assim o eliminamos, será mesmo do íntimo e da intimidade que ainda estamos tratando? Ora, a expressão da intimidade sempre fez parte dos esforços poéticos e literários na história humana. Mas se não foi simples para os poetas, por que devemos achar que é tão alcançável e comunicável pelos internautas e usuários das mídias contemporâneas em geral?

A intimidade banal não existe. Aquilo que podemos chamar de compulsão à exposição representa-se na extinção do íntimo. Se íntimo é o que não se expõe não podemos considerar que a publicização da vida tem simplesmente o poder de extirpá-lo. A exposição de “intimidades” – como as partes íntimas, as mais ocultas no corpo de uma pessoa – são bem conhecidas nas representações de obscenidades que compõem a pornografia. Há que se considerar, no entanto, que o órgão sexual exposto já não é íntimo, mas obscenamente recortado, ele é qualquer coisa que se dá a conhecer como objeto, como algo não mais experimentado subjetivamente, mas objetivamente percebido. Íntima é uma experiência de subjetividade que não é facilmente medida em termos objetivos. Ela é conhecida apenas negativamente.

A pergunta é, portanto, em que momento o íntimo deixa de existir? Por que precisamos pensar que os tempos de miséria da subjetividade vencem tão facilmente o elemento misterioso que compõe a experiência de si a que denominamos intimidade e sobre a qual podemos falar apenas de fora, justamente porque as palavras apenas a tocam como algo externo à medida que ela se refere a um “dentro”? Que lógica seria esta que desconsidera tão facilmente sua potência? Discursar sobre seu fim é alerta contra um perigo que paira sobre ela ou mera propaganda niilista que inventa tê-la encontrado?
A intimidade é mais uma forma de relação do que uma instância. Assim, não podemos dizer que o ciberespaço, que a internet como “lugar” substitui o lugar da intimidade, porque a intimidade não é simplesmente algo que se encontra no espaço, não é, portanto, um objeto. Ela é, muito mais, aquilo que, do espaço não se pode simplesmente acessar. Tampouco é um dentro que se põe para fora. A chave da intimidade pertence unicamente a seu portador. Assim é que a intimidade é um modo de relacionar-se com espaços e objetos que se configura e reconfigura nos processos sociais. Ela é uma experiência pessoal.

Logo, as redes sociais não eliminam a intimidade pela sua hiperexposição porque intimidade é o que, sendo exposto, já não está ali. O que as pessoas expõem é a angústia do vazio enquanto a intimidade é algo que permanece na esfera de segredo de cada um. Logo, a exposição da intimidade na internet ou é mentira ou é compulsão à exposição. A intimidade mesma é uma força de negação que não se reduz a demandas objetivas sem resistência.

Márcia Tiburi, filósofa.

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